image/svg+xml
A Criança bi e multilíngue – Ultrapassando mitos e obstáculos: Uma breve síntese sobre o bilinguismo
Rev. EntreLínguas,
Araraquara, v. 8, n. 00, e022043, jan./dez. 2022. e-ISSN: 2447-3529
DOI: https://www.doi.org/10.29051/el.v8i00.15250
1
A CRIANÇA BI E MULTILÍNGUE – ULTRAPASSANDO MITOS E OBSTÁCULOS:
UMA BREVE SÍNTESE SOBRE O BILINGUISMO
EL NIÑO BI Y MULTILINGÜE – SUPERANDO MITOS Y OBSTÁCULOS: UNA
BREVE SÍNTESIS SOBRE EL BILINGÜISMO
THE BI-MULTILINGUAL CHILD – OVERCOMING MITHYS AND BARRIERS: A
BRIEF OVERVIEW OF BILINGUALISM
Miriam AKIOMA
1
Ana Margarida Belém NUNES
2
RESUMO
: O presente estudo representa uma revisão de literatura sobre a área do
bilinguismo, no qual se pretende evidenciar algumas caraterísticas naturais de falantes
bilíngues ou multilíngues. Tem como objetivo também, descrever este importante fenômeno
que, muitas vezes, está envolto por mitos, incertezas e equívocos tanto do lado dos pais, como
de alguns profissionais da saúde e professores. Seguindo a cronologia da evolução dos
estudos sobre o bilinguismo e comportamento, descrevem-se ainda desenvolvimento
cognitivo bilíngue, e suas possíveis vantagens e desvantagens. Aborda também as conexões
existentes entre o bilinguismo e a emoção tanto no escopo linguístico-social como
psicológico. São apresentados resultados iniciais no âmbito do bi-multilinguismo em crianças
focando-nos em aspectos como o sentimento de pertença a um grupo social,
language-choice
,
e também receios e incertezas dos pais quanto à educação bilíngue.
PALAVRAS-CHAVE
: Bilinguismo. Desenvolvimento cognitivo. Comportamento bilíngue.
Emoção. Identidade.
RESUMEN
:
El presente estudio representa una revisión de la literatura sobre el ámbito del
bilingüismo, en la que se pretende destacar algunas características naturales de los
hablantes bilingües o multilingües. Tiene como objetivo también, describir este importante
fenómeno que, muchas veces está envuelto por mitos, incertidumbres e malentendidos tanto
por parte de los padres, así como de algunos profesionales de la salud y profesores.
Siguiendo la cronología evolutiva de los estudios sobre el bilingüismo y comportamiento se
discriben etapas del desarrollo cognitivo bilingüe, y sus posibles ventajas y desventajas.
También aborda las conexiones existentes entre bilingüismo y la emoción tanto en el ámbito
lingüístico-social como psicológico. Los primeros resultados se presentan en el ámbito del bi-
multilingüismo en los niños, centrándose en aspectos como el sentimiento de pertenencia a un
1
Universidade de Macau (UM), Taipa – Macau. Doutoranda e pesquisadora assistente em Neurociências no
Centro de Ciências Cognitivas e Cerebrais da Faculdade de Ciências da Saúde. Mestre em Linguística Aplicada
pela Faculdade de Artes e Humanidades. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8653-131X. E-mail:
miriam.akioma@gmail.com
2
Universidade de Macau (UM), Taipa – Macau. Professora Associada do Departamento de Português da
Faculdade de Artes e Humanidades. Doutora em Linguística Clínica pela Universidade de Aveiro, Portugal.
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6003-872X. E-mail: ananunes@um.edu.mo
image/svg+xml
Miriam AKIOMA e Ana Margarida Belém NUNES
Rev. EntreLínguas,
Araraquara, v. 8, n. 00, e022043, jan./dez. 2022. e-ISSN: 2447-3529
DOI: https://www.doi.org/10.29051/el.v8i00.15250
2
grupo social, language-choice, los miedos e incertidumbres de los padres con respecto a la
educación bilingüe.
PALABRAS CLAVE
:
Bilingüismo. Desarrollo cognitivo. Comportamiento bilingue.
