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Medicalização global, TDAH e infâncias. Um estudo na mídia de 7 países
Estudos de Sociologia
, Araraquara,
v. 27, n. esp. 2, e022023, 2022. e-ISSN:
1982-4718
DOI:
https://doi.org/10.52780/res.v27iesp.2.16855
1
MEDICALIZAÇÃO GLOBAL, TDAH E INFÂNCIAS. UM ESTUDO NA MÍDIA DE 7
PAÍSES
MEDICALIZACIÓN GLOBAL, TDAH Y NIÑECES. UN ESTUDIO EN MEDIOS DE
COMUNICACIÓN DE 7 PAÍSES
GLOBAL MEDICALIZATION, ADHD AND CHILDHOOD. A STUDY OF THE MEDIA
IN 7 COUNTRIES
Eugenia BIANCHI
1
Milagros OBERTI
2
Silvia FARAONE
3
Flavia TORRICELLI
4
RESUMO
: O objetivo é analisar os resultados da pesquisa em sete países da Ásia, América,
Europa e Oceania, para saber quais atores sociais estão representados na mídia sobre TDAH,
de que forma e com quais efeitos. Apoiamos o argumento em três eixos: TDAH como exemplo
paradigmático da medicalização da saúde mental das crianças; TDAH na infância como
diagnóstico global; e a mídia como um ator não médico relevante na globalização do
diagnóstico de TDAH. Foi formado um corpus de 28 peças de bibliografia específica (livros,
capítulos de livros e artigos científicos). Tomamos como referência teórico-conceitual as
contribuições da corrente da medicalização da sociedade. Discute a multiplicidade de discursos
midiáticas sobre TDAH em crianças, e sobre a articulação de atores sociais não médicos nos
processos de medicalização global do TDAH.
PALAVRAS-CHAVE
: Medicalização. Infâncias. Transtorno de déficit de atenção e
hiperatividade. Mídia.
1
Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas, Instituto de Pesquisas Gino Germani, Universidade de
Buenos Aires (CONICET-IIGG, UBA), Cidade de Buenos Aires
–
Argentina. CONICET Pesquisadora Associada,
Pesquisadora do IIGG, Co-Coordenadora do Grupo de Estudos em Saúde Mental e Direitos Humanos
(GESMyDH) e Pesquisadora membro da Área de Saúde e População. Chefe de Trabalho Prático UBA, Faculdade
de Ciências Sociais. Dra. em Ciências Sociais, Mgs. em Pesquisa em Ciências Sociais, Bacharel em Sociologia
(UBA). ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2311-7490. E-mail: eugenia.bianchi@gmail.com
2
Instituto de Pesquisa Gino Germani, Universidade de Buenos Aires (IIGG, UBA), Cidade de Buenos Aires
–
Argentina. Mestranda da UBACyT, Membro do Grupo de Estudos em Saúde Mental e Direitos Humanos
(GESMyDH). Primeira Professora Assistente da UBA, Faculdade de Ciências Sociais. Bacharel e Profa. em
Comunicação Social (UBA). ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9889-0712. E-mail:
milagrosoberti@outlook.com
3
Instituto de Pesquisa Gino Germani, Universidade de Buenos Aires (IIGG, UBA), Cidade de Buenos Aires
–
Argentina. Pesquisadora do IIGG, Coordenadora do Grupo de Estudos em Saúde Mental e Direitos Humanos
(GESMyDH) e pesquisadora membro da Área de Saúde e População. Titular da Cátedra UBA, Faculdade de
Ciências Sociais. Dra. em Ciências Sociais, Mgs. em Saúde Pública, Bacharel em Serviço Social (UBA). ORCID:
https://orcid.org/0000-0002-6773-8267. E-mail: silfaraone@gmail.com
4
Instituto de Pesquisa Gino Germani, Universidade de Buenos Aires (IIGG, UBA), Cidade de Buenos Aires
–
Argentina. Membro do Grupo de Estudos em Saúde Mental e Direitos Humanos (GESMyDH). Auxiliar de Ensino
UBA, Faculdade de Ciências Sociais. Dr. em Psicologia, Bacharel em Psicologia (UBA). ORCID:
https://orcid.org/0000-0002-2352-5518. E-mail: flvtorri@gmail.com
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Eugenia BIANCHI; Milagros OBERTI; Silvia FARAONE e Flavia TORRICELLI
Estudos de Sociologia
, Araraquara,
v. 27, n. esp. 2, e022023, 2022. e-ISSN:
1982-4718
DOI:
https://doi.org/10.52780/res.v27iesp.2.16855
2
RESUMEN
: El objetivo es analizar resultados de investigaciones en siete países de Asia,
América, Europa y Oceanía, para conocer qué actores sociales aparecen representados en los
medios de comunicación sobre el TDAH, de qué maneras y con qué efectos. Sustentamos la
argumentación en tres ejes: el TDAH como ejemplo paradigmático de la medicalización de la
salud mental infantil; el TDAH en la infancia como diagnóstico global; y los medios de
comunicación como actor no médico relevante en la globalización del diagnóstico de TDAH.
