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O polo de confecções do Agreste Pernambucano: Origens e configurações atuais
Estud. sociol.,
Araraquara, v. 27, n. 00, e022013, jan./dez. 2022 . e-ISSN: 1982-4718
DOI: https://doi.org/10.52780/res.v27i00.13897
1
O POLO DE CONFECÇÕES DO AGRESTE PERNAMBUCANO: ORIGENS E
CONFIGURAÇÕES ATUAIS
EL POLO DE CONFECCIONES DEL AGRESTE PERNAMBUCANO: ORÍGENES Y
CONFIGURACIONES ACTUALES
THE AGRESTE PERNAMBUCANO CLOTHING CLUSTER: ORIGINS AND
CURRENT CONFIGURATIONS
Felipe RANGEL
1
Roseli de Fátima CORTELETTI
2
RESUMO
: Este artigo discute o histórico de formação do Polo de Confecções do Agreste
Pernambucano e suas relações com as configurações atuais desse território produtivo.
Procuramos traçar o percurso de um território que superou as crises econômicas provocadas
pelo declínio da produção rural – principalmente em razão das grandes secas na região – e
hoje aparece como um dos principais centros de produção de confecções e comércio popular
do Brasil. A partir de pesquisa realizada entre 2017 e início de 2020 – com visitas a unidades
produtivas, realização de entrevistas com trabalhadores e empresários e levantamento de
dados sobre a indústria de confecções local –, buscamos discutir a organização produtiva do
Polo e as percepções dos trabalhadores em relação à valorização do trabalho autônomo, ainda
que na informalidade. Argumentamos que, forjadas na dialética entre privação e
inventividade, as configurações atuais do Polo e seu poder de competitividade residem, em
grande medida, na homologia entre as disposições fundadas num “imperativo da
independência”, relacionado ao histórico da região, e a lógica neoliberal contemporânea da
responsabilização individual, cuja sustentação material se verifica em formas flexíveis e
intensas de trabalho autônomo e informal.
PALAVRAS-CHAVE
: Polo de confecções do Agreste Pernambucano. Informalidade.
Trabalho autônomo. Empreendedorismo.
RESUMEN:
Este artículo analiza la historia de la formación del Polo de Confecciones del
Agreste Pernambucano y sus relaciones con las configuraciones actuales de este territorio
productivo. Buscamos trazar la trayectoria de un territorio que superó las crisis económicas
provocadas por el declive de la producción rural -principalmente debido a las grandes
sequías de la región- y hoy aparece como uno de los principales centros de producción de
confecciones y comercio popular de Brasil. A partir de la investigación realizada entre 2017
y principios de 2020 -con visitas a las unidades productivas, entrevistas con trabajadores y
empresarios, y recolección de datos sobre la industria local de la confección- buscamos
1
Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR), São Carlos – SP – Brasil. Pesquisador de pós-doutorado no
Instituto de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (IAU-USP). Pós-Doutorado. Doutorado em
Sociologia. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0679-3756. E-mail: feliperangelm@gmail.com
2
Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), Campina Grande – PB – Brasil. Professora Efetiva.
Doutorado em Sociologia (UFPB). ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0277-3344. E-mail:
roselicortel@yahoo.com.br
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Felipe RANGEL e Roseli de Fátima CORTELETTI
Estud. sociol.,
Araraquara, v. 27, n. 00, e022013, jan./dez. 2022 . e-ISSN: 1982-4718
DOI: https://doi.org/10.52780/res.v27i00.13897
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discutir la organización productiva del Polo y las percepciones de los trabajadores respecto
a la valoración del trabajo autónomo, aunque sea en la informalidad. Argumentamos que,
forjadas en la dialéctica entre privación e inventiva, las configuraciones actuales del Polo y
su poder de competitividad residen, en gran medida, en la homología entre las disposiciones
fundadas en un "imperativo de independencia", relacionado con la historia de la región, y la
lógica neoliberal contemporánea de la responsabilidad individual, cuyo soporte material se
verifica en formas flexibles e intensas de trabajo autónomo e informal.
