Doxa: Rev. Bras. Psico. e Educ., Araraquara, v. 24, n. esp. 1, e023006, 2023. e-ISSN: 2594-8385
DOI: https://doi.org/10.30715/doxa.v24iesp.1.18176 1
DIZ/TOPIAS: CONSTRUINDO LUGARES DE (R)EXISTÊNCIA NA POESIA
BRASILEIRA DE AUTORIA TRANSVESTIGÊNERE
DIZ/TOPIAS: CONSTRUYENDO LUGARES DE (R)EXISTENCIA EN LA POESÍA
BRASILEÑA DE AUTORÍA TRANS
DIZ/TOPIAS: BUILDING PLACES OF (R)EXISTENCE IN BRAZILIAN POETRY OF
TRANSGENDER AUTHORSHIP
Manuela Rodrigues SANTOS1
e-mail: manurodrigues2512@gmail.com
Como referenciar este artigo:
SANTOS, Manuela Rodrigues. Diz/topias: Construindo
lugares de (r)existência na poesia brasileira de autoria
transvestigênere. Doxa: Rev. Bras. Psico. e Educ.,
Araraquara, v. 24, n. esp. 1, e023006, 2023. e-ISSN: 2594-
8385. DOI: https://doi.org/10.30715/doxa.v24iesp.1.18176
| Submetido em: 15/02/2023
| Revisões requeridas em: 22/04/2023
| Aprovado em: 11/06/2023
| Publicado em: 01/08/2023
Editor:
Prof. Dr. Paulo Rennes Marçal Ribeiro
Editor Adjunto Executivo:
Prof. Dr. José Anderson Santos Cruz
Instituto Federal de Sergipe (IFS), São Cristóvão SE Brasil. Professora de Língua Portuguesa e suas
respectivas literaturas. Doutorado em Literatura (UnB).
Diz/topias: Construindo lugares de (r)existência na poesia brasileira de autoria transvestigênere
Doxa: Rev. Bras. Psico. e Educ., Araraquara, v. 24, n. esp. 1, e023006, 2023. e-ISSN: 2594-8385
DOI: https://doi.org/10.30715/doxa.v24iesp.1.18176 2
RESUMO: O imaginário e nossas vivências são transformados, pela via da criação literária, em
corpo-texto, capaz de construir outros lugares possíveis frente ao impossível da colonialidade.
Desse modo, pensamos a poesia de autoria transvestigênere como diz/topias, isto é, a poesia como
palavras de ocupar mundos, uma escrita que integra o processo de autorrecuperação e inventa
lugares [topias/tropos] para discutir nossa existência e uma resistência concebida como futuro:
mundos possíveis de sonho, de afeto, de criatividade, de coletividade. Assim, discutiremos a partir
das obras Mem(orais): poéticas de uma byxa-travesty preta de cortes, de Luna Souto Ferreira
(2019); Escuiresendo: ontografias poéticas, de Abigail Campos Leal (2020), Sal a gosto, de
Esteban Rodrigues (2018) e Profecia, de Diana Salu (2022), como suas poéticas inventam novos
lugares, diz/topias, capazes de integrar um processo de autorrecuperação e de invenção de espaços
outros que possibilitam não sonhos, lutas e afetos; mas também ir além da dor, consolidando
nossos esforços para existir e resistir a esse mundo que nos quer silenciadas e mortas.
PALAVRAS-CHAVE: Poéticas contemporâneas. Literatura de autoria transvestigênere. Utopias
queer.
RESUMEN: El imaginario y nuestras vivencias se transforman, a través de la creación literaria,
en un cuerpo-texto, capaz de construir otros lugares posibles frente a los imposibles de la
colonialidad. De esta manera, pensamos la poesía de autoría trans como diz/topías, es decir, poesía
como palabras para ocupar mundos, una escritura que integra el proceso de autorrecuperación e
inventa lugares [topías/tropos] para discutir nuestra existencia y una resistencia concebida como
futuro: mundos posibles de sueños, afecto, creatividad, colectividad. Así, discutiremos a partir de
las obras Mem(orais): poéticas de uma byxa-travesty preta de cortes (2019), de Luna Souto
Ferreira; Escuiresendo: ontografias poéticas (2020), de Abigail Campos Leal, Sal a Gosto (2018),
de Esteban Rodrigues y Profecia (2022), de Diana Salu, cómo sus poéticas inventan nuevos lugares,
diz/topías, capaces de integrar un proceso de la autorecuperación y la invención de otros lugares
que posibiliten no lo sueños, luchas y afectos; pero también para ir más allá del dolor,
consolidando nuestros esfuerzos por existir y resistir a este mundo que nos quiere silenciados y
muertos.
PALABRAS CLAVE: Poética contemporánea. Literatura de autoría trans. Utopías queer.
ABSTRACT: The imaginary and our experiences are transformed, through literary creation, into
a body-text, capable of building other possible places in the face of the impossible of coloniality. In
this way, we think the poetry of transgender authorship as diz/topias, that is, poetry as words to
occupy worlds, a writing that integrates the process of self-recovery and invents places
[topias/tropes] to discuss our existence and a resistance conceived as future: possible worlds of
dreams, affection, creativity, collectivity. Thus, we will discuss from the works Mem(orais): poeticas
de byxa-travesty preta de cortes (2019), by Luna Souto Ferreira; Escuiresendo: ontografias
poéticas (2020), by Abigail Campos Leal, Sal a Gosto (2018), by Esteban Rodrigues and Profecia
(2022), by Diana Salu, how their poetics invent new places, diz/topias, capable of integrating a
process of self-recovery and the invention of other places that make possible not only dreams,
struggles and affections; but also to go beyond the pain, consolidating our efforts to exist and resist
this world that wants us silenced and dead.
KEYWORDS: Contemporary poetics. Literature of transgender authorship. Queer utopias.
Manuela Rodrigues SANTOS
Doxa: Rev. Bras. Psico. e Educ., Araraquara, v. 18, n. esp. 1, e023006, 2023. e-ISSN: 2594-8385
DOI: https://doi.org/10.30715/doxa.v24iesp.1.18176 3
Introdução
A literatura e a escrita emergem como um modo de potência de criação e, portanto, um
ato do corpo e do pensamento, uma vez que estamos acoplados à existência, mais
especificamente, a modos de existir que nos preenchem de intensidade. Um arquivo sensível de
gestos comprometidos com uma definição de escrita como ato de luta e estratégia de fuga que
nos permite estabelecer regimes outros de inteligibilidade, falabilidade e escuta política.
Escrever é crer em si, é acreditar na sua capacidade de comunicar-se por meio de
palavras, imagens e representações, é ser capaz de criar a si mesmo como obra de arte, é estar
renascendo constantemente, dando à luz a si mesmo por meio do corpo. Desse modo, somos
levadas a escrever porque
a escrita me salva dessa complacência que temo. Porque não tenho escolha.
Porque preciso manter vivos o espírito de minha revolta e de mim mesma.
Porque o mundo que crio na escrita compensa aquilo que o mundo real não
me dá. Ao escrever eu organizo o mundo, ponho nele uma alça em que eu
posso me segurar. Eu escrevo porque a vida não satisfaz os meus apetites e
minha fome. Escrevo para registrar o que os outros apagam quando eu falo,
para reescrever as histórias mal escritas que eles contam de mim, de você. Pra
ficar mais íntima comigo mesma e contigo. Para me descobrir, pra me
preservar, pra me fazer, pra ter autonomia. Pra dissipar os mitos de que sou
uma profeta louca ou uma pobre alma sofredora. Pra me convencer de que
tenho valor e de que o que tenho a dizer não é um monte de merda. Pra mostrar
que eu posso e que eu vou escrever, mesmo que me ameacem para não
escrever. E vou escrever sobre os imencionáveis sem me importar com o
suspiro ultrajado da censura e do público. E, por fim, eu escrevo porque tenho
medo de escrever, mas tenho mais medo ainda de não escrever (ANZALDÚA,
2021, p. 51-52).
A escrita, então, emerge tanto como um ato de reconstrução, de recuperação de si;
quanto como um ato de resistência coletiva. Um processo de ressignificação da dor e de
construção de conhecimento, edificado em um texto que politiza o Eu, fazendo-se rente ao
corpo, um corpo em performance que restaura, expressa e, simultaneamente, faz circular
saberes, “saberes trans. A arte trans de curar e se defender. Um saber... avaliado... a partir dos
usos que ele apresenta para a vida, para o envivecer” (LEAL, 2021, p. 306). Por isso, Jota
Mombaça (2021, p. 26) defende que para
tatear a possibilidade de uma coletividade forjada no movimento improvável
do estilhaçamento, vai ser sempre necessário abrir espaço para fluxos de
sangue, para as ondas de calor e para a pulsação da ferida. Politizar a ferida,
afinal, é um modo de estar juntas na quebra e de encontrar entre os cacos de
uma vidraça estilhaçada, um liame impossível, o indício de uma coletividade
áspera e improvável. Tem a ver com habitar espaços irrespiráveis, avançar
Diz/topias: Construindo lugares de (r)existência na poesia brasileira de autoria transvestigênere
Doxa: Rev. Bras. Psico. e Educ., Araraquara, v. 24, n. esp. 1, e023006, 2023. e-ISSN: 2594-8385
DOI: https://doi.org/10.30715/doxa.v24iesp.1.18176 4
sobre caminhos instáveis e estar a sós com o desconforto de existir em bando,
o desconforto de uma vez juntas, tocarmos a quebra uma das outras.