Se conformó un corpus de 28 piezas de bibliografía específica (libros, capítulos de libros y
artículos científicos). Tomamos como referencia teórico-conceptual los aportes de la corriente
de la medicalización de la sociedad. Se discute acerca de la multiplicidad de discursos
mediáticos acerca del TDAH en las niñeces, y sobre la articulación de actores sociales no
médicos en los procesos de medicalización global del TDAH.
PALABRAS CLAVE
: Medicalización. Niñeces. Trastorno por déficit de atención e
hiperactividad. Medios de comunicación.
ABSTRACT
: The aim is to analyze research results in seven countries in Asia, America,
Europe and Oceania, to know which social actors are represented in the media on ADHD, in
what ways and with what effects. We support the argument in three axes: ADHD as a
paradigmatic example of the medicalization of children's mental health; ADHD in childhood
as a global diagnosis; and the media as a relevant non-medical actor in the globalization of
ADHD diagnosis. A corpus of 28 pieces of specific bibliography (books, book chapters and
scientific articles) was formed. We consider the contributions of the medicalization of society
as a theoretical-conceptual reference. The multiplicity of media discourses about ADHD in
children, and the articulation of non-medical social actors in the processes of global
medicalization of ADHD are discuss.
KEYWORDS
: Medicalization. Childhood. Attention deficit hyperactivity disorder. Media.
Introdução
Neste artigo apresentamos os resultados de uma linha de pesquisa desenvolvida em
equipe interdisciplinar sobre a relação entre globalização da medicalização, mídia e saúde
mental em crianças. (ARIZAGA; FARAONE, 2008; FARAONE
et al.
, 2010; BIANCHI
et al.
,
2016; BIANCHI
et al.
, 2017; BARCALA; BIANCHI; POVERENE, 2017; FARAONE;
BIANCHI, 2018; BIANCHI
et al.,
2020).
O objetivo do artigo é expor e analisar alguns achados e resultados de pesquisas
realizadas em sete países da Ásia, América, Europa e Oceania, a fim de conhecer quais atores
sociais aparecem na mídia sobre o TDAH, de que formas e com que efeitos.
Com isso, buscamos contribuir para uma leitura panorâmica desses fenômenos,
atendendo a uma área de vaga nos estudos sociais nesse sentido. Apoiamos a argumentação em
três eixos: o TDAH como exemplo paradigmático da medicalização da saúde mental infantil
(CONRAD; SCHNEIDER, 1992; CONRAD, 2007); TDAH na infância como diagnóstico
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Medicalização global, TDAH e infâncias. Um estudo na mídia de 7 países
Estudos de Sociologia
, Araraquara,
v. 27, n. esp. 2, e022023, 2022. e-ISSN:
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global (CONRAD; BERGEY, 2014; BERGEY
et al.
, 2018); e a mídia como ator não médico
relevante na globalização do diagnóstico de TDAH (CONRAD; BERGEY, 2014; BERGEY
et
al.
, 2018; GONON
et al.
, 2012; BEMPORAD; PRINCE; WILENS, 2009).