Emoción. Identidad.
ABSTRACT
: The present study represents a literature review on the area of bilingualism, in
which it is intended to highlight some natural characteristics of bi- or multilingual speakers.
It also aims to describe this important phenomenon, which is often shrouded in myths,
uncertainties and misunderstandings on the part of parents, as well as some health
professionals and teachers. Following the evolutionary chronology studies on bilingualism
and behavior are also described, the bilingual cognitive development, and their possible
advantages and disadvantages. It also addresses the existing connections between
bilingualism and emotion in both the linguistic-social and psychological scope. Initial results
are presented in the scope of bi-multilingualism in children, focusing on aspects such as the
feeling of belonging to a social group, language-choice, fears and uncertainties of parents
regarding bilingual education.
KEYWORDS
: Bilingualism. Cognitive development. Bilingual behavior. Emotion. Identity.
Introdução
Sabemos que a linguagem, em suas diferentes formas, é o principal instrumento de
comunicação utilizado pelo homem para interagir com o mundo e, em particular, a língua é
vista como um sistema de códigos específicos, reconhecido por uma determinada comunidade
da qual ele faz parte. Para Tomasello (2010)
[...] linguagem, ou melhor, comunicação linguística, não é um tipo de objeto,
formal ou outro, é uma forma de ação social constituída por convenções
sociais para alcançar fins sociais, com base em, pelo menos, alguns
entendimentos compartilhados e propósitos compartilhados entre os
usuários.
Hamers e Blanc (2000) afirmam que com a globalização, a migração de pessoas
aumenta e o contato com novas e diferentes culturas é inevitável, resultando em um número
significativo de sociedades multiculturais. Estas comunidades mistas conduzem a famílias bi-
multilingues, cujas crianças crescem e se identificam com mais de uma cultura, sendo que em
muitas circunstâncias falam línguas diferentes para se comunicarem com os próprios pais, que
falam idiomas distintos. De acordo com Shaffer e Kipp (2010) “a aquisição da língua é
claramente um processo holístico entrelaçado com o desenvolvimento cognitivo e social da
criança e com a vida social e cultural dela”.
image/svg+xml
A Criança bi e multilíngue – Ultrapassando mitos e obstáculos: Uma breve síntese sobre o bilinguismo
Rev. EntreLínguas,
Araraquara, v. 8, n. 00, e022043, jan./dez. 2022. e-ISSN: 2447-3529
DOI: https://www.doi.org/10.29051/el.v8i00.15250
3
O bilinguismo é já um fenômeno comum no mundo atual não sendo exclusivo, nem
privilégio, de uma qualquer classe social específica. Ao longo do tempo, tem-se vindo a tentar
entender não só o processo em si, mas, também, os efeitos cognitivos que o bilinguismo pode
trazer, bem como os seus efeitos positivos ou negativos.
No trabalho que aqui propomos, o principal objetivo é o de evidenciar algumas das
possíveis influências do bilinguismo, de acordo com uma abordagem interdisciplinar -
psicolinguística e sociolinguística – na manifestação e compreensão de emoções, bem como,
de alguma forma, «desmistificar» as ocorrências de
code-switching
e
code
-
mixing
dentro
desta perspectiva emocional e afetiva.
No que diz respeito aos bilíngues
per si
, no caso de diferenças individuais ou até
mesmo à própria visão geral desse fenômeno que abrange grande parte mundo (como no caso
dos imigrantes, refugiados e acolhidos), estudos relacionados ao bilinguismo ainda carecem
de uma base e estrutura mais consolidada. Há necessidade, portanto, de trazer mais
informações à população, a fim de esclarecer alguns pensamentos e definições, muitas vezes
equivocadas. Com o grande número de famílias que deixaram seus países de origem, que hoje
criam os filhos em países de língua e culturas diferentes, é comum que esses pais se sintam
inseguros e receosos quanto à educação que devem possibilitar aos seus filhos. Aparecem,
nestes contextos, as diversas dúvidas e ‘medos’ relacionados com o bilinguismo e identidade
cultural; aquisição e aprendizagem de línguas, integração e pertença a um determinado grupo
social.