Assim, o que conseguimos dizer cria outros lugares para existirmos, para ocupar.
Constroem-se novos lugares que possibilitam sonhos, lutas, afetos e, principalmente,
reorganizam nossa própria narrativa, a própria subjetividade outra passa pela alteridade. Por
isso, gosto de pensar a poesia de autoria transvestigênere a partir do que Tatiana Nascimento
(2020) chama de Diz/topias, para compreender como a poesia e suas palavras de ocupar mundos
integram o processo de autorrecuperação e inventa lugares [topias/tropos] para discutir sua
existência e uma resistência ao fabular futuros outros: mundos possíveis de sonhos, de afeto, de
criatividade, de utopias.
Com diz Audre Lorde (2019, p. 106), “a poesia não é apenas sonho e imaginação, ela é
o esqueleto que estrutura nossa vida. Ela estabelece os alicerces para um futuro de mudanças.
A poesia cria a linguagem para expressar e registrar essa demanda revolucionária, a
implementação da liberdade”. Além de criar modos outros de coletividade que nos permitem ir
além da dor, constituir-se pela palavra, inventar-se e reinventar-se constantemente ao mesmo
tempo em que ela emerge como uma ferramenta para conhecermos outras formas de estar no
mundo; mais do que isso, formas de reconhecer o estar de outras pessoas no mundo.
Desse modo, que lugares são estes que a poesia de Abigail Campos Leal, Esteban
Rodrigues, Luna Souto Ferreira e Diana Salu cria? Que territórios nossas palavras fazem existir
e resistir? Vejamos...
Corpografia
e/u tenho rios vermelhos
correndo dentro de mim
que me rasgam a boca
num sorriso sem fim
quando e/u vejo o
reflexo do meu
território no
espelho.
meu abdômen é um
mar-de-morros
maravilhoso y
acidentado,
erodido,
revinado
de estrias.
meu solo é fértil
Manuela Rodrigues SANTOS
Doxa: Rev. Bras. Psico. e Educ., Araraquara, v. 18, n. esp. 1, e023006, 2023. e-ISSN: 2594-8385
DOI: https://doi.org/10.30715/doxa.v24iesp.1.18176 5
cheio de horizonte
de a a z,
faz até crescer
floresta de pelos
por todos os lados.
lindos matagais
encrespados,
muitas vezes
des
matados,
mal-amados.
amo meus morretes
de trás,
sua beleza monstra
y seus prazeres anais.
amo meu pico da frente,
ereto y ativo,
ou invertido y atrás
amo também meu picu
(a)
que torna meu orí
único e especial.
carrego aqui
uma vasta,
farta,
floresta tropical!
belezas lindas,
paisagens
corporais, fenomenais,
não lógicas,
que nem sempre
e/u sei contemplar
y por vezes me geram
senti
sedi
mentos
fatais.
gosto das minhas
tecni
cidades
suplementadas
minhas próteses com lentes
acopladas.
minhas tintas espalhadas,
pra sempre
na minha pele
assentada.
indo y voltando,
na pendulância
pisciânica,
o estrogênio
me recompondo,
Diz/topias: Construindo lugares de (r)existência na poesia brasileira de autoria transvestigênere
Doxa: Rev. Bras. Psico. e Educ., Araraquara, v. 24, n. esp. 1, e023006, 2023. e-ISSN: 2594-8385
DOI: https://doi.org/10.30715/doxa.v24iesp.1.18176 6
minhas moléculas alterando,
mudando minhas partículas,
invertendo minhas
micropolíticas
afetivas.
amo a geografia invisível
das minhas ondas cerebrais,
que desterritorializam minha mente,
me levam além
de mim.
com elas aprendi a me amar
y desde muito tempo,
da minha solidão não sou
mais refém.
y essa escrita
marca esse momento
do espaço
a regionalização de outros tempos,
em que e/u venho aprendendo
a me amar
por fora y por dentro.
venho reconstruindo
meu território-vida
remodelando
minhas morfologias
corpo-afetivas.
nem geográfica
nem geoide,
minha corpa
é única
sua forma é
bibióide.
(LEAL, 2020, p. 103-107).
Como se pode observar o poema, desde o título, traz à baila as relações entre corpo e
escrita nos processos de feitura e desfeitura de si, revelando uma corpografia que surge como
uma espécie de cartografia realizada pelo e no corpo por meio da experiência de um eu que
nasce cindido. É importante destacar que a palavra “eu” no poema se encontra dividida por uma
barra oblíqua que marca não só a separação de termos que se relacionam, mas também chama
a atenção para a ausência de uma integridade ontológica, pois, segundo Butler (2017), o sujeito
se forma na dobra do poder sobre si mesmo, isto é, na fronteira entre o que dizem que sou e o
que penso que sou. É justamente nesse instante, quando o olhar sobre si mesmo nasce, que o
sujeito se consolida como eu. Em outras palavras, “já sou afetada antes de poder dizer ‘eu’ e
que, de alguma maneira, tenho de ser afetada para poder dizer ‘eu’” (BUTLER, 2021, p. 18).
Manuela Rodrigues SANTOS
Doxa: Rev. Bras. Psico. e Educ., Araraquara, v. 18, n. esp. 1, e023006, 2023. e-ISSN: 2594-8385
DOI: https://doi.org/10.30715/doxa.v24iesp.1.18176 7
É, pois, esse eu cindido desde o nascimento que ganha materialidade no corpo
performático, prostético e molecular da era farmacopornográfica. Um corpo vivido, narrado e
representado. Não à toa, ele aparece nas três primeiras estrofes como território, como uma
unidade perceptiva viva que passa a mediar a relação da eu-lírica consigo e com o mundo. Tal
percepção é sempre a realização de um corpo situado radicalmente no mundo e quando se lança
um olhar para ver alguma coisa, a vivência que nasce desse olhar é sempre a partir do lugar
onde o corpo está: “e/u vejo o reflexo do meu território no espelho”. Assim, assegura Ahmed
(2019, p. 22, tradução nossa),
os corpos podem orientar-se através dessas respostas ao mundo que os rodeia,
graças a sua capacidade de ser afetado por ele. Por sua vez, a partir da história
dessas respostas, que se acumulam como impressões na pele, os corpos não
vivem em espaços que lhes são exteriores, ao contrário, eles lhes dão formas
ao viver neles e cobram sua forma ao habitá-los
Convém destacar que embora a eu-lírica tenha consciência das potencialidades de seu
corpo: “meu solo é fértil”, também sabe o quanto sua corporalidade incomoda por estar além
das ideias normativas de gênero, sujeito e coletividade, sintetizado na palavra “mal-amados”
que encerra a terceira estrofe. Entretanto, é nesse momento que o poema se abre para que ela
desenvolva um processo de recuperação de si mesma, de um amor de si que lhe permite
construir o sentimento de estar em casa ao habitar aquele corpo em sua multiplicidade.
Um corpo que se faz no que Jota Mombaça chama de quebra, “no movimento abrupto,
errático e desordenado do estilhaçamento” (MOMBAÇA, 2021, p. 24). Um corpo que está
sempre em obras, que se desterritorializa ao mesmo tempo em que cria estratégias de
valorização de si, de autoestima capazes de torná-lo seu lar, torná-lo parte do que se é. Habitá-
lo é estar em um território de afetos e desejos onde a aprendizagem do amor de si é um exercício
de autorrecuperação, é um ato que exprime uma ética como prática, como modos de ser e existir
no mundo.
A escrita, pois, nasce desse corpo-em-processo que, segundo a eu-lírica, é cúmplice de
suas travessias rumo a esse amor de si cuja dinâmica de construção, desconstrução e
reconstrução faz emergir uma forma singular na multidão de estilhaços que produz a
possibilidade de modos outros de existência. Por isso, “o ato de escrever é um ato de fazer alma,
uma alquimia. É uma jornada em busca do eu, do cerne do eu” (ANZALDÚA, 2021a, p. 52).
No original: “Los cuerpos pueden orientarse por meio de esa respuesta al mundo que les rodea, dada su capacidad
de ser influídos por él. A su vez, a partir de la historia de esas respuestas, que se acumulan como impresiones en
la piel, los cuerpos no viven en espacios que son exteriores a ellos: más bien los cuerpos les dan forma al vivir en
ellos, y cobran su forma al habitarlos” (AHMED, 2019, p. 22)
Diz/topias: Construindo lugares de (r)existência na poesia brasileira de autoria transvestigênere
Doxa: Rev. Bras. Psico. e Educ., Araraquara, v. 24, n. esp. 1, e023006, 2023. e-ISSN: 2594-8385
DOI: https://doi.org/10.30715/doxa.v24iesp.1.18176 8
A corpa emerge como uma forma outra de tornar a vida habitável, enquanto “a escrita é uma
ferramenta pra adentrar esses mistérios, mas também nos protege, nos uma margem de
distância, nos ajuda a sobreviver” (ANZALDÚA, 2021a, p. 53).
em Esteban Rodrigues (2018), a poesia emerge como lugar de construção de uma
narrativa do “eu” por meio de um eu-lírico que materializa sua experiência de ser e estar no
mundo. Em seu poema, ele diz:
é aqui que eu encontro os três infernos que há em mim
eu lembro de me olhar no espelho e não reconhecer
a carcaça já magoada de todos os embates travados
com a vida. limpei o sangue seco misturado com suor,
acariciei as olheiras e toquei os ombros exaustos. eu
lembro desse dia. quando o boxe do banheiro se tornou
apenas um quadrado de vidro onde não deixava a água
vazar e se misturava às lágrimas não mais sofridas e sim
exaustas.
o primeiro dos infernos é a exaustão
era feito arte o simples ato de aceitar o que viesse. de
bom, de ruim, se viesse. o estado exaustivo faz isso, te
deixa a mercê do que aparecer, quando aparecer, se
aparecer. eu ainda estava nesse plano mórbido de não
ter mais carreira e sobreviver, como se isso fosse tão
mais fácil ou prático que viver. houve lutas. um inferno.
