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“E
se?” Implodindo o
s
p
ilares
da m
ode
rnidade
: U
ma resenha
sobre o livro
A Dívida Impagável
Estud. soc
iol.,
Araraquara
,
v.
27
, n.
00
,
e0220
14
,
jan./
dez
. 20
22
.
e
-
ISSN: 1982
-
4718
DOI:
https://doi.org/
10
.52780/res.v27i00.13726
1
“
E SE?” IMPLODINDO OS PILARES DA MODERNIDADE: UMA RESENHA
SOBRE O LIVRO
A DÍVIDA IMPAGÁVEL
"¿Y SI?" EN BUS
CA DE LOS PILARES DE LA MODERNIDAD: UNA REVISIÓN DEL
LIBRO
A DÍVIDA IMPAGÁVEL
"WHAT IF?" IMPLODING THE PILLARS OF MODERNITY: A REVIEW ON THE
BOOK
A
DÍVIDA IMPAGÁVEL
Guilherme MARCONDES
1
[
...
]
como uma imagem anti
-
dialética,
A Dívida Impagável
não faz mais do
que registrar, ao tentar interromper, o desdobrar da lógica perversa que oclui
a maneira como, desde o fim do século XIX, a racialidade
,
op
era como um
arsenal ético em conjunto
–
por dentro, ao lado, e sempre
-
já
–
a/diante das
arquiteturas jurídico
-
econômicas que constituem o par Estado
-
Capital.
(
FERREIRA DA SILVA, 2019, p. 33
,
grifo do a
utor
).
Figura
1
–
N
otícias sobre o assassina
to de
J
oão
Pedro, jovem negro de 14 anos, em São
Gonçalo
-
RJ
, durante a operação das polícias federal e civil em plena pandemia da Covid
-
19,
em 18 de maio de 2020.
Fonte:
Print de b
usca no Google com o nome João Pedro
1
Universidade Estadual do Ceará
(PPGS/UECE)
,
Fortale
za
–
C
E
–
Brasil. Pós
-
doutorando
(com bolsa
PNPD/CAPES)
no Programa de Pós
-
Graduação em Sociologia
.
Doutor e mestre em Sociologia e Antropologia
pelo
P
rograma de Pós
-
Graduação em Sociologia
e Antr
opologia
PPGSA/UFRJ)
.
ORCID
:
https://orcid.org/0000
-
0001
-
6114
-
7944
.
E
-
mail:
gui.marcondesss@gmail.com
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Guilherme
MAR
C
ONDES
Estud. soc
iol.,
Araraquara
,
v.
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, n.
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SN: 1982
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DOI:
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2
Porque não há uma crise ética global
e não
som
ente local com as mortes de jovens
negros(as/es) pelo Estado? Qual o papel da racialidade no pensamento moderno? E se
abandonarmos os procedimentos críticos que têm por fundamento as bases ontológicas e
epistemológicas da modernidade, o que aconte
ceria
?
Es
tas são as principais perguntas postas
por
Ferreira da Silva
2
em
A Dívida Impagável
(2019).
No livro, a autora toma a racialidade
3
como foco e trata da importância de uma transformação completa de pensamento a partir de
uma perspectiva
poét
ica negra fe
m
ini
sta
que seria capaz de pôr abaixo os pilares da
modernidade
4
, a fim de constituir um mundo distinto em termos éticos, políticos, jurídicos e
estéticos. Ferreira da Silva realiza uma crítica contundente ao pensamento moderno; aquele
localiza
do (históric
a
e
politicamente) onde os tentáculos coloniais, capitalistas e patriarcais
pousaram e instituíram um modo societário.
Denise Ferreira da Silva
(2019)
propõe, de fato, “o fim do mundo como a gente
conhece”
5
. Posto que para a autora, esse mundo tal qu
al o
c
onh
ecemos é sustentado por
pilares que nunca incluíram e nem incluiriam escravizados(as/es) e indígenas, aqueles
indivíduos subjugados/expropriados há séculos. Afinal, a forma como pensamos dentro das
normas desse mundo só nos permitiria falar de exc
lusão
e d
iscriminação, não nos permitindo
articular um discurso capaz de ir ao centro da violência racial, que é, fundamentalmente, uma
violência colonial (que é física, porque inclusive mata e que também expropria não apenas
materialmente). Ferreira da Si
lva r
e
ali
za, então, um mapeamento do pensamento moderno
ocidental, em especial, via filosofia, buscando suas bases ontológicas e epistemológicas.