PALAVRAS CHAVE
: Polo de Confecciones del Agreste Pernambucano. Informalidad.
Trabajo autónomo. Emprendimiento.
ABSTRACT
: This article discusses the formation of the Agreste Pernambucano Clothing
Cluster and its relations with the current configurations of this productive territory. We
traced the history of a territory that overcame the economic crises caused by the decline in
rural production - mainly due to the great droughts in the region - and today it appears as
one of the main centers of production of clothing in Brazil. Based on research carried out
between 2017 and the beginning of 2020 - with visits to production units, interviews with
workers and data collection on the local clothing industry -, we seek to discuss the productive
organization of the Pole and the perceptions of workers concerning the valorization of
autonomous work, even in informality. We argue that, forged in the dialectic between
privation and inventiveness, the current configurations of the Pole and its competitive power
reside, to a large extent, in the homology between the culture founded on an “imperative of
independence”, related to the region's history, and the neoliberal logic contemporary of
individual responsibility, whose material support is verified in flexible and intense forms of
autonomous and informal work.
KEYWORDS
: Agreste Pernambucano clothing cluster. Informality. Self-employment.
Entrepreneurship.
Introdução
Grandes outdoors anunciando jeans, roupas de praias e vestidos dão as boas-
vindas a quem chega à região de Santa Cruz do Capibaribe, no agreste
pernambucano. [...] Muitos dos habitantes do lugar se orgulham de ter o
DNA do empreendedorismo e seguem à risca o mantra do governo de
“menos direitos, mais empregos”. [...] A informalidade no mercado de
trabalho é de cerca de 80%. Não há estatísticas confiáveis sobre emprego,
mas na região se repete a todo tempo que só não trabalha quem não quer.
(ZANINI, 2019)
3
O trecho acima descreve o impacto da chegada a Santa Cruz do Capibaribe, uma das
principais cidades que compõem o chamado Polo de Confecções do Agreste Pernambucano.
Em uma região sem tradição industrial, marcada pela precariedade infraestrutural, por
3
ZANINI, F. No agreste, polo de confecções serve de laboratório para reforma de Guedes.
Folha de São Paulo
,
abr. 2019. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2019/04/no-agreste-polo-de-confeccoes-
serve-de-laboratorio-para-reforma-de-guedes.shtml. Acesso em: 11 out. 2019.
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O polo de confecções do Agreste Pernambucano: Origens e configurações atuais
Estud. sociol.,
Araraquara, v. 27, n. 00, e022013, jan./dez. 2022 . e-ISSN: 1982-4718
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carências de serviços públicos e por um passado identificado com a decadência da economia
baseada na pecuária, algodão e agricultura, a emergência de um polo com tamanha vitalidade
chama a atenção, especialmente pela presença massiva do “empreendedorismo informal”.
Com base nas numerosas pesquisas realizadas na região (BURNETT, 2013; LIMA;
SOARES, 2002; MILANÊS, 2019; SÁ, 2018; VÉRAS DE OLIVEIRA, 2013), verifica-se que
a informalidade nas relações de trabalho, o trabalho feminino, domiciliar e familiar são
características marcantes desde a origem da produção local e do comércio nas feiras populares
até a atualidade. Assim como merece destaque o forte discurso empreendedor propagado em
meio ao trabalho intenso e precário, realizado em um sem-número de unidades produtivas
informais.
Considerando esses aspectos, a partir de pesquisa realizada no polo entre 2017 e 2020
4
e da literatura sobre suas origens, buscaremos recuperar o percurso de uma região que superou
as crises econômicas provocadas pelo declínio da produção rural – principalmente em razão
das grandes secas na região – e que hoje aparece como um dos principais centros de produção
de confecções e comércio popular do Brasil, mobilizando circuitos comerciais extensos e nos
quais milhares de pessoas ganham a vida em ocupações informais ou nas “zonas cinzentas do
trabalho” (AZAÏS, 2012). Em seguida, trataremos de apresentar alguns aspectos relacionados
ao trabalho e organização da produção de confecções do polo, identificados em suas
configurações atuais. Por fim, a partir de entrevistas realizadas com produtores formais e
informais, discutiremos questões relativas à ampla valorização do trabalho autônomo nesse
território – mesmo que na informalidade e por meio do trabalho intenso –, que é
frequentemente percebido como forma de empreendedorismo individual.