à noite quando eu deitava no chão do quarto e sentia o
piso branco frio encostar na minha pele, saía por dois
instantes de mim. um pouco de alívio em um corpo
pesado.
o segundo inferno, mas não menos pesado é o próprio
peso das coisas
nos primeiros dias de um dos últimos meses do ano
que passou eu tomei nota de tudo que sobrecarregava
não só os ombros, mas os olhos e o peito. eu passei a
odiar listas, fiz uma bola amassada com todas as metáforas
que criei para cada uma das coisas que me faziam
chorar a noite no claro. ter medo de escuro era o pior,
não tinha como evitar a vergonha de me ver naquele
estado. de todo mal, eu ainda dava ouvidos. aos outros,
às paranoias, aos outros. era absurdo como as palavras
ou até a falta delas em determinadas circunstâncias me
tiravam um tanto de carne morta e alma. virei acúmulo.
foi aí que eu vi esperança. e a coloquei no posto do
terceiro e pior inferno.
numa das tardes de novembro aquela criança olhou nos
meus olhos e falou comigo. e eu senti que poderia ser o
Manuela Rodrigues SANTOS
Doxa: Rev. Bras. Psico. e Educ., Araraquara, v. 18, n. esp. 1, e023006, 2023. e-ISSN: 2594-8385
DOI: https://doi.org/10.30715/doxa.v24iesp.1.18176 9
que sou, que poderia sair à rua, ir aos bares e aos cafés
e à NASA se quisesse. explodiu em mim cores que nem
sei o nome formando aquarelas inteiras nas paredes
do metrô. esperança. ao sair a realidade me deu boas
vindas com pedras e tapas. ainda é dor. o mundo ainda
é preto e branco. o cinza dos meus olhos é lágrima envelhecida.
escondo o rosto e corro.
(RODRIGUES, 2018, p. 42).
As marcas deixadas no corpo diante das lutas cotidianas frente a uma sociedade que o
tempo inteiro nega sua existência é o mote que leva o eu-lírico a pensar que o presente vivido
é um inferno materializado cotidianamente. Ele sente-se exausto diante de lutas travadas e
sempre perdidas. É importante pontuar que o sofrimento e a dor por estarem impregnados
em sua vida, já não o leva a derramar lágrimas. O único sentimento que parece ainda consegue
fazê-lo chorar é a exaustão.
Na verdade, o problema é a necessidade de ser sempre forte por ser um homem trans
num mundo cisgênero que não o entende. Isso o leva a uma sensação de cansaço diante da
impossibilidade de poder sentir-se frágil em algum momento de sua vida. Um cansaço que o
reduziu à sobrevivência. Ter um corpo que carrega tantas marcas culturais e que subverte as
normas o lança em um espiral de medo, morte, solidão, derrota. A experiência de habitar-se é
dolorosa, pois sua existência é sempre presumida como impossível. Por isso, deixar esse corpo
pesado, mesmo que por alguns instantes, parece trazer alívio. Escapa-se, numa espécie de
liberdade condicional, desse corpo prisão.
No silêncio, as cicatrizes que marcam os corpos transvestigêneres falam, gritam, sentem
o peso de existir como um corpo outro transgressor e abjeto. Corpo que a sociedade
heterocisnormativa insiste em dizer que não deveria existir. Mas, a grande revolta, a vergonha
do eu-lírico não está na compreensão dessa realidade que é sabida, mas sim na constatação
de que os gestos, as palavras, as ações e os olhares dos outros, que o colocam como uma
outridade abjeta, ainda tem o poder de feri-lo física e psicologicamente.
Mas então, haveria espaço para a esperança? Num primeiro momento o encontro com
uma criança e o seu ato em reconhecê-lo como realmente era o faz vislumbrar as possibilidades
de uma existência outra onde possa ser feliz, por isso, seu olhar passa a ver o mundo mais
colorido, diferente do preto e branco a que está constantemente inserido. Porém, mais uma vez,
as violências sofridas o lembram da precariedade de sua vida. Como na caixa de Pandora, a
esperança de outrora torna-se um mal, pois carrega a ideia de um futuro dado como algo
impossível, não realizável. O que resta, então, correr, esconder-se e talvez narrar-se em uma
ficção poética, através de uma palavra-ação que faça com que os medos que o dominam e
Diz/topias: Construindo lugares de (r)existência na poesia brasileira de autoria transvestigênere
Doxa: Rev. Bras. Psico. e Educ., Araraquara, v. 24, n. esp. 1, e023006, 2023. e-ISSN: 2594-8385
DOI: https://doi.org/10.30715/doxa.v24iesp.1.18176 10
moldam seu silencio comece a perder o controle sobre ele. O eu-lírico corre na busca de uma
autorrecuperação, um processo em que precisa reunir os fragmentos do ser para construir a sua
história.
Cor, Pó
Meu corpo.
Meu copo de soco.
Um soco que no saco dói.
Não pelo soco.
Nem pelo saco.
Mas pelo caco de certeza.
A certeza que meu corpo,
se declarado por uma palavra,
poderá ir para o saco.
Fala! Fala sem fala,
com fala, com falo!
Deixe que essa palavra nasça.
E assim, mesmo sem certeza,
sua identidade teça: Byxa, Travesty, Mulher, Preta (?!).
(FERREIRA, 2019, p. 47).
em “Cor, Pó”, nota-se que a eu-lírica brinca com diversas palavras por meio das quais
chama a atenção para o seu corpo e as violências que o atravessam caso seja declarado
inconforme. Se por um lado, traz uma sujeita/sujeito-em-processo cuja única certeza que possui
é a consciência de que seu corpo se declarado abjeto poderá ser eliminado; por outro, ela tece
quem é, mesmo que essa identidade inicial seja fluida pela ausência das certezas. Porém, reitera-
se que é preciso deixar falar, é preciso deixar-se dominar pelos afetos, pela coragem de existir-
no-mundo.
Os corpos físicos são, pois, corpos sociais atravessados pelo olhar da diferenciação que
define quais corpos são inteligíveis e, por isso, capazes de habitar as vidas vivíveis e aqueles
que não o são e cujo destino, muitas vezes, é a aniquilação: “certeza que meu corpo, se
declarado por uma palavra, poderá ir para o saco”. Nesse caso, “a ex/istência é invadida, cortada
por um dique de lava sufocante, pálida, fantasmal, que toma tudo, cada sero pedaço de tecido,
da vida mesma. é da ordenação colonial da existência que padecemos” (LEAL, 2021, p. 304).
eu trago em meu peito esta profecia
de ser inteireza
que sou em calma, profundidade e desapego
trava sapa brinca com as palavras e busca mover corpo
em caminhar de peso e leveza
em caminhos da vida
trago em meu peito esta profecia de que sou sim inteira
Manuela Rodrigues SANTOS
Doxa: Rev. Bras. Psico. e Educ., Araraquara, v. 18, n. esp. 1, e023006, 2023. e-ISSN: 2594-8385
DOI: https://doi.org/10.30715/doxa.v24iesp.1.18176 11
sabendo que inteira sou também o muito que não sei
que inteira sou não sendo uma, tampouco fixa,
assim como tudo que me rodeia
trago em meu peito esta profecia
de que há sim um mundo que nos massacra
que não nos quer vives, inteires, potentes
que nos quer mortes, isolades, solitaries e à disposição de servir
mas que este não é o único mundo
muito menos o mais verdadeiro
eu trago em meu peito esta profecia
de que tudo que precisamos já está aqui conosco
aqui em nós
que não nos falta
não somos falta
somos o encontro do céu com a terra
o sopro do céu
a roupa que a terra vestiu pra passear
- diz Ailton Krenak
que somos uma galáxia de seres e células em abundância
ajuntando-se pela força da vida
que somos ligados por redes muitas e invisíveis
que o indecifrável, o indizível, e o imprevisível
são o Presente
que no menor dos espaços há sempre espaço entre
e que o poder criativo do vazio
está sempre ao nosso lado
eu trago em meu peito esta profecia
que por mais que o mundo nos violente
por mais que a gente nos machuque
que quem amamos nos descuide
que por mais que tenham me ferido
usado minha abertura para me violar
sei que sou mais muito mais
do que a soma de minhas dores
somos mais que a soma de nossas dores
pois eu sou a vida
somos a vida
e me transformo
nos transformamos
eu sou mutação
somos mutação
e em mim correm muitos rios
de encantamento e paixão
se entrelaçando
também com as águas do medo
e do desencanto
sendo todos em movimento
mesmo quando lento
e profundo
Diz/topias: Construindo lugares de (r)existência na poesia brasileira de autoria transvestigênere
Doxa: Rev. Bras. Psico. e Educ., Araraquara, v. 24, n. esp. 1, e023006, 2023. e-ISSN: 2594-8385
DOI: https://doi.org/10.30715/doxa.v24iesp.1.18176 12
eu trago em meu peito esta profecia
de que a vida é sim presente
de que somos vida
nós somos vida
repita que nós somos vida
que somos vida
que somos vida
mesmo quando morremos
eu trago em meu peito esta profecia
(SALU, 2022, n.p.).