A reflexão e algumas pequenas observações aqui apresentadas procuram, de forma
sucinta e objetiva, sustentar informações relevantes baseadas em estudos empíricos sobre o
processamento da linguagem em bilíngues e monolíngues, a relação dos bilíngues com as
emoções em cada língua, e as consequências do bilinguismo ao longo da vida.
Estudos e definição de bilinguismo
Tradicionalmente, a área do bilinguismo investiga a competência e desempenho dos
f
alantes que se comunicam em duas ou mais línguas, em uma perspectiva do próprio
fenômeno do bilinguismo. Recentemente, surgiram preocupações sobre as limitações desses
estudos nesta perspectiva, o que fez com que essa visão fosse ampliada e que esses estudos
também fossem examinados e analisados como fenômenos de aquisição trilíngue, aquisição
de terceira língua, competência e performance dos falantes multilíngues (CENOZ;
HUFEISEN; JESSNER, 2001; 2003).
image/svg+xml
Miriam AKIOMA e Ana Margarida Belém NUNES
Rev. EntreLínguas,
Araraquara, v. 8, n. 00, e022043, jan./dez. 2022. e-ISSN: 2447-3529
DOI: https://www.doi.org/10.29051/el.v8i00.15250
4
Na área da aquisição de segunda língua (SLA),
competência
é designada como o
conhecimento inconsciente que o falante tem da linguística, sociolinguística, e princípios
comunicativos que lhe permitem a interpretação de uma língua em particular e tipicamente
deduzida através de testes metalinguísticos. Seguindo as recentes evoluções na área da
antropologia linguística, a
performance
, refere-se não somente à língua em uso, como também
às construções criativas, uma vez que, o indivíduo recorre à criatividade tanto na
aprendizagem de uma LE (língua estrangeira) como na aquisição da sua Língua Materna
(LM). Finalmente, a
proficiência
, se refere em geral, ao nível de conquistas, feitos e
realizações em uma língua em particular, em relação a habilidades como a escrita e a fala, que
são medidos através de testes padrão (PAVLENKO, 2007).
No que concerne à história e tradição da área do bilinguismo, neste trabalho o termo
bilinguismo
é designado como a àrea de pesquisa que examina tanto o bilinguismo, como o
multilinguismo (BAKER, 2011; LUNA; RINGBERG; PERACCHIO, 2008; ROMAINE,
2001). Fenômenos estes, que se empenham em estudar e analisar a produção, o processo,
desenvolvimento e compreensão de duas ou mais línguas.
O bilinguismo é definido de diferentes modos de acordo com o contexto em que é
inserido. Bloomfield (1933) e seu pensamento filiado à linguística estrutural, onde
conceptualização é homogênea, define uma pessoa bilíngue como aquela que pode falar duas
línguas com a mesma fluência de nativos, ou seja, o conhecimento e uso perfeito de uma ou
mais línguas. Para Weinreich (1953), o bilinguismo seria o uso alternado de duas línguas. Já
de acordo com Haugen (1953), o bilinguismo começaria com a habilidade de produzir
sentenças completas e com sentido na segunda língua. E, finalmente, de acordo com Edwards
(2004), as primeiras definições de bilinguismo se limitavam apenas a defini-lo como o uso
perfeito de duas línguas diferentes. Contudo, as definições mais recentes permitem uma maior
variação do que é a definição e do que sejam as competências do indivíduo bilíngue.
Para Grosjean (1985) ser bilíngue não se resume a dois monolíngues em uma só
pe
ssoa. Na perspectiva da psicolinguística, o bilinguismo pode ser o conhecimento e uso de
duas ou mais línguas, e a apresentação de informações em duas línguas ou dialetos diferentes
no dia-a-dia (GROSJEAN, 2013). Segundo o autor, essa definição incluiria desde o imigrante
que fala com dificuldade a língua do país que o acolheu (razões de sobrevivência e cidadania)
até o intérprete profissional que é totalmente fluente nas duas línguas (razões profissionais e
económicas). E assim compreende-se que, para além da diversidade entre os falantes, de
modo geral, todos compartilham de algo em comum, todos utilizam duas ou mais línguas no
cotidiano.