Origem e desenvolvimento
As origens do Polo de Confecções do Agreste Pernambucano situam-se em meados da
década de 1950, a partir da produção artesanal em Santa Cruz do Capibaribe que era
distribuída nas feiras populares tradicionalmente realizadas nas cidades da região. Contudo,
antes de encontrar na produção de confecções o principal recurso para o desenvolvimento e
geração de trabalho e renda para a população, a região do Agreste Pernambucano tinha como
atividade econômica fundamental a pecuária, o cultivo do algodão e a pequena produção
agrícola, atividades que sempre conviveram com certa dificuldade, dadas as condições
4
A pesquisa que deu origem ao presente artigo esteve vinculada ao
Projeto Trabalho e Globalização Periférica
no Brasil: um estudo comparativo em três setores produtivos
, financiado pelo Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq. Processo 402354/2016-8.
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Felipe RANGEL e Roseli de Fátima CORTELETTI
Estud. sociol.,
Araraquara, v. 27, n. 00, e022013, jan./dez. 2022 . e-ISSN: 1982-4718
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climáticas – tendo em vista os períodos significativos de seca, característicos da região.
Segundo Milanês (2019), as características do clima prejudicavam as possibilidades de uma
fonte de renda permanente e estável para a população. É nesse cenário que as atividades de
confecção aparecem como alternativas de trabalho e renda para a população agrestina, sendo
as mulheres as principais protagonistas do processo, mobilizando técnicas e experiências
adquiridas como herança geracional (BEZERRA, 2018; PEREIRA, 2019). Assim, contando
fundamentalmente com a mobilização da população local, começou-se a produzir grandes
quantidades de peças em malhas, brim e jeans.
Por conta desse surgimento não planejado,
forjado nas práticas de populações que
buscavam alternativas econômicas frente à escassez de recursos, há certo debate nos estudos
sobre a formação desse território produtivo. Parte das explicações recuperam a origem do
polo de confecções atribuindo-a ao imperativo da sobrevivência dessa população e a um
posterior desenvolvimento “espontâneo” (LYRA, 2006). Em uma perspectiva distinta, narra-
se a emergência desse espaço ressaltando as experiências coletivas ancestrais, transmitidas
pelas gerações, que culminaram em formas inventivas de produção da vida (ESPÍRITO
SANTO, 2013; MILANÊS, 2019). Nesta última, focaliza-se então a agência das pessoas que
construíram o polo de maneira “inventiva”. Entendemos, porém, que essas abordagens não
são, necessariamente, excludentes, uma vez que o surgimento da produção local pode ser
considerado uma forma criativa e coletiva de responder a uma necessidade objetiva de
sobrevivência.
Até o final da década de 1940 e início de 1950, a atividade de confecção consistia
b
asicamente no trabalho artesanal com retalhos aproveitados dos rejeitos das indústrias têxteis
de Recife (BURNETT, 2013). Esses retalhos eram levados para Santa Cruz do Capibaribe no
retorno de moradores, pequenos produtores e criadores que viajavam à capital pernambucana
para vender galinhas, carvão vegetal, queijo, dentre outros produtos (LYRA, 2006). Com esse
material, produziam-se roupas íntimas femininas (LIMA; SOARES, 2002), peças simples de
vestuário e mantas de retalhos (que se tornaram uma espécie de produto típico da região).
Esses produtos eram então comercializados nas feiras livres que historicamente ocorriam nas
principais cidades do Agreste Pernambucano, figurando como importantes espaços não só
econômicos, mas também sociais e culturais (SÁ, 2018).
A u
nidade produtiva fundamental dessa atividade era o ambiente familiar e doméstico.