Em seu canto profético, a eu-lírica criada por Diana Salu reitera o quanto somos sujeitas-
em-processo, um projeto de corpa transformacional que se abre para o trajeto, para a travessia,
compreendida a partir da ideia de se estar sempre atravessando, em movimento, lugar onde não
se é; mas se segue sendo, cujo corpo é a plataforma que torna possível a materialidade da
fabulação e da imaginação política; bem como a dimensão de apresentação de quem existe,
cônscia da responsabilidade de que seu ser em eclosão reclama sua própria existência e um
sentido para a vida. “uma luta para se reconstruir e curar os sustos produzidos pelas feridas,
traumas, racismo e outros atos de violação que dilaceram nossas almas, nos dividem, dissolvem
nossas energias e nos assombram” (ANZALDÚA, 2021b, p. 1, tradução nossa)
.
A profecia, de algum modo, anuncia que não se emerge do nada, em uma criação ex
nihilo, mas de um processo de escolhas através de uma série de encontros, de proposições do
ser, do que assimilamos e do que rejeitamos ou ainda, segundo Ahmed (2019), das linhas que
nos são impostas ou das políticas de desorientação que nos permitem conexões e contatos
outros. Um contato que é “corporal e desestabiliza essa linha que divide os espaços em mundo,
criando assim outros tipos de conexões onde podem ocorrer coisas inesperadas” (AHMED,
2019, p. 231, tradução nossa)
.
E, como demonstra nossa eu-lírica, essa travessia vital é feita de explorações,
descobertas, medos, encontros, cisões, dores e afetos. Rascunho de rotas provisórias, sussurros
de possibilidades, a manifestação de nossa potência de ser, existir e resistir no mundo ao mesmo
tempo em que construímos uma coletividade que se alimenta do estarmos juntas na quebra, uma
força que não é nem a sujeita e nem o mundo, mas atravessa tudo. “Lá, aqui, onde fomos
assassinadas, e nos tornamos mais velhas que a morte, mais mortas que mortas, e nesse fundo
No original: “una lucha por reconstruirse a una misma y sanar los sustos productos de heridas, traumas, racismo
y otros actos de violación que hechan pedazos nuestras almas, nos dividen, disuelven nuestras energías y nos
acechan” (ANZALDÚA, 2021b, p. 1).
No original: corporal, y desestabiliza esa línea que divide los espacios en mundos, creando así otros tipos de
conexiones donde pueden ocurrir cosas inesperadas” (AHMED, 2019, p. 231).
Manuela Rodrigues SANTOS
Doxa: Rev. Bras. Psico. e Educ., Araraquara, v. 18, n. esp. 1, e023006, 2023. e-ISSN: 2594-8385
DOI: https://doi.org/10.30715/doxa.v24iesp.1.18176 13
[...], nesse cerne em que fomos colocadas, fecundamos a vida mais-do-que-viva, a vida
emaranhada das coisas” (MOMBAÇA, 2021, p. 19). A profecia da eu-lírica realiza-se sob a
égide da lucidez: o que ela é, ela o sabe e decide sê-lo, consciente de que é um projeto, um
devir-ser, mutações que são o prelúdio da mais profunda transformação: a vida.
Como podemos observar as DIZ/topias de autoria transvestigênere emerge como uma
forma como uma forma de acuírlombamento, nos termos propostos por Tatiana Nascimento
(2019). Para quem, o cuírlombo, em sua dupla função: resistir e organizar, permite reorganizar
nossas próprias narrativas, reinventar sonhos, lutas e futuros, “criar nossas próprias palavras
e/ou retomar palavras ancestrais; y com isso permitir que uma comunidade fundamentada na
palavra autodeterminada seja criada” (NASCIMENTO, 2019, p. 4).
Assim como a poesia negra LGBTI discutida por Tatiana Nascimento, a poesia de
autoria transvestigênere “é uma das pontes mais importantes que temos para recontar e
reinventar tanto dessas histórias nossas que foram apagadas, é também uma ferramenta
importante que temos pra nos lembrar disso: do futuro” (NASCIMENTO, 2019, p. 8). Com ela
aprendemos a reagir à dor; a nos tornar resistência em coletividade para contar nossas
narrativas; a falar da dor como estratégia de cura, de tratamento das feridas; a inventar palavras
que dão conta de dizer sobre espaços outros, sobre existências e mundos outros possíveis, sobre
formas outras de criar coletividade. Uma coletividade que se organiza no que Jota Mombaça
chama de estilhaçamento, uma coletividade contingente engendrada no encontro das corpas, na
politização das feridas, nos afetos, no estar junto, na quebra.
Diz/topias: Construindo lugares de (r)existência na poesia brasileira de autoria transvestigênere
Doxa: Rev. Bras. Psico. e Educ., Araraquara, v. 24, n. esp. 1, e023006, 2023. e-ISSN: 2594-8385
DOI: https://doi.org/10.30715/doxa.v24iesp.1.18176 14
REFERÊNCIAS
AHMED, S. Fenomenología queer: orientaciones, objetos, otros. Traducción: Javier Sáez
Álamo. Barcelona: Ediciones Bellaterra, 2019.
ANZALDÚA, G. A vulva é uma ferida aberta & outros ensaios. Tradução: Tatiana
Nascimento. Rio de Janeiro: A Bolha, 2021a.
ANZALDÚA, G. Luz en lo oscuro. Traducción: Violeta Benialgo y Valeria Kierbel. Buenos
Aires: Hekht, 2021b.
BUTLER, J. A vida psíquica do poder: teorias da subjetivação. Tradução: Rogério Bettoni.
Belo Horizonte: Autêntica, 2017.
BUTLER, J. Os sentidos do sujeito. Tradução: Carla Rodrigues. Belo Horizonte: Autêntica,
2021.
FERREIRA, L. S. Mem(orais): poéticas de byxa travesty preta sem cortes. Bragança
Paulista: Urutau, 2019.
LEAL, A. C. Escuiresendo: ontologias poéticas. Uberlândia, MG: O sexo da palavra, 2020.
LEAL, A. C. Me curo y me armo estudando: a dimensão terapêutica y bélica do saber prete y
trans. In: PELBART, P. P.; FERNANDES, R. M. (org.). Pandemia Crítica: outono 2020.
São Paulo: N-1 Edições; Edições SESC, 2021.
LORDE, A. Irmã outsider: ensaios e conferências. Tradução: Stephanie Borges. Belo
Horizonte: Autêntica, 2019.
MOMBAÇA, J. Não vão nos matar agora. Rio de Janeiro: Cobogó, 2021.
NASCIMENTO, T. Diz/topias: que territórios criam as línguas da poesia lésbica negra?
Suplemento Pernambuco, Recife, n. 170, p. 12-17, 2020.
NASCIMENTO, T. Cuirlombismo literário: poesia negra LGBTI desorbitando o paradigma
da dor. São Paulo: N-1 Edições, 2019.
RODRIGUES, E. Sal a gosto. Brasília, DF: Padê, 2018.
SALU, D. Profecias. Instagram, 2022. Disponível em:
https://www.instagram.com/diana.salu/. Acesso em: 18 nov. 2022.
Manuela Rodrigues SANTOS
Doxa: Rev. Bras. Psico. e Educ., Araraquara, v. 18, n. esp. 1, e023006, 2023. e-ISSN: 2594-8385
DOI: https://doi.org/10.30715/doxa.v24iesp.1.18176 15
CRediT Author Statement
Reconhecimentos: Not applicable.
Financiamento: Not applicable.
Conflitos de interesse: There are no conflicts of interest.
Aprovação ética: Since this is a theoretical study, there was no need for ethical appraisal.
Disponibilidade de dados e material: The data and materials used in the work are available
for access upon request with relevant and reasonable justification.
Contribuições dos autores: The author was responsible for the elaboration and execution
of the research, analysis and discussion of the results analysis and discussion of the results,
as well as the writing and final revision of the text.
Processamento e editoração: Editora Ibero-Americana de Educação.
Revisão, formatação, normalização e tradução.
Doxa: Rev. Bras. Psico. e Educ., Araraquara, v. 24, n. esp. 1, e023006, 2023. e-ISSN: 2594-8385
DOI: https://doi.org/10.30715/doxa.v24iesp.1.18176 1
DIZ/TOPIAS: BUILDING PLACES OF (R)EXISTENCE IN BRAZILIAN POETRY
OF TRANSGENDER AUTHORSHIP
DIZ/TOPIAS: CONSTRUINDO LUGARES DE (R)EXISTÊNCIA NA POESIA
BRASILEIRA DE AUTORIA TRANSVESTIGÊNERE
DIZ/TOPIAS: CONSTRUYENDO LUGARES DE (R)EXISTENCIA EN LA POESÍA
BRASILEÑA DE AUTORÍA TRANS
Manuela Rodrigues SANTOS1
e-mail: manurodrigues2512@gmail.com
How to reference this article:
SANTOS, Manuela Rodrigues. Diz/topias: Building places
of (r)existence in Brazilian poetry of transgender authorship.