image/svg+xml
A Criança bi e multilíngue – Ultrapassando mitos e obstáculos: Uma breve síntese sobre o bilinguismo
Rev. EntreLínguas,
Araraquara, v. 8, n. 00, e022043, jan./dez. 2022. e-ISSN: 2447-3529
DOI: https://www.doi.org/10.29051/el.v8i00.15250
5
Butler (2013) dividem o bilinguismo em três diferentes categorias, seguindo a
tipologia inicialmente proposta por Weinreich (1953) em relação à organização de códigos
linguísticos e unidades de significado na memória: o bilinguismo
composto
,
coordenado
e
subordinado
. No bilinguismo composto são processados, simultaneamente, dois códigos
linguísticos. Neste tipo de bilinguismo, os vocábulos “livro” e “book” possuem o mesmo
conceito. Pode-se tomar por exemplo uma criança que adquire, ao mesmo tempo, duas línguas
dada a exposição e input que tem a ambas, vivendo num ambiente bilíngue.
No bilinguismo coordenado, os códigos linguísticos estão separados, cada qual com
seu conjunto de unidades de significado. Assim, recorrendo ao exemplo anterior, “livro” e
“book” têm unidades de significado distintas para uma criança em idade escolar que utiliza
uma língua em casa e outra língua diferente em âmbito de aprendizagem formal/escolar,
(WEINREICH, 1953). Quanto ao bilinguismo subordinado, os códigos linguísticos da
segunda língua (L2) são interpretados pela filtragem através da primeira (L1), ou seja, o
lexema “book” passaria por um processo de “tradução”.
Seguindo a tipologia clássica do bilinguismo em relação à proficiência em duas
línguas, proposta primeiramente por Peal e Lambert (1962), o bilinguismo encontra-se
dividido em
balanceado
e
dominante
. No bilinguismo
balanceado
o falante apresenta
proficiência, domínio e competências iguais tanto na sua L1 como na L2. No bilinguismo
dominante
a proficiência da L2 pode variar, mas não atinge o mesmo nível de domínio e
competência da L1, ou seja, a L1 será a língua dominante.
A questão sobre como o bilinguismo pode ser definido recebe atenção universal, é
necessário compreender, antes de tudo, sua forma individual, psicológica, cultural e contexto
social para que este seja interpretado. Justifica-se assim a existente colaboração de pesquisas
em diversas áreas do saber como a antropologia, linguística, psicologia, neurociência, entre
outras.
O bilinguismo: Cultura e Identidade
O biculturalismo ainda é um tópico pouco estudado dentro da vasta área do
bi
linguismo. Bilíngues biculturais, ou somente, biculturais são aqueles indivíduos que têm
internalizadas duas diferentes culturas e são capazes de se comunicarem nas línguas
associadas a essas culturas (LUNA; RINGBERG; PERACCHIO, 2008). Frequentemente nos
deparamos com biculturais que alegam “sentir-se como uma pessoa diferente” quando falam
línguas diferentes (LAFROMBOISE; COLEMAN; GERTON, 1993). Lembramos, portanto,
image/svg+xml
Miriam AKIOMA e Ana Margarida Belém NUNES
Rev. EntreLínguas,
Araraquara, v. 8, n. 00, e022043, jan./dez. 2022. e-ISSN: 2447-3529
DOI: https://www.doi.org/10.29051/el.v8i00.15250
6
que o bilinguismo e o biculturalismo não são necessariamente, coexistentes e que é
perfeitamente possível encontrarmos pessoas bilíngues que não são biculturais. Há também
casos em que os imigrantes adquiriram uma segunda língua e aprenderam sobre a cultura do
país que os acolheu, mantendo também as suas próprias línguas e cultura de origem.
De acordo com Grosjean (2008), há um grande impacto sobre os bilíngues biculturais
a nível pessoal (psicológico / cultural) e cognitivo, e no conhecimento e processamento da
língua. Nguyen e Benet-Martinez (2007) caracterizam deste modo os indivíduos biculturais:
1. Tomam parte em diferentes níveis, de duas ou mais culturas; 2. Adaptam, ao menos em
parte, suas atitudes, comportamentos, valores, linguagens, entre outros, para esta cultura; 3.