Com base nesses eixos, coletamos bibliografia específica sobre sete experiências
nacionais. Para a análise, tomamos como referencial teórico-conceitual as contribuições de
expoentes da corrente de medicalização da sociedade.
Os materiais abordam diferentes países, períodos, tipos de mídia, objetivos,
metodologias e resultados; no entanto, e seguindo Foucault (2002), apresentam uma
regularidade em sua dispersão: compõem uma série de produções acadêmicas escritas que
analisam a relação entre infância, TDAH e mídia.
Discutimos duas regularidades discursivas que se verificam nos materiais: 1. Na mídia
analisada, são expressos diferentes discursos sobre o TDAH na infância; 2. Atores sociais não
médicos, e entre eles, de forma destacada, a mídia, articulam-se nos processos de globalização
da medicalização do TDAH.
Aspectos teóricos: medicalização do TDAH e formações discursivas
O referencial teórico articula dois eixos: a medicalização do TDAH, principalmente por
meio dos estudos de Peter Conrad (2007; 2005; 1982; 1975), e a regra da formação do objeto,
proposta por Foucault (1991; 1985) para o estudo das formações discursivas.
Em primeiro lugar, o que então se chamava de hipercinesia tornou-se um objeto precoce
de interesse empírico nos estudos sociais sobre o comportamento desviante, os diferentes
agentes de controle social e a medicalização da sociedade (CONRAD, 1975). Já nos anos 80
do século XX, sob o nome de hiperatividade, o TDAH foi abordado como exemplo da
medicalização da anormalidade, e delineou-se o mapa dos atores sociais que, até hoje, estão
ligados ao problema: médicos, escolas, famílias e empresas farmacêuticas (CONRAD, 1982).
Nos anos 90, o estudo do TDAH foi analisado em conjunto com outros fenômenos, como a
delinquência e o abuso infantil, dando origem a uma hierarquia da medicalização da infância,
considerada especialmente em risco de estar envolvida nesses processos (CONRAD;
SCHNEIDER, 1992).
Para o século XXI e, em segundo lugar, foram publicados estudos que documentaram o
crescimento do diagnóstico de TDAH em adultos (CONRAD; POTTER, 2003; CONRAD,
2007), e sua extensão para outros países além dos Estados Unidos (POLANCYK
et al.
, 2007;
CONRAD; BERGEY, 2014; SINGH
et al.
, 2013). Esses estudos marcaram uma transformação
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Eugenia BIANCHI; Milagros OBERTI; Silvia FARAONE e Flavia TORRICELLI
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, Araraquara,
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em abordagens anteriores, que consideravam o TDAH como uma condição primordialmente
infantil (CDC, 2022) e principalmente dentro dos Estados Unidos (FARAONE
et al.
, 2003).
Essas mudanças de foco levaram a leituras que levantaram a chamada “globalização
iminente do TDAH” para além dos Estados Unidos (CONRAD; BERGEY, 2014; BERGEY
et
al.
, 2018). Segundo Bergey e Filipe (2018), a expansão internacional do diagnóstico de TDAH
teve início na década de 1990. Suas características distintivas incluem o aumento da prevalência
global do diagnóstico de TDAH (POLANCEYK
et al.
, 2007; 2014), e uma aumento do uso de
medicamentos para TDAH, particularmente metilfenidato, em uma ampla gama de países
(INCB, 2014; 2015; 2020).
Entre os fatores que contribuem para a expansão internacional do TDAH, Conrad e
Bergey (2014) destacam a crescente incidência de atores não médicos (em particular, empresas
farmacêuticas transnacionais e a mídia) e ressaltam a importância de levar em conta as
particularidades dos processos em cada país, a fim de entender melhor como o TDAH é
disseminado, implementado e interpretado globalmente.
Terceiro, a globalização do diagnóstico de TDAH posiciona a mídia como um ator não
médico relevante no processo (CONRAD; BERGEY, 2014; BERGEY; FILIPE, 2018;
CONRAD; SINGH, 2018; GONON
et al.
, 2012; BEMPORAD; PRINCE; WILENS, 2009).