Doxa: Rev. Bras. Psico. e Educ., Araraquara, v. 24, n. esp.
1, e023006, 2023. e-ISSN: 2594-8385. DOI:
https://doi.org/10.30715/doxa.v24iesp.1.18176
| Submitted: 15/02/2023
| Revisions required: 22/04/2023
| Approved: 11/06/2023
| Published: 01/08/2023
Editor:
Prof. Dr. Paulo Rennes Marçal Ribeiro
Deputy Executive Editor:
Prof. Dr. José Anderson Santos Cruz
Federal Institute of Sergipe (IFS), São Cristóvão SE Brazil. Professor of Portuguese Language and its
respective literatures. PhD in Literature (UnB).
Diz/topias: Building places of (r)existence in Brazilian poetry of transgender authorship
Doxa: Rev. Bras. Psico. e Educ., Araraquara, v. 24, n. esp. 1, e023006, 2023. e-ISSN: 2594-8385
DOI: https://doi.org/10.30715/doxa.v24iesp.1.18176 2
ABSTRACT: The imaginary and our experiences are transformed, through literary creation, into a
body-text, capable of building other possible places in the face of the impossible of coloniality. In
this way, we think the poetry of transgender authorship as diz/topias, that is, poetry as words to
occupy worlds, a writing that integrates the process of self-recovery and invents places
[topias/tropes] to discuss our existence and a resistance conceived as future: possible worlds of
dreams, affection, creativity, collectivity. Thus, we will discuss from the works Mem(orais):
poeticas de byxa-travesty preta de cortes (2019), by Luna Souto Ferreira; Escuiresendo: ontografias
poéticas (2020), by Abigail Campos Leal, Sal a Gosto (2018), by Esteban Rodrigues and Profecia
(2022), by Diana Salu, how their poetics invent new places, diz/topias, capable of integrating a
process of self-recovery and the invention of other places that make possible not only dreams,
struggles and affections; but also to go beyond the pain, consolidating our efforts to exist and resist
this world that wants us silenced and dead.
KEYWORDS: Contemporary poetics. Literature of transgender authorship. Queer utopias.
RESUMO: O imaginário e nossas vivências são transformados, pela via da criação literária, em
corpo-texto, capaz de construir outros lugares possíveis frente ao impossível da colonialidade.
Desse modo, pensamos a poesia de autoria transvestigênere como diz/topias, isto é, a poesia como
palavras de ocupar mundos, uma escrita que integra o processo de autorrecuperação e inventa
lugares [topias/tropos] para discutir nossa existência e uma resistência concebida como futuro:
mundos possíveis de sonho, de afeto, de criatividade, de coletividade. Assim, discutiremos a partir
das obras Mem(orais): poéticas de uma byxa-travesty preta de cortes, de Luna Souto Ferreira
(2019); Escuiresendo: ontografias poéticas, de Abigail Campos Leal (2020), Sal a gosto, de
Esteban Rodrigues (2018) e Profecia, de Diana Salu (2022), como suas poéticas inventam novos
lugares, diz/topias, capazes de integrar um processo de autorrecuperação e de invenção de espaços
outros que possibilitam não sonhos, lutas e afetos; mas também ir além da dor, consolidando
nossos esforços para existir e resistir a esse mundo que nos quer silenciadas e mortas.
PALAVRAS-CHAVE: Poéticas contemporâneas. Literatura de autoria transvestigênere. Utopias
queer.
RESUMEN: El imaginario y nuestras vivencias se transforman, a través de la creación literaria,
en un cuerpo-texto, capaz de construir otros lugares posibles frente a los imposibles de la
colonialidad. De esta manera, pensamos la poesía de autoría trans como diz/topías, es decir, poesía
como palabras para ocupar mundos, una escritura que integra el proceso de autorrecuperación e
inventa lugares [topías/tropos] para discutir nuestra existencia y una resistencia concebida como
futuro: mundos posibles de sueños, afecto, creatividad, colectividad. Así, discutiremos a partir de
las obras Mem(orais): poéticas de uma byxa-travesty preta de cortes (2019), de Luna Souto
Ferreira; Escuiresendo: ontografias poéticas (2020), de Abigail Campos Leal, Sal a Gosto (2018),
de Esteban Rodrigues y Profecia (2022), de Diana Salu, cómo sus poéticas inventan nuevos lugares,
diz/topías, capaces de integrar un proceso de la autorecuperación y la invención de otros lugares
que posibiliten no lo sueños, luchas y afectos; pero también para ir más allá del dolor,
consolidando nuestros esfuerzos por existir y resistir a este mundo que nos quiere silenciados y
muertos.
PALABRAS CLAVE: Poética contemporánea. Literatura de autoría trans. Utopías queer.
Manuela Rodrigues Santos
Doxa: Rev. Bras. Psico. e Educ., Araraquara, v. 18, n. esp. 1, e023006, 2023. e-ISSN: 2594-8385
DOI: https://doi.org/10.30715/doxa.v24iesp.1.18176 3
Introduction
Literature and writing emerge as a way of creating power and, therefore, an act of the
body and thought, since we are linked to existence, more specifically, to ways of existing that
fill us with intensity. A sensitive archive of gestures committed to a definition of writing as an
act of struggle and a strategy of escape that allows us to establish other regimes of intelligibility,
fallibility and political listening.
To write is to believe in yourself, it is to believe in your ability to communicate through
words, images and representations, it is to be able to create yourself as a work of art, it is to be
constantly being reborn, giving birth to yourself through of the body. Thus, we are led to write
why
writing saves me from this complacency, I fear. Because I have no choice.
Because I need to keep alive the spirit of my revolt and myself. Because the
world I create in writing makes up for what the real world doesn't give me. By
writing I organize the world, I put a handle on it that I can hold on to. I write
because life does not satisfy my appetites and my hunger. I write to record
what others erase when I speak, to rewrite the poorly written stories they tell
about me, about you. To get more intimate with myself and with you. To
discover myself, to preserve myself, to make myself, to have autonomy. To
dispel the myths that I'm a mad prophet or a poor suffering soul. To convince
myself that I'm worthy and that what I have to say isn't a load of shit. To show
that I can and that I will write, even if they threaten me not to. And I will write
about the unmentionables without caring about the outraged sighs of the
censors and the public. And finally, I write because I'm afraid to write, but I'm
even more afraid of not writing (ANZALDÚA, 2021, p. 51-52, our
translation).
Writing, then, emerges both as an act of reconstruction, of self-recovery; as an act of
collective resistance. A process of reframing pain and building knowledge, built on a text that
politicizes the Self, making itself close to the body, a body in performance that restores,
expresses and, simultaneously, circulates knowledge, “trans knowledge. The trans art of healing
and defending. A knowledge... evaluated... based on the uses it presents for life, to enliven it”
(LEAL, 2021, p. 306, our translation). Therefore, Jota Mombaça (2021, p. 26, our translation)
argues that for
groping for the possibility of a collectivity forged in the unlikely movement
of shattering, it will always be necessary to make room for flows of blood, for
waves of heat and for the pulsation of the wound. Politicizing the wound, after
all, is a way of being together in the breaking and of finding, among the shards
of a shattered windowpane, an impossible bond, the indication of a rough and
improbable collectivity. It has to do with inhabiting unbreathable spaces,
moving along unstable paths and being alone with the discomfort of existing
in a group, the discomfort of being together, touching each other's break.
Diz/topias: Building places of (r)existence in Brazilian poetry of transgender authorship
Doxa: Rev. Bras. Psico. e Educ., Araraquara, v. 24, n. esp. 1, e023006, 2023. e-ISSN: 2594-8385
DOI: https://doi.org/10.30715/doxa.v24iesp.1.18176 4
Thus, what we manage to say creates other places for us to exist, to occupy. New places
are built that make possible dreams, fights, affections and, mainly, reorganize our own
narrative, the other subjectivity itself passes through alterity. For this reason, I like to think
about transvestite - gender poetry based on what Tatiana Nascimento (2020) calls Diz/topias,
in order to understand how poetry and its words of occupying worlds are part of the process of
self-recovery and invent places [topias /tropes] to discuss its existence and a resistance to fable
other futures: possible worlds of dreams, of affection, of creativity, of utopias.
As Audre Lorde (2019, p. 106, our translation) says, “poetry is not just dream and
imagination, it is the skeleton that structures our life. It lays the foundation for a future of
change. Poetry creates the language to express and register this revolutionary demand, the
implementation of freedom”. In addition to creating other modes of collectivity that allow us to
go beyond pain, constitute ourselves through the word, constantly invent and reinvent ourselves
at the same time that it emerges as a tool for us to know other ways of being in the world; more
than that, ways of recognizing the being of other people in the world.
So, what are these places that the poetry of Abigail Campos Leal, Esteban Rodrigues,
Luna Souto Ferreira and Diana Salu creates? What territories do our words make exist and
resist? Let's see...