Combinam e mesclam aspectos das culturas envolvidas. Alguns destes aspectos vêm de uma
ou de outra cultura, enquanto outros são misturas dessas culturas.
É comum dizer que os biculturais gerenciam e adaptam seu comportamento em
determinadas situações onde a troca de língua é necessária, contudo, há uma errônea
idealização de que a troca de línguas acarreta também a troca de personalidade. Se isso fosse
possível, como seria com os monoculturais? Já que eles possuem somente uma cultura para se
espelharem. Por outro lado, os biculturais são capazes de modificar seu comportamento e
atitude de acordo com a ocasião ou contexto. Em suma, biculturais mudam a sua “base
cultural” para melhor se adaptarem ao contexto cultural do ambiente em que estão. Logo, não
é a língua que influencia essa mudança, mas sim as circunstâncias e o local.
É fundamental ressaltar que a língua e a identidade possuem uma relação intrínseca,
isto é, o ato de falar a língua pertencente a uma determinada comunidade, desperta no falante,
um senso de pertença a ela. Bialystok (2009) afirma que os bilíngues estão ligados a mais de
uma comunidade étinico-cultural pela língua. Em outras palavras, o falante bilíngue não está
apenas ligado a duas línguas, ele está também ligado a dois sistemas distintos de sons e
léxicos, envoltos por um complexo contexto sócio-político-cultural, e deve saber lidar não
somente com questões linguísticas, mas também com a cultura de mais de uma comunidade.
Um estudo anterior de Nunes e Akioma (2019), evidencia que mesmo de tenra idade é
p
ossível existir já, no indivíduo, uma ideia de pertença a uma nova cultura onde a criança vive
e é educada. Na análise de um desenho pintado por Carla (nome fictício), uma criança de 6
anos de idade, caucasiana, é possível aferir, pelas cores escolhidas e explicações da criança
que ela tem fortes ligações emocionais com a China, e o fato de usar a língua portuguesa em
casa com seus pais, a língua chinesa para brincar com amigos do bairro, e a língua inglesa na
escola, em nada interfere no grande carinho e respeito que sente pelo local onde cresceu.
Carla é filha de pais brasileiros e foi no país deles que nasceu. Com perto de 1 ano de idade
image/svg+xml
A Criança bi e multilíngue – Ultrapassando mitos e obstáculos: Uma breve síntese sobre o bilinguismo
Rev. EntreLínguas,
Araraquara, v. 8, n. 00, e022043, jan./dez. 2022. e-ISSN: 2447-3529
DOI: https://www.doi.org/10.29051/el.v8i00.15250
7
foi viver na China, numa cidade caraterizada por ter uma grande comunidade brasileira, perto
de 3.000 pessoas, e de grande vínculo ao país de origem e suas tradições. Esta comunidade
vive, inclusive, toda muito próxima. Todos os anos a família passa cerca de 2 meses no Brasil,
daí que Carla conheça bem o seu país natal. Dentre várias atividades, num estudo sobre
bilinguismo, foi pedido à criança que pintasse um desenho com cores à sua escolha e, no final,
foi-lhe pedido que explicasse as cores utilizadas.
Foi possível perceber que as cores escolhidas em muito estava relacionadas com os
sentimentos da criança, denotando-se uma ligação emocional com a China. Assim, o vestido
azul que lembra o mar da China é, provavelmente, a primeira reminiscência que tem do mar.
O vermelho, que segundo ela, é muito usado na China, alude não só à bandeira da República
Popular da China, mas também a todas as maiores festividades chinesas. Curioso, são as mãos
amarelas que, aparentemente, seriam as dela, visto que a cor dos asiáticos, conforme a
classificação dos grupos humanos em antropologia, é amarela. Há por parte da criança um
profundo enraizamento na cultura e tradições chinesas, de salientar que Carla fala português,
inglês e chinês.
Figura 1
– Pintura e respostas de Carla às perguntas feitas pelas autoras.