Como emerge dos materiais analisados, ainda há pouco histórico de estudos que, a partir
das ciências sociais, analisem o lugar e as características dadas ao TDAH em diferentes mídias,
tanto como ator não médico quanto, mais especificamente, em relação a outros atores sociais,
médicos e não médicos.
Em segundo lugar, nos referimos a diferentes produções de Foucault (1985; 1991; 2002)
nas quais ele se debruça sobre as particularidades de analisar uma formação discursiva, e
enfatiza a análise dos materiais considerando a regularidade na dispersão. Com esse objetivo,
ele estabelece quatro critérios para reconhecer unidades discursivas em termos de formações,
cada um dos quais permite descrever os enunciados (FOUCAULT, 1985). Desses quatro
critérios, tomamos o que é chamado de regra de formação de objetos.
Em linhas gerais, uma das peculiaridades da abordagem de Foucault (1985) reside no
fato de que, em sua opinião, não é a unidade dos objetos de análise que torna específica uma
formação discursiva. Segundo sua proposta, a unidade dos discursos não se baseia na existência
de um objeto que os precede e que eles venham a nomear, descrever, delimitar, julgar, recortar,
codificar etc. Esse pretenso objeto unitário é para Foucault um objeto permanentemente
separado e disperso, que está em perpétua não-coincidência consigo mesmo, que difere de si
mesmo ao longo do tempo, e que é resultado de múltiplas fraturas.
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Medicalização global, TDAH e infâncias. Um estudo na mídia de 7 países
Estudos de Sociologia
, Araraquara,
v. 27, n. esp. 2, e022023, 2022. e-ISSN:
1982-4718
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Assim, a análise a partir da regra de formação do objeto centra-se na descrição dessas
dispersões, dessas rupturas, dessas transformações. Aplicando-a, é possível estabelecer uma
referência. O referencial define as condições e o campo de emergência, as possibilidades de
aparecimento e delimitação (as prescrições e proscrições dos discursos) e as instâncias de
diferenciação dos enunciados. Também os estados de coisas e as relações que se desenrolam
nesse enunciado, que lhe conferem seu sentido e seu valor de verdade (FOUCAULT, 2002), o
magma de práticas em que esse objeto de conhecimento surge e se transforma.
Afirmar que os diferentes materiais rastreados remetem à mesma formação discursiva
sobre o TDAH na infância implica atentar para dois elementos apontados por Foucault (2002):
a emergência e a dispersão, mais do que a permanência e continuidade dos discursos. Os
diferentes discursos podem ser descritos como parte de uma mesma formação discursiva, se
apareceram em determinado período (simultaneamente ou sucessivamente), se se delineiam em
um espaço comum, se possuem uma conjuntura histórica semelhante; se respondem às mesmas
preocupações, interesses ou problemas; isto é, se tiverem a mesma superfície de emergência.
De fato, Rose (1998) enfatiza esse aspecto da condensação de espaços de dificuldades ou
problemas, ao se referir à noção de superfície foucaultiana de emergência.
No entanto, e embora seja importante que os discursos apareçam e coexistam, também
é necessário atentar para a sua transformação, as suas descontinuidades e dispersões, os
interstícios e distâncias que os separam, e as formas como são implicados ou excluídos,
estabelecendo um campo de possibilidades estratégicas, "que permitem a ativação de temas
incompatíveis, ou mesmo a incorporação de um mesmo tema a diferentes grupos"
(FOUCAULT, 2002, p. 61, tradução nossa). E ainda, às suas eventuais incompatibilidades e
rupturas.
Uma formação discursiva pode ter diferentes superfícies de emergência (FOUCAULT,
2002). Em relação à superfície de emergência dos materiais aqui analisados, o tempo em que
surgiram varia de 2009 a 2020, em países de quatro continentes: América (Estados Unidos,
Brasil e Argentina), Ásia (Taiwan), Europa (França e Reino Unido) e Oceania (Austrália).