Corpografia
e/u tenho rios vermelhos
correndo dentro de mim
que me rasgam a boca
num sorriso sem fim
quando e/u vejo o
reflexo do meu
território no
espelho.
meu abdômen é um
mar-de-morros
maravilhoso y
acidentado,
erodido,
revinado
de estrias.
meu solo é fértil
cheio de horizonte
de a a z,
faz até crescer
floresta de pelos
Manuela Rodrigues Santos
Doxa: Rev. Bras. Psico. e Educ., Araraquara, v. 18, n. esp. 1, e023006, 2023. e-ISSN: 2594-8385
DOI: https://doi.org/10.30715/doxa.v24iesp.1.18176 5
por todos os lados.
lindos matagais
encrespados,
muitas vezes
des
matados,
mal-amados.
amo meus morretes
de trás,
sua beleza monstra
y seus prazeres anais.
amo meu pico da frente,
ereto y ativo,
ou invertido y atrás
amo também meu picu
(a)
que torna meu orí
único e especial.
carrego aqui
uma vasta,
farta,
floresta tropical!
belezas lindas,
paisagens
corporais, fenomenais,
não lógicas,
que nem sempre
e/u sei contemplar
y por vezes me geram
senti
sedi
mentos
fatais.
gosto das minhas
tecni
cidades
suplementadas
minhas próteses com lentes
acopladas.
minhas tintas espalhadas,
pra sempre
na minha pele
assentada.
indo y voltando,
na pendulância
pisciânica,
o estrogênio
me recompondo,
minhas moléculas alterando,
mudando minhas partículas,
invertendo minhas
micropolíticas
Diz/topias: Building places of (r)existence in Brazilian poetry of transgender authorship
Doxa: Rev. Bras. Psico. e Educ., Araraquara, v. 24, n. esp. 1, e023006, 2023. e-ISSN: 2594-8385
DOI: https://doi.org/10.30715/doxa.v24iesp.1.18176 6
afetivas.
amo a geografia invisível
das minhas ondas cerebrais,
que desterritorializam minha mente,
me levam além
de mim.
com elas aprendi a me amar
y desde muito tempo,
da minha solidão não sou
mais refém.
y essa escrita
marca esse momento
do espaço
a regionalização de outros tempos,
em que e/u venho aprendendo
a me amar
por fora y por dentro.
venho reconstruindo
meu território-vida
remodelando
minhas morfologias
corpo-afetivas.
nem geográfica
nem geoide,
minha corpa
é única
sua forma é
bibióide.
(LEAL, 2020, p. 103-107).
As can be seen, the poem, from the title onwards, brings up the relationship between
body and writing in the processes of making and unmaking oneself, revealing a bodygraphy
that emerges as a kind of cartography performed by and in the body through the experience of
Corpography (our translation):
I/I have red rivers/running inside me/that tear my mouth/in an endless smile/when i see the/reflection of
my/territory in the/mirror/my abdomen is one/sea of hills/wonderful y/bumpy,/eroded,/refinished/from stretch
/arks./my soil is fertile/full of horizon/from a to z,/make it grow/fur forest/on all sides./beautiful
thickets/frizzy,/often/killed,/unloved./I love my mortars/from behind,/your monster beauty/y your anal
pleasures./love my front peak,/erect and active,/or inverted y back/picu too/(a) bad/that makes my ori/unique and
special./carry here/a vast,/fed up,/tropical forest!/beautiful beauties,/Landscapes/bodily, phenomenal,/not
logical,/that not always/I know how to contemplate/and sometimes generate me/felt/headquarters/fatal.
I like mine/Technician/Cities/Supplemented/my prosthetics with lenses/coupled/my scattered paints,/forever/ in
my skin/seated./going and coming back,/on pendulum/Pisces,/the estrogen/pulling myself together,/my molecules
altering,/changing my particles,/reversing my/micropolitics/affective./I love invisible geography/of my brain
waves,/that deterritorialize my mind/,take me further/of me./with them I learned to love myself/and since a long
time,/I'm not from my solitude/more hostage./and this writing/mark this moment/from space/the regionalization
of other times,/where I 've been learning/to love me/outside and inside./I've been rebuilding/my life-
territory/remodeling/my morphologies/body-affective./nor geographic/nor geoid,/my body/is unique/its shape
is/bibioid./
Manuela Rodrigues Santos
Doxa: Rev. Bras. Psico. e Educ., Araraquara, v. 18, n. esp. 1, e023006, 2023. e-ISSN: 2594-8385
DOI: https://doi.org/10.30715/doxa.v24iesp.1.18176 7
a I who was born split. It is important to highlight that the word “I” in the poem is divided by
an oblique slash that marks not only the separation of related terms, but also draws attention to
the absence of ontological integrity, since, according to Butler (2017), the subject is formed in
the fold of power over himself, that is, on the border between what they say I am and what I
think I am. It is precisely at that moment, when the look at oneself is born, that the subject is
consolidated as me. In other words, “I am already affected before I can say 'I' and that, in some
way, I have to be affected in order to be able to say 'I'” (BUTLER, 2021, p. 18, our translation).
It is, therefore, this self-split from birth that gains materiality in the performative,
prosthetic and molecular body of the pharmaco-pornographic era. A lived, narrated and
represented body. Not by chance, it already appears in the first three stanzas as a territory, as a
living perceptive unit that starts to mediate the relationship of the lyric with itself and with the
world. Such a perception is always the realization of a body radically located in the world and
when one looks to see something, the experience that is born from that look is always from the
place where the body is: “I see the reflection of my territory in the mirror”. Thus, assures Ahmed
(2019, p. 22, our translation),
bodies can orient themselves through these responses to the world around
them, thanks to their ability to be affected by it. In turn, based on the history
of these responses, which accumulate like impressions on the skin, bodies do
not live in spaces that are external to them, on the contrary, they shape them
by living in them and take on their form by inhabiting them.
It should be noted that although the lyrical self is aware of the potential of its body: “my
soil is fertile”, it also knows how much its corporality bothers for being beyond the normative
ideas of gender, subject and collectivity, synthesized in the word “mal-amados” which ends the
third stanza. However, it is at this moment that the poem opens up for her to develop a process
of recovering herself, of a love of herself that allows her to build the feeling of being at home
by inhabiting that body in its multiplicity.
A body that is made in what Jota Mombaça calls a break, “in the abrupt, erratic and
disorderly movement of shattering” (MOMBAÇA, 2021, p. 24, our translation). A body that is
always under construction, that deterritorializes itself at the same time that it creates strategies
for valuing itself, of self-esteem capable of making it its home, making it part of who it is. To
inhabit it is to be in a territory of affections and desires where learning to love oneself is an
In the original: “Bodies can orient themselves by means of this answer to the world around them, given their
ability to be influenced by it. In turn, based on the history of these responses, which accumulate as impressions on
the skin, the bodies do not live in spaces that are outside them: more well the bodies they give form to living in
them, and charge their shape al habitarlos” (AHMED, 2019, p. 22)
Diz/topias: Building places of (r)existence in Brazilian poetry of transgender authorship
Doxa: Rev. Bras. Psico. e Educ., Araraquara, v. 24, n. esp. 1, e023006, 2023. e-ISSN: 2594-8385
DOI: https://doi.org/10.30715/doxa.v24iesp.1.18176 8
exercise in self-recovery, it is an act that expresses ethics as practice, as ways of being and
existing in the world.
Writing, therefore, is born from this body-in-process which, according to the lyrical
subject, is an accomplice of its crossings towards this self-love whose dynamics of construction,
deconstruction and reconstruction make a unique form emerge in the multitude of shards it
produces. the possibility of other modes of existence. Therefore, “the act of writing is an act of
making a soul, an alchemy. It is a journey in search of the self, the core of the self
(ANZALDÚA, 2021a, p. 52, our translation). The body emerges as another way of making life
habitable, while “writing is a tool to penetrate these mysteries, but it also protects us, gives us
a margin of distance, helps us to survive” (ANZALDÚA, 2021a, p. 53, our translation).
In Esteban Rodrigues (2018), poetry emerges as a place of construction of a narrative
of the “I” through a lyrical self that materializes his experience of being in the world. In his
poem he says:
é aqui que eu encontro os três infernos que há em mim
eu lembro de me olhar no espelho e não reconhecer
a carcaça já magoada de todos os embates travados
com a vida. limpei o sangue seco misturado com suor,
acariciei as olheiras e toquei os ombros exaustos. eu
lembro desse dia. quando o boxe do banheiro se tornou
apenas um quadrado de vidro onde não deixava a água
vazar e se misturava às lágrimas não mais sofridas e sim
exaustas.
o primeiro dos infernos é a exaustão
era feito arte o simples ato de aceitar o que viesse. de
bom, de ruim, se viesse. o estado exaustivo faz isso, te
deixa a mercê do que aparecer, quando aparecer, se
aparecer. eu ainda estava nesse plano mórbido de não
ter mais carreira e sobreviver, como se isso fosse tão
mais fácil ou prático que viver. houve lutas. um inferno.