Fontes: Nunes e Akioma (2019)
Assim enfatiza Edwards (2004), quando afirma:
“Beyond utilitarian and unemotional
instrumentality, the heart of bilingualism is belonging”
,
isto é, muito mais do que o uso de
um ou mais sistemas linguísticos, as questões mais importantes no bilinguismo são os motivos
e fatores sociais e psicológicos envolvidos nesse processo.
Para Pavlenko (2005),
diferentes tipos de bilíngues se comportam de forma distinta,
em contextos naturais e experimentais. Simultaneamente, bilíngues biculturais podem
desenvolver representações diferentes daqueles que são considerados bilíngues sequenciais ou
tardios; e entre os bilíngues tardios, falantes de uma língua estrangeira com uma exposição
image/svg+xml
Miriam AKIOMA e Ana Margarida Belém NUNES
Rev. EntreLínguas,
Araraquara, v. 8, n. 00, e022043, jan./dez. 2022. e-ISSN: 2447-3529
DOI: https://www.doi.org/10.29051/el.v8i00.15250
8
mínima à língua alvo podem diferir dos falantes de L2 que socializam na língua alvo dentro
da comunidade. Segundo a autora, os conceitos que influenciam a língua falada seriam:
1.
Fatores individuais
que incluem as histórias de aprendizado da língua do falante, a
dominância e proficiência da língua, o grau de biculturalismo e aculturação do indivíduo e a
habilidade em dominar a questão;
2. Fatores interacionais
que incluem o contexto da
interação da língua, o estado linguístico do interlocutor (ex. Familiaridade com os falantes);
3.
Fatores linguísticos e psicolinguísticos
que incluem o grau da relação entre representações na
língua em questão (em conceitos de comparação) e o grau no qual o conceito de uma língua
pode ser expresso em outra e o valor semântico que veicula.
Recentes investigações na área do bilinguísmo em relação ao desempenho de tarefas
verbais e não-verbais em contextos naturais mostram que as representações conceituais
podem ser transformadas em socialização na língua segunda, na fase adulta. Estes resultados
são de extrema importância para estudar as implicações dos estudos do léxico mental
bilíngue. Isso sugere que as representações conceituais (testes realizados com tarefas de
nomes e reconhecimento) dos indivíduos bilíngues são um complexo e dinâmico fenômeno.
Consequências do bilinguismo no desenvolvimento cognitivo
Efeitos cognitivos positivos
Sustentado por inúmeros estudos, o bilinguismo tem sido ligado ao desenvolvimento
cognitivo de crianças e adultos revelando que ele possui vantagens e desvantagens, o que é,
muitas vezes, a preocupação principal dos pais e dos educadores.
Ellen Bialystok (2005) realizou estudos em crianças bilíngues e o desenvolvimento
cognitivo, onde concluiu que o bilinguismo acelera o desenvolvimento das funções cognitivas
em geral, relacionadas à atenção e inibição, sendo este um facilitador para o cumprimento e
processamento de tarefas onde estas funções são necessárias. Lee e Kim (2011) observaram
que os bilíngues possuem certas vantagens, e assim explica que quanto mais alto é o grau de
competência linguística do falante bilíngue, mais criativo ele é.
Num estudo realizado por Costa, Hernandez, e S
ebastián-Gallés (2008), envolvendo
jovens adultos (com uma média de 22 anos de idade) perceberam que os bilíngues tinham
uma melhor
performance
que os monolíngues em
attentional network task
(FAN
et al
., 2002).
Os autores concluiram que “esses resultados mostram que o bilinguismo exerce influência na
obtenção de eficientes mecanismos de atenção por jovens adultos que deveriam estar no auge
de suas capacidades de atenção”.