Em seu mapeamento acerca do pensamento moderno, Denise Ferreira da Silva, além
de dialogar com a física cláss
ica,
a
an
tropologia biológica, bem como com a antropologia e
sociologia feitas até tempos atuais, retoma autores como René Descartes (1596
-
1650),
Kant
(1724
-
1804) e
Hegel
(1770
-
1831).
Sendo fundamental a reconstrução que
ap
resenta a partir
de Descartes e sua
má
x
ima
“penso, logo existo”, responsável pela separação entre corpo e
mente e, assim, pela construção do sujeito moderno como um sujeito autodeterminado que
pode conhecer o Mundo, mas que a ele não se mistura. Já com K
an
t a autora remonta o sujeito
que ser
ia
um
sujeito científico, em um sistema guiado pelo poder da razão e separado da
2
Professora titular na
University of British Columbia, no Canadá, e diretora do Instituto de Justiça Social
na
mesma instituição.
3
Conforme expr
e
sso na
epígrafe deste texto
,
Ferreira da Silva (2019),
com
preende a racialidade como uma das
ferramentas de dominação produzidas no b
ojo da modernidade.
4
Explicitados a seguir.
5
Fala da pesquisadora em: O Evento Rac
i
al, Uma Proposição de
Denise Fer
reira
da Silv
a
.
(ALI DO ESPIRITO
SANTO, 2017)
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“E
se?” Implodindo o
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ilares
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rnidade
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ma resenha
sobre o livro
A Dívida Impagável
Estud. soc
iol.,
Araraquara
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3
esfera do divino. E, com Hegel
a autora trata de sua crítica ao pensamento kantiano e a
proposição do método dialético.
A partir das no
çõe
s brevemente mencionadas,
Ferreira
da
S
ilv
a,
a fim de responder às
perguntas (éticas, jurídicas e sociológicas) que abrem este texto, remonta aqueles que seriam
os três pilares do pensamento moderno, nomeados como:
separabilidade
,
determinabilida
de
e
sequencialidade
, que sustentariam o pens
ame
n
to
moderno operando “na sintaxe ética em que
a indiferença, como posicionamento moral (comum e pública), faz sentido”
(
FERREIRA DA
SILVA, 2019, p.
127
). Ou seja, uma ética pautada pela lógica da exclusão e da
ob
literação,
internamente articulada pela s
ubj
u
gaç
ão racial. É, neste sentido, que os pilares
ontoespistemológicos identificados pela autora suportam um Mundo em que jovens
negros(as/es) são assassinados(as/es) por forças do Estado e isso não cria uma cri
se
ético
-
jurídica em termos globais.
Ferreir
a d
a
Si
lva
desvela os modos de operação do pensamento moderno relativamente
à racialidade através das mencionadas categorias construídas a partir de seu mapeamento,
colocando em evidência o que está em dis
put
a quando sua proposta é subverter as formas de
p
ens
a
men
to legadas pela modernidade em prol de pensarmos o Mundo
outramente
6
. Destarte,
estes pilares ontoepistemológicos são analisados ao longo dos quatro ensaios reunidos que
compõem o livro, assim divid
ido
:
Introdução: (Di)Ante(s) do Texto
; capítulo I.
A S
e
r
A
nunciado ou Conhecendo (n)os Limites da Justiça
; capítulo II.
Pa
ra uma Poética Negra
Feminista:
A Busca /Questão da Negridade Para o (Fim do) Mundo
; capítulo III.
1 (vida) ÷ 0
(neg
ridade) = ∞
–
∞ ou
∞/
∞:
sobre a matéria além da equação de valor
; e, capítulo
IV.
Dívida Impagável: Lendo Cenas de Valor Contra a Flecha do Tempo
. Além de contar com
um prefácio de autoria de Jota Mombaça e Musa Michelle Mattiuzzi, intitulado
Carta à
leito
ra preta do fim dos tempos
, e ainda, um posfácio de Pedro Daher chamado
O abrir
-
mão
para o futuro
.
Os pilares ontoepistemológicos trazidos por Ferreira da Silva, são alvo de sua análise
na medida em que tais modelos/ferramentas de pensamento estruturam o m
undo tal qual o
conhecemos. Indicam, portanto, mecanismos/princípios éticos que organizam o pensamento
moderno. A
separabilidade
é, deste modo, mapeada desde Descartes, mostra
-
se presente no
programa kantiano e não desaparece com Hegel, bem como se apresen
ta quando, no capítulo
I, a autora propõe uma análise acerca dos limites da justiça a partir de sua pergunta sobre o
6
Resumidamente
, Ferreira da Silva (2019)
fala em
outridade
para se referir às epistemologias
, ontol
ogias e
vivências que não se enquadram no modelo proposto/i
nstituído/imposto
p
ela modernidade, em que vigoram a
sepa
rabilid
ade
, a
determinabili
dade
e a
sequencialidade
.