à noite quando eu deitava no chão do quarto e sentia o
piso branco frio encostar na minha pele, saía por dois
instantes de mim. um pouco de alívio em um corpo
pesado.
o segundo inferno, mas não menos pesado é o próprio
peso das coisas
nos primeiros dias de um dos últimos meses do ano
que passou eu tomei nota de tudo que sobrecarregava
não só os ombros, mas os olhos e o peito. eu passei a
odiar listas, fiz uma bola amassada com todas as metáforas
que criei para cada uma das coisas que me faziam
chorar a noite no claro. ter medo de escuro era o pior,
Manuela Rodrigues Santos
Doxa: Rev. Bras. Psico. e Educ., Araraquara, v. 18, n. esp. 1, e023006, 2023. e-ISSN: 2594-8385
DOI: https://doi.org/10.30715/doxa.v24iesp.1.18176 9
não tinha como evitar a vergonha de me ver naquele
estado. de todo mal, eu ainda dava ouvidos. aos outros,
às paranoias, aos outros. era absurdo como as palavras
ou até a falta delas em determinadas circunstâncias me
tiravam um tanto de carne morta e alma. virei acúmulo.
foi aí que eu vi esperança. e a coloquei no posto do
terceiro e pior inferno.
numa das tardes de novembro aquela criança olhou nos
meus olhos e falou comigo. e eu senti que poderia ser o
que sou, que poderia sair à rua, ir aos bares e aos cafés
e à NASA se quisesse. explodiu em mim cores que nem
sei o nome formando aquarelas inteiras nas paredes
do metrô. esperança. ao sair a realidade me deu boas
vindas com pedras e tapas. ainda é dor. o mundo ainda
é preto e branco. o cinza dos meus olhos é lágrima envelhecida.
escondo o rosto e corro.
(RODRIGUES, 2018, p. 42).
The marks left on the body in the face of everyday struggles in the face of a society that
constantly denies its existence is the motto that leads the lyrical self to think that the lived
present is a daily materialized hell. He feels exhausted in the face of fights fought and always
lost. It is important to point out that suffering and pain, which are already impregnated in his
life, no longer lead him to shed tears. The only feeling that seems to still manage to make him
cry is exhaustion.
In fact, the problem is the need to always be strong for being a trans man in a cisgender
world that doesn't understand him. This leads him to a feeling of tiredness in the face of the
impossibility of being able to feel fragile at some point in his life. A weariness that reduced him
Our translation: this is where I find the three hells in me/I remember looking in the mirror and not recognizing/the
carcass /already hurt from all the clashes fought/With the life. I wiped off the dried blood mixed with sweat/I
stroked the dark circles and touched the exhausted shoulders. I/I remember that day. when did bathroom boxing
become/just a square of glass where it didn't let the water/leak and mingled with the tears no longer suffered
but/exhausted/the first of hells is exhaustion/the simple act of accepting whatever came was made art. In/good,
bad, if it came. the exhausting state does that, /leave it to the mercy of what appears, when it appears, if/to appear.
I was still on that morbid plane of not/have more career and survive, as if that were so/easier or more practical
than living. there were fights. a hell/at night when I lay on the bedroom floor and felt the/cold white floor touch
my skin, leave for two/moments from me. a little relief in a body/heavy/the second hell, but no less heavy is hell
itself/weight of things/in the first days of one of the last months of the year/that passed I took note of everything
that overloaded/not just the shoulders, but the eyes and chest. I passed to/hate lists; I made a crumpled ball out of
all the metaphors/that I created for each of the things that made me/cry at night in the light. being afraid of the
dark was the worst/there was no way to avoid the embarrassment of seeing myself in that/state. of all evil, I still
listened. to others/to paranoia, to others. it was absurd like the words/or even the lack of them in
certain/circumstances/they took a lot of dead flesh and soul. I turned accumulation/that's when I saw hope. and put
her in the post of/third and worst hell/one of the afternoons in November that child looked us in the/my eyes and
spoke to me. and I felt like I could be the/who I am, who could go out into the street, go to bars and cafes/and
NASA if you wanted. colors exploded in me like/I know the name forming whole watercolors on the walls/from
the subway. hope. when I left, reality gave me good/welcomes with stones and tapas. it's still pain. the world
still/it's black and white. the gray of my eyes is aged tears/I hide my face and run.
Diz/topias: Building places of (r)existence in Brazilian poetry of transgender authorship
Doxa: Rev. Bras. Psico. e Educ., Araraquara, v. 24, n. esp. 1, e023006, 2023. e-ISSN: 2594-8385
DOI: https://doi.org/10.30715/doxa.v24iesp.1.18176 10
to survival. Having a body that carries so many cultural marks and that subverts norms throws
you into a spiral of fear, death, loneliness, defeat. The experience of living in oneself is painful,
as its existence is always presumed to be impossible. Therefore, leaving that heavy body, even
for a moment, seems to bring relief. One escapes, in a kind of parole, from that prison body.
In silence, the scars that mark the transvestite bodies speak, scream, feel the weight of
existing as another transgressive and abject body. Body that heterosexual cisgender normative
society insists on saying should not exist. But, the great revolt, the shame of the lyrical self is
not in understanding this reality that is already known, but rather in the realization that the
gestures, words, actions and looks of others, which place him as an abject otherness, still has
the power to hurt you physically and psychologically.
But then, would there be room for hope? At first, the encounter with a child and his act
of recognizing him as he really was makes him glimpse the possibilities of another existence
where he can be happy, so his gaze starts to see the world more colorful, different from black
and white to which it is constantly inserted. However, once again, the violence suffered reminds
him of the precariousness of his life. As in Pandora's box, the hope of yesteryear becomes an
evil, as it carries the idea of a given future as something impossible, unrealizable. What remains,
then, is to run, hide and perhaps narrate itself in a poetic fiction, through a word-action that
makes the fears that dominate him and shape his silence begin to lose control over him. The
lyrical self runs in search of self-recovery, a process in which it needs to gather the fragments
of being to build its history.
Cor, Pó
Meu corpo.
Meu copo de soco.
Um soco que no saco dói.
Não pelo soco.
Nem pelo saco.
Mas pelo caco de certeza.
A certeza que meu corpo,
se declarado por uma palavra,
poderá ir para o saco.
Fala! Fala sem fala,
com fala, com falo!
Deixe que essa palavra nasça.
E assim, mesmo sem certeza,
sua identidade teça: Byxa, Travesty, Mulher, Preta (?!).
(FERREIRA, 2019, p. 47).
Our translation: My body/My punch cup/A punch that hurts in the bag/Not for the punch/Not for the bag/But for
sure/The certainty that my body/if declared by a word/can go in the bag/He speaks! Speak without speech/with
Manuela Rodrigues Santos
Doxa: Rev. Bras. Psico. e Educ., Araraquara, v. 18, n. esp. 1, e023006, 2023. e-ISSN: 2594-8385
DOI: https://doi.org/10.30715/doxa.v24iesp.1.18176 11
In “Cor, Pó”, it is noted that the lyric plays with several words through which she draws
attention to her body and the violence that crosses it if it is declared non-compliant. If, on the
one hand, it brings a subject/ subject-in process whose only certainty it has is the awareness
that its body, if declared abject, can be eliminated; on the other hand, she weaves who she is,
even if this initial identity is fluid due to the absence of certainties. However, it is reiterated that
it is necessary to let people speak, it is necessary to let oneself be dominated by affections, by
the courage to exist-in-the-world.
Physical bodies are, therefore, social bodies crossed by the gaze of differentiation that
defines which bodies are intelligible and, therefore, capable of inhabiting livable lives and those
which are not and whose destiny, many times, is annihilation: “certainty that my body, if
declared by a word, could go away”. In this case, “the existence is invaded, cut by a dam of
suffocating, pale, ghostly lava, which takes everything, every measly piece of fabric, of life
itself. it is from the colonial ordering of existence that we suffer” (LEAL, 2021, p. 304, our
translation).
eu trago em meu peito esta profecia
de ser inteireza
que sou em calma, profundidade e desapego
trava sapa brinca com as palavras e busca mover corpo
em caminhar de peso e leveza
em caminhos da vida
trago em meu peito esta profecia de que sou sim inteira
sabendo que inteira sou também o muito que não sei
que inteira sou não sendo uma, tampouco fixa,
assim como tudo que me rodeia
trago em meu peito esta profecia
de que há sim um mundo que nos massacra
que não nos quer vives, inteires, potentes
que nos quer mortes, isolades, solitaries e à disposição de servir
mas que este não é o único mundo
muito menos o mais verdadeiro
eu trago em meu peito esta profecia
de que tudo que precisamos já está aqui conosco
aqui em nós
que não nos falta
não somos falta
somos o encontro do céu com a terra
o sopro do céu
speech, with speech! /Let that word be born/And so, even without certainty/her identity weaves: Byxa, Travesty,
Woman, Black (?!).
Diz/topias: Building places of (r)existence in Brazilian poetry of transgender authorship
Doxa: Rev. Bras. Psico. e Educ., Araraquara, v. 24, n. esp. 1, e023006, 2023. e-ISSN: 2594-8385
DOI: https://doi.org/10.30715/doxa.v24iesp.1.18176 12
a roupa que a terra vestiu pra passear
- diz Ailton Krenak
que somos uma galáxia de seres e células em abundância
ajuntando-se pela força da vida
que somos ligados por redes muitas e invisíveis
que o indecifrável, o indizível, e o imprevisível
são o Presente
que no menor dos espaços há sempre espaço entre
e que o poder criativo do vazio
está sempre ao nosso lado
eu trago em meu peito esta profecia
que por mais que o mundo nos violente
por mais que a gente nos machuque
que quem amamos nos descuide
que por mais que tenham me ferido
usado minha abertura para me violar
sei que sou mais muito mais
do que a soma de minhas dores
somos mais que a soma de nossas dores
pois eu sou a vida
somos a vida
e me transformo
nos transformamos
eu sou mutação
somos mutação
e em mim correm muitos rios
de encantamento e paixão
se entrelaçando
também com as águas do medo
e do desencanto
sendo todos em movimento
mesmo quando lento
e profundo
eu trago em meu peito esta profecia
de que a vida é sim presente
de que somos vida
nós somos vida
repita que nós somos vida
que somos vida
que somos vida
mesmo quando morremos
eu trago em meu peito esta profecia
(SALU, 2022).