image/svg+xml
A Criança bi e multilíngue – Ultrapassando mitos e obstáculos: Uma breve síntese sobre o bilinguismo
Rev. EntreLínguas,
Araraquara, v. 8, n. 00, e022043, jan./dez. 2022. e-ISSN: 2447-3529
DOI: https://www.doi.org/10.29051/el.v8i00.15250
9
Os estudos realizados por Bialystok, Craik e Freedman (2007) sugerem que o
bilinguismo pode proteger contra a doença de Alzheimer, uma doença que se agrava ao longo
dos anos e consiste na perda das funções cognitivas. Para dar suporte a esta suposição,
pesquisadores da área (DRISCOLL; TRONCOSO, 2011) começaram a considerar as noções
de
reserva cognitiva (RC)
e após examinarem 184 estudos de caso e analisarem pacientes
bilíngues e monolíngues com Alzheimer, observaram que os sintomas da doença nos
bilíngues aparecem quatro anos mais tarde em comparação com os monolíngues. Um estudo
mais recente realizado por Calabria
et al
. (2020) enfatiza que o bilinguismo pode contribuir
para as reservas cognitivas contra doenças neurodegenerativas, e que o bilinguismo ativo pode
ser o maior aliado para o atraso dos primeiros sintomas do Comprometimento Cognitivo Leve
(CCL). Uma meta-análise contendo vinte e um estudos referentes ao bilinguismo e proteção
contra o declínio cognitivo concluída por Anderson, Hawrylewicz e Grundy (2020) revelou
evidências de um tamanho de efeito moderado em efeitos protetivos relativos à idade do
aparecimento dos sintomas preliminares do Alzheimer, no entanto, foi constatada uma fraca
evidência de que o bilinguismo de fato previna a ocorrência dessas disfunções
neurodegenerativas. De qualquer forma, é importante salientar que, podendo o nosso cérebro
ser comparado com um músculo ele, como qualquer outro, precisa ser treinado para se manter
saudável. Hoje em dia, é cada vez mais comum encontrar indivíduos com mais de 65 anos a
aprender novas línguas, artes e ofícios, havendo a noção de que o nosso cérebro precisa ser
constantemente surpreendido e estimulado.
Os estudos de Bialystok (2018) indicam que os falantes bilíngues experimentam
diferentes “adaptações bilíngues” ao longo de suas vidas, como por exemplo: os bebês que
crescem em um ambiente bilíngue desenvolvem diferentes estratégias de atenção; Já na
infância, as crianças bilíngues são mais adeptas de tarefas baseadas em conflitos e por conta
disso, podem ter um vocabulário reduzido em uma das línguas; nos jovens adultos, há
mudanças consistentes nas propriedades estruturais e funcionais do cérebro; nos idosos,
entende-se que são mais resilientes ao declínio cognitivo e sintomas de demência.
Genesse (2010) recomenda que para alcançar totais benefícios cognitivos na instrução
e letramento de um bilinguismo proficiente, todas as crianças deveriam ter acesso a uma
educação bilíngue, a fim de prepará-las para a sociedade globalizada dos dias atuais.
Os estudos acima mencionados defenderam uma correlação positiva entre o
b
ilinguismo e a cognição, embora ainda encontremos alguma resistência e insegurança
referentes à educação bilíngue. Portanto, é fundamental que mais pesquisas nesta área venham
image/svg+xml
Miriam AKIOMA e Ana Margarida Belém NUNES
Rev. EntreLínguas,
Araraquara, v. 8, n. 00, e022043, jan./dez. 2022. e-ISSN: 2447-3529
DOI: https://www.doi.org/10.29051/el.v8i00.15250
10
apresentar evidências empíricas sobre os efeitos benéficos da educação bilíngue, não somente
na cognição e tarefas linguísticas, como também os benefícios socioculturais e interacionais.
Efeitos cognitivos desfavoráveis
Estudos prévios da década de 1920 (eg., BERRY, 1922; GIARDINI; ROOT, 1923;
JORDAN, 1921; RIGG, 1928), apontavam uma correlação negativa a respeito da relação
entre o bilinguismo e a cognição. Provavelmente, este fato foi influenciado pela falta de rigor
experimental e também pela visão sociopolítica anti-imigração que prevalecia nos Estados
Unidos nessa época. Estes resultados desfavoráveis à cognição perduraram até
aproximadamente a década de 60. Baker (2008) afirma que o resultado dominante da maioria
dos estudos desse tempo era de que os bilíngues eram inferiores aos monolíngues,