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Guilherme
MAR
C
ONDES
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assassínio de jovens negros(as/es) pelo Estado. Sendo a
separabilidade
um princípio que
comporta a diferença posto que seja com separação e
ntre os itens da equação. Ou seja, seria
um mecanismo/princípio responsável não apenas por uma separação entre corpo e mente, mas
que influi, inclusive, na separação entre categorias raciais distintas de indivíduos.
Em outra ponta do triângulo, a
determin
abilidade
, que seria crucial ao pensamento
kantiano por tratar do que Descartes chamava de “nexo” das consequências, seria uma ação da
mente racional para estabelecer algo com certeza. A
determinabilidade
, analisada no capítulo
II, pressupõe um
universal
q
ue funcionaria como determinante formal. É assim que a autora
compreende, por exemplo, como a
determinabilidade
é operada através da noção de
humanidade (fechada nas fronteiras europeias), pois somente ela compartilharia os poderes
determinantes da dita ra
zão universal, por possuir livre
-
arbítrio e autodeterminação.
Por fim, a
sequencialidade
, analisada no capítulo III, seria a linearidade temporal
mediada pela
determinabilidade
. Ou seja, diz respeito à linearidade do pensamento moderno
que ocluiria a colo
nialidade e a escravidão, apesar de sua suposta inclusão. Denise Ferreira da
Silva apresenta, então, os modos como estas categorias, brevemente explicitadas, operam na
constituição das regras que estruturam as relações sociais (entre humanos) e com o própr
io
Mundo (não humano), tal qual proposto pela modernidade.
Por mais abstratos que pareçam os mencionados pilares, o seu dessecamento pela
autora se dá paralelamente a apresentação de outros modos de pensar, com a centralidade
conferida à questão da racial
idade, demonstrando, ainda, como esta é constituída por esse
legado moderno. Assim sendo, a racialidade cria, de acordo com Denise Ferreira da Silva,
uma diferença humana com base na razão kantiana, em que nem todos seguiriam a chamada
trajetória do espíri
to, sendo o pensamento abstrato europeu tomado como expressão mais
elevada do espírito na evolução humana.
Com base na
separabilidade
, na
determinabilidade
e na
sequencialidade
, ocorreria um
processo contínuo de acumulação da expropriação de valor dos ind
ivíduos racializados e
historicamente subjugados. Dirá Ferreira da Silva
(
2019, p.
180
-
181)
:
Ao longo dos últimos cento e cinquenta anos, desde a apresentação da versão
clássica do materialismo histórico, a produção capitalista (como delineada
por Marx e
seus seguidores) n
ã
o interrompeu a expropriação colonial. Na
verdade, o contrário ocorreu. Os últimos duzentos testemunharam episódios
repetidos da expropriação colonial de terras, trabalho e recursos, garantida
por arquiteturas jurídico
-
econômicas que ope
ram dentro e fora
d
o Estado
-
nação, ou seja, da figuração mais recente do corpo político liberal.
Indubitavelmente encontramos, hoje, a forma jurídica colonial possibilitando
o capital global. Considere, por exemplo, os diversos lugares no mundo que
se enco
ntram num estado d
e
violência contínua
–
várias partes no Oriente
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“E
se?” Implodindo o
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sobre o livro
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DOI:
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5
Médio, continente africano, bairros economicamente despossuídos e áreas
rurais na América Latina e no Caribe, ou bairros negros e latinos dos Estados
Unidos. Violência que, além de facilitar
a expropriação de
terras, recursos e
mão
-
de
-
obra, também transforma esses espaços em mercados para a venda
de armas e inúmeros serviços e bens fornecidos pela indústria da segurida
de.
É, deste modo, que a autora analisa a crise global
do mercado finance
iro de 2007 e
2008: como um evento racial fundamental para explicitar o modo como a racialidade opera no
processo de acumulação global do capital. Posto que os empréstimos
subprime
eram
destinados a pessoas com defasagem econômica, que n
ã
o conseguiam obter
empréstimos
normais. Pessoas negras e latinas, das classes trabalhadora e média baixa, compreendidas
pelas instituições financeiras como “instrumentos financeiros e não entidades morais, isto é,
pessoas
” (FERREIRA DA SILVA, 2
019, p.