Em posse de uma máquina de costura e sob o comando da “mãe de família”, como observa
Burnett (2013), confeccionavam-se as roupas por encomenda ou por iniciativa própria,
destinadas ao consumo popular. De acordo com Lyra (2006), era comum que confeccionistas
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O polo de confecções do Agreste Pernambucano: Origens e configurações atuais
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maiores, de áreas urbanas, emprestassem máquinas de costura para mulheres que residiam nas
áreas rurais próximas, inserindo-as na cadeia produtiva como subcontratadas (situação que
lembra o chamado
putting-out system,
característico das primeiras configurações do
capitalismo). Assim, pode-se observar que a produção do Agreste já nasce marcada pela
flexibilidade e sustentada no trabalho informal, doméstico, familiar, autônomo e com a
presença marcante da subcontratação.
Com o crescimento dessa produção e a intensificação dos circuitos comerciais em
torno dela, as fábricas do Recife passaram a cobrar pelos retalhos, antes coletados
gratuitamente. Nesse contexto, ao longo da década de 1960, grandes quantidades de retalhos
também começaram a ser trazidos de São Paulo, dando novo impulso à indústria agrestina. De
acordo com Campello (1983), toneladas de retalhos oriundas dos descartes das fábricas do
Brás – coração da indústria paulista no período – eram levadas para Pernambuco e destinadas
à produção de confecções de baixo valor agregado. Teria sido essa origem sulina do material
que deu o nome pelo qual passou a ser conhecida a produção do Agreste Pernambucano:
sulanca
; contração da palavra “helanca” (material dos retalhos) e Sul (origem geográfica). O
termo
sulanca
passou a representar as peças de vestuário produzidas com acabamentos
simples, destinados principalmente ao consumo de populações de baixa renda (LIMA;
SOARES, 2002; LYRA, 2006).
É com a relativa fama adquirida pela
sulanca
e a
consequente identificação do
potencial econômico dessa atividade que Caruaru e Toritama “entram no negócio”, ao longo
da década de 1970 (MILANÊS, 2019), pelo menos no que se refere à atividade mais intensa
de produção (tendo em vista que na dimensão da circulação de mercadorias, Caruaru já era
um importante centro). Vale dizer que até meados da década de 1960, a cidade de Santa Cruz
do Capibaribe, hoje considerada a capital da sulanca (MORAES, 2013), era um centro urbano
inexpressivo no contexto do estado de Pernambuco (BURNETT, 2013). Pode-se justificar por
isso a associação da popularização da
sulanca
no Nordeste e em outras regiões do Brasil com
as atividades comerciais de Caruaru, considerada a “verdadeira capital econômica” do
Agreste Pernambucano (CARDOSO, 1965, p. 60). A importância econômica de Caruaru “pré-
sulanca” fica evidente na caracterização feita por Cardoso na década de 1960, em que o autor
destaca as características econômicas e sociais desta cidade como importante entreposto de
produtos nordestinos e sulinos por meio de suas feiras, sem sequer mencionar a
sulanca
. O
comércio de artigos de confecções aparecia sem destaque em meio a diversos outros produtos,
como as frutas da região, o charque, itens de couro e outros artesanatos.
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Felipe RANGEL e Roseli de Fátima CORTELETTI
Estud. sociol.,
Araraquara, v. 27, n. 00, e022013, jan./dez. 2022 . e-ISSN: 1982-4718
DOI: https://doi.org/10.52780/res.v27i00.13897
6
A injeção de grandes quantidades de retalhos paulistas na produção da
sulanca
contribuiu para a expansão dessa produção, induzindo um salto de escala. As feiras populares
locais cresceram e ganharam ainda mais importância, passando a ser denominadas
Feiras da
Sulanca
. Esses espaços de comércio no varejo e no atacado ativaram então expressivos
circuitos de “sacoleiros” de diferentes regiões do país (RABOSSI, 2008).
Figura 1
– Vista da Feira da Sulanca, em Santa Cruz do Capibaribe