Notas Sobre O Ritual Da Jurema: Pessoas-relação e encantados entre o povo Ibiramã Kiriri do Acré
Rev. Cadernos de Campo, Araraquara, v. 24, n. esp. 1, e024009, 2024. e-ISSN: 2359-2419
DOI: https://doi.org/10.47284/cdc.v24iesp.1.18331 18
realização, e aí é que se erra, pois segundo ela, abrir corrente é precipício, minha filha, falou
de forma preocupada. Toda quebra da corrente tem consequência, basta errar um e todos
sofrem.
Se o dom está presente em Carliusa e Roseni, mulheres Kiriri, ele também carece de ser
feito no relacionamento com os Mestres Encantados e com as responsabilidades rituais que
essas mulheres possuem. O feito também perpassa o coletivo da aldeia, pois é importante que
o ritual seja feito com a mente limpa, logo, Carliusa e Roseni possuem uma centralidade quando
nelas se aglutinam responsabilidades rituais, mas para que os Encantados encostem nelas que
têm o dom, a comunidade precisa participar da responsabilidade ritual.
Sendo assim, aproximando-nos dos estudos afro-indígenas, dadas as devidas
contextualizações, concorda-se com a reflexão de Goldman (2012):
a relação entre dom e iniciação não é nem da ordem da oposição, nem da
redundância, nem da causalidade direta. Se quiséssemos empregar um
conceito fora de moda, poderíamos talvez dizer que se trata de uma
complementaridade dialética. Mas isto não ajudaria muito, pois o problema da
dialética, como observou Deleuze, é não perceber que o importante não está
nem nos termos, nem em sua contradição, nem em sua possível ou impossível
síntese: “O que conta [...] não é o 2 ou o 3, ou sei lá quanto, é o E, a conjunção
E [...]. O E é a diversidade, a multiplicidade, a destruição das identidades [...].
O E não é nem um nem o outro, é sempre entre os dois, é a fronteira, sempre
há uma fronteira, uma linha de fuga ou de fluxo, mas que não se vê, porque
ela é o menos perceptível. E, no entanto, é sobre essa linha de fuga que as
coisas se passam, os devires se fazem [...] (Deleuze 1976:64-66).” (Goldman,
2012, p. 282).
A linha de fuga, o “E” em que as coisas se fazem, no contexto Kiriri, parece ser
justamente esses mesmos “E”, entre o dom E a feitura dos relacionamentos com os Encantados.
Aquilo que nos possibilita ver além do dado (dom), e revela as sutilezas dos relacionamentos
sendo construídos a partir de ações conscientes de obrigações e cuidados com o ritual e com o
corpo, de forma individual e coletiva. Logo, estas mulheres possuem o dom, mas acompanhado
dele, recebem a responsabilidade de cuidar do corpo, da mente e principalmente dos
relacionamentos, ter o dom significa também ter uma predisposição à constituição de
relacionamentos. Não me surpreende Carliusa ter o dom do relacionamento com os Encantados
e, ao mesmo tempo, ser a pessoa que com os outros humanos, em relação, articula e faz
movimento, auxilia para os ganhos políticos da comunidade.
Carliusa me diz que todos temos o dom, o que acontece é que tem gente que tem o dom
e não sabe o significado, há aqueles que não desenvolveram o dom, mas todos nascem com ele.
O processo de desenvolver o dom vem com o tempo, cada coisa no seu tempo, quando é para