157)
.
Os empréstimos
s
ubprime
extraiam, por
conseguinte, lucro do déficit financeiro de pessoas tomadas como instrumentos para o
enriquecimento das instituições financeiras. Tais empréstimos operariam como ferramentas de
subjugação colonial e racial, que compõ
e
m o que a autora
chama de
dialética racial
, que se
daria com a transubstanciação da expropriação colonial em um déficit que seria
natural
.
Destarte, Denise Ferreira da Silva trata, em especial no capítulo IV, da falta de
ferramentas do materialismo histó
r
ico capazes de ab
ordar o papel da escravidão na
acumulação do capital, posto que, como argumenta, a escravização é constitutiva das
arquiteturas jurídico
-
econômicas próprias do (e não temporalmente (separadas do) ou
anteriores ao) capital. Sendo ainda vig
e
ntes as regras da
estrutura social legadas pela
modernidade e seus três pilares, que ocluem a violência racial em suas diversas matizes. Deste
modo, o conceito de
dívida impagável
, que dá título ao livro, diz respeito ao continuado
processo de expropriaçã
o
do elemento negr
o na sociedade ocidental, tratando
-
se, portanto, de
“uma obrigação que se carrega
,
mas que não deve ser paga
” (FERREIRA DA SILVA, 2019,
p.
154).
Ou ainda, são dívidas nos termos econômicos, mas não no sentido ético, por isso, não
deveriam
s
er saldadas. Fat
o explicitado pela autora em sua análise de
Kindred
(1979) de
Octávia E. Butler
e dos mencionados empréstimos
subprime
.
O mundo legado pela modernidade com seus pilares ontológicos e epistemológicos é
chamado pela autora de
Mundo Ordenado
,
onde pessoas est
ariam marcadas pela racialidade,
separadas entre si e do restante do que compõe o Mundo. Desta maneira, a virada de
pensamento proposta pela autora tem base na noção de
Plenum
7
, que caracterizaria um
Mundo
Implicado
em oposição
ao
Mundo
Ord
enado
, projetado
e levado a cabo no processo colonial,
7
A noção de Universo como
Plenum
é resgatada por Denise Ferreira da Silva do pe
nsament
o de
Gottfried
Wilhelm
Leibniz
(1646
-
1716)
.
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Guilherme
MAR
C
ONDES
Estud. soc
iol.,
Araraquara
,
v.
27
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,
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.
e
-
IS
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-
4718
DOI:
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6
capitalista e patriarcal. Sendo, então, a
dívida impagável
referente ao processo de contínua
expropriação a que alguns corpos têm sido submetidos ao longo da história, o
Mundo
Implicado
, pautado pel
o m
odelo de
Plenum
,
traria a possibilidade de pensar o mundo
outramente.
O
Plenum
, por conseguinte, seria possibilidade de vida, de outra vida, em outras
perspectivas ontoepistemológicas, que compreenderiam a implicação das pessoas e coisas do
mundo umas n
as
outras. Ou seja,
trata de um universo em que cada um dos corpos que
existem no mundo expressariam o universo de uma forma única, mas, ao mesmo tempo,
expressariam todas as outras coisas que existem no universo. A coletividade ao invés da
individualidade
é
aqui importante,
posto que demarca a diferenciação entre uma perspectiva,
como a apresentada por Ferreira da Silva, e aquela do
Mundo Ordenado
da
modernidade
, que
classifica, hierarquiza e separa. Dessa forma, o
Plenum
é um
Mundo Implicado
, em que
[...]
a so
cia
lidade não
é mais nem causa nem efeito das relações envolvendo
existentes separados, mas a condição incerta sob a qual tudo que existe é
uma expressão singular de cada um e de todos os outros existentes atuais
-
virtuais do universo, ou seja, como
Corpus
Inf
initum
”
(F
ERREIRA DA
SILVA, 2019, p.
46
,
grifo do autor)
.
O projeto proposto por
Denise Ferreira da Silva,
coloca a racialidade no centro do
pensamento moderno, compreendendo como a
negridade
8
seria uma chave para o
desmoronamento deste
Mundo Orde
nad
o
e a ascensão
do
Mundo Implicado
. Se no primeiro
caso, não é possível pensar a diferença sem separação, no segundo, a existência se daria sem o
princípio da
separabilidade
, possibilitando, portanto, o fim do mundo conforme o
conhecemos, para o floresci
men