I carry this prophecy in my chest/to be wholeness/that I am in calm, depth and detachment/lock sapa plays with
words and seeks to move the body/in walking heavy and light/in ways of life/I carry in my chest this prophecy that
I am whole/knowing that I am whole also the much that I don't know/that I am whole not being one, nor fixed,/just
like everything around me/I carry this prophecy in my chest/that there is indeed a world that massacres us/that
doesn't want us alive, whole, potent/who wants us dead, isolated , solitary and ready to serve/but that this is not
the only world/much less the truest/I carry this prophecy in my chest/that everything we need is already here with
us/here in us/that we don't lack/we are not missing/we are heaven meeting earth/the breath of heaven/the clothes
Manuela Rodrigues Santos
Doxa: Rev. Bras. Psico. e Educ., Araraquara, v. 18, n. esp. 1, e023006, 2023. e-ISSN: 2594-8385
DOI: https://doi.org/10.30715/doxa.v24iesp.1.18176 13
In its prophetic song, the lyric created by Diana Salu reiterates how much we are subject-
in-process, a transformational body project that opens up to the path, to the crossing, understood
from the idea of always being crossing, in motion, a place where one is not; but it continues to
be, whose body is the platform that makes possible the materiality of fabulation and political
imagination; as well as the dimension of presentation of who exists, aware of the responsibility
that their emerging being claims its own existence and a meaning for life. “a struggle to rebuild
and heal the scares produced by the wounds, traumas, racism and other acts of violation that
tear our souls apart, divide us, dissolve our energies and haunt us” (ANZALDÚA, 2021b, p. 1,
our translation)
.
Prophecy, in a way, announces that one does not emerge from nothing, in an ex-
creation. nihilo, but a process of choices through a series of encounters, propositions of being,
what we assimilate and what we reject or, according to Ahmed (2019), the lines that are imposed
on us or the disorienting policies that allow us to connections and other contacts. A contact that
is “bodily and destabilizes this line that divides spaces in the world, thus creating other types
of connections where unexpected things can occur” (AHMED, 2019, p. 231, our translation)
.
And, as our lyrical self demonstrates, this vital crossing is made of explorations,
discoveries, fears, encounters, splits, pains and affections. Draft of provisional routes, whispers
of possibilities, the manifestation of our power to be, exist and resist in the world at the same
time that we build a collectivity that feeds on being together in the break, a force that is neither
the subject nor the world, but crosses everything. “There, here, where we were murdered, and
we became older than death, more dead than dead, and in that depth [...], in that core where we
were placed, we fertilized the more-than-living life, the tangled life of things” (MOMBAÇA,
2021, p. 19, our translation). The prophecy of the lyric is realized under the aegis of lucidity:
that the earth wore for a walk/- says Ailton Krenak/hat we are a galaxy of beings and cells in abundance/gathering
by the force of life/that we are linked by many and invisible networks/that the indecipherable, the unspeakable,
and the unpredictable/are the present/that in the smallest of spaces there is always space between/and that the
creative power of emptiness/is always by our side/I carry this prophecy in my chest that no matter how much the
world violates us/no matter how much we hurt each other/that those we love neglect us/that no matter how much
they hurt me/ used my opening to violate me /I know I'm more so much more/than the sum of my pains/ we
are more than the sum of our pains /because I am life/ we are life /and I transform/ we transform /I am
mutation/ we are mutation /and in me flow many rivers/of enchantment and passion/intertwining/also with the
waters of fear/and the disenchantment/being all in motion/even when slow/and deep/I carry this prophecy in my
chest/that life is present/that we are life/we are life/repeat that we are life/that we are life/that we are life/even
when we die/I carry this prophecy in my chest.
In the original: “a struggle to rebuild the same thing and remedy the frightful products of heredities, traumas,
racism and other acts of violation that hechan pieces of our souls, divide us, dissolve our energies and bring us
together” (ANZALDÚA, 2021b, p. 1).
In the original: “corporal, and destabilizes this line that divides spaces into worlds, creating other types of
connections where unexpected things can occur” (AHMED, 2019, p. 231).
Diz/topias: Building places of (r)existence in Brazilian poetry of transgender authorship
Doxa: Rev. Bras. Psico. e Educ., Araraquara, v. 24, n. esp. 1, e023006, 2023. e-ISSN: 2594-8385
DOI: https://doi.org/10.30715/doxa.v24iesp.1.18176 14
what it is, it knows and decides to be, aware that it is a project, a becoming, mutations that are
the prelude to the deepest transformation: life.
As we can observe, the DIZ/topias of trans authorship emerge as a form of
acuirlombamento, in the terms proposed by Tatiana Nascimento (2019). For whom, cuírlombo
(queer community), in its dual function: resisting and organizing, allows us to reorganize our
own narratives, reinvent dreams, struggles and futures, “create our own words and/or resume
ancestral words; and thereby allowing a community based on the self-determined word to be
created” (NASCIMENTO, 2019, p. 4, our translation).
Like the black LGBTI poetry discussed by Tatiana Nascimento, transgender poetry “is
one of the most important bridges we have to retell and reinvent so much of our erased stories,
it is also an important tool we have to remember this: from future” (NASCIMENTO, 2019, p.
8, our translation). With her we learn to react to pain; to become resistance in collectivity to tell
our narratives; talking about pain as a healing strategy, for treating wounds; to invent words
that manage to say about other spaces, about existences and other possible worlds, about other
ways of creating collectivity. A collectivity that organizes itself in what Jota Mombaça calls
shattering, a contingent collectivity engendered in the encounter of bodies, in the politicization
of wounds, in affections, in being together.
REFERENCES
AHMED, S. Fenomenología queer: orientaciones, objetos, otros. Translated by: Javier Sáez
Álamo. Barcelona: Ediciones Bellaterra, 2019.
ANZALDÚA, G. A vulva é uma ferida aberta & outros ensaios. Translated by: Tatiana
Nascimento. Rio de Janeiro: A Bolha, 2021a.
ANZALDÚA, G. Luz en lo oscuro. Translated by: Violeta Benialgo y Valeria Kierbel.
Buenos Aires: Hekht, 2021b.
BUTLER, J. A vida psíquica do poder: teorias da subjetivação. Translated by: Rogério
Bettoni. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.
BUTLER, J. Os sentidos do sujeito. Translated by: Carla Rodrigues. Belo Horizonte:
Autêntica, 2021.
FERREIRA, L. S. Mem(orais): poéticas de byxa travesty preta sem cortes. Bragança
Paulista: Urutau, 2019.
LEAL, A. C. Escuiresendo: ontologias poéticas. Uberlândia, MG: O sexo da palavra, 2020.
Manuela Rodrigues Santos
Doxa: Rev. Bras. Psico. e Educ., Araraquara, v. 18, n. esp. 1, e023006, 2023. e-ISSN: 2594-8385
DOI: https://doi.org/10.30715/doxa.v24iesp.1.18176 15
LEAL, A. C. Me curo y me armo estudando: a dimensão terapêutica y bélica do saber prete y
trans. In: PELBART, P. P.; FERNANDES, R. M. (org.). Pandemia Crítica: outono 2020.
São Paulo: N-1 Edições; Edições SESC, 2021.
LORDE, A. Irmã outsider: ensaios e conferências. Translated by: Stephanie Borges. Belo
Horizonte: Autêntica, 2019.
MOMBAÇA, J. Não vão nos matar agora. Rio de Janeiro: Cobogó, 2021.
NASCIMENTO, T. Diz/topias: que territórios criam as línguas da poesia lésbica negra?
Suplemento Pernambuco, Recife, n. 170, p. 12-17, 2020.
NASCIMENTO, T. Cuirlombismo literário: poesia negra LGBTI desorbitando o paradigma
da dor. São Paulo: N-1 Edições, 2019.
RODRIGUES, E. Sal a gosto. Brasília, DF: Padê, 2018.
SALU, D. Profecias. Instagram, 2022. Available at: https://www.instagram.com/diana.salu/.
Access: 18 Nov. 2022.
CRediT Author Statement
Acknowledgements: Not applicable.
Funding: Not applicable.
Conflicts of interest: There are no conflicts of interest.
Ethical approval: Since this is a theoretical study, there was no need for ethical appraisal.
Data and material availability: The data and materials used in the work are available for
access upon request with relevant and reasonable justification.
Authors' contributions: The author was responsible for the elaboration and execution of
the research, analysis and discussion of the results analysis and discussion of the results, as
well as the writing and final revision of the text.
Processing and editing: Editora Ibero-Americana de Educação.
Proofreading, formatting, standardization, and translation.