Por fim, a regra de formação do objeto implica localizar campos de diferenciação,
distâncias, descontinuidades e limiares, e encontrar as possibilidades de delimitação de seu
domínio, de definição daquilo a que confere o status de objeto, que lhe permite ser torná-lo
descritivo. Por isso, é necessário descrever essas instâncias de delimitação, que compreendem
diferentes instituições reguladas, com seu corpo de profissionais, saberes e práticas, e com
noções próprias e competências socialmente reconhecidas. Essas instâncias estão em
permanente jogo, lutando pela formação do objeto.
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Eugenia BIANCHI; Milagros OBERTI; Silvia FARAONE e Flavia TORRICELLI
Estudos de Sociologia
, Araraquara,
v. 27, n. esp. 2, e022023, 2022. e-ISSN:
1982-4718
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No caso dos materiais analisados, formamos um plexo de instâncias de delimitação que
se combinam em cada caso:
- Atores e forças sociais de natureza médica e não médica, e especialmente as vozes de
meninos e meninas em primeira pessoa.
- Instituições e organizações estatais nas suas diferentes jurisdições e sociedade civil.
- Tipos de mídia.
- Políticas, programas e planos voltados ao diagnóstico e tratamento do TDAH na
infância.
- Discursos, argumentos, avaliações, discussões, debates e controvérsias, tanto na
perspectiva profissional como na perspectiva leiga.
- Legislação e regulamentos, protocolos ou outras referências a classificações
diagnósticas relacionadas ao TDAH na infância.
- Terapêutico, psicofarmacológico ou outro, relacionado ao TDAH na infância.
Esses elementos funcionam como coordenadas que permitem localizar características e
especificidades semelhantes nas diferentes experiências nacionais e conhecer as abordagens
realizadas por equipes de pesquisa no estudo do TDAH, bem como a incidência de atores sociais
médicos e não médicos na medicalização do TDAH. TDAH: processos de diagnóstico e
tratamento para tal classificação na infância.
Com esses elementos como plataforma, e em consonância com a proposta do Dossiê,
esperamos contribuir para um mapeamento dinâmico, abrangente e sistemático das experiências
e processos que compõem a situação global do TDAH na infância. Adicionalmente, buscamos
contribuir para a compreensão de como as modalidades, particularidades e semelhanças do
diagnóstico e tratamento farmacológico do TDAH estão migrando em diferentes regiões do
mundo (CONRAD; BERGEY, 2014; BIANCHI
et al.
, 2016; BIANCHI
et al.
, 2017;
FARAONE; BIANCHI, 2018; BIANCHI
et al.
, 2020). Dado que alguns dos materiais
analisados fazem parte de publicações anteriores da equipe, este artigo também é uma
oportunidade para dialogar e discutir os resultados obtidos em nossas investigações, em relação
aos obtidos por outros estudos.
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Medicalização global, TDAH e infâncias. Um estudo na mídia de 7 países
Estudos de Sociologia
, Araraquara,
v. 27, n. esp. 2, e022023, 2022. e-ISSN:
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Metodologia
Conrad e Bergey (2014) destacaram a possibilidade de realizar análises que levem em
conta a conjunção de particularidades locais e consonâncias globais da medicalização, e em
nossa pesquisa endossamos essa premissa. Para tanto, seguiu-se para o artigo um desenho
metodológico descritivo, qualitativo, flexível, apoiado em métodos analítico-interpretativos de
bibliografia específica (KORNBLIT, 2007; FLICK, 2007; VALLES, 2000; MARRADI;
ARCHENTI; PIOVANI, 2007; DE GIALDINO, 2006). Esse desenho retoma a estratégia que
outras investigações adotaram (BERGEY
et al.
, 2018; BIANCHI
et al.
, 2020) e expressa as
restrições que são frequentes nesse tipo de abordagem, em termos de obtenção, sistematização
e comparação de informações resultantes de pesquisa nacional (BIANCHI; FARAONE;
TORRICELLI, 2021).
O conjunto de 28 materiais foi composto a partir de dois tipos de escrita: 13 livros e
capítulos de livros e 15 artigos publicados em periódicos científicos. Foi uma amostragem
intencional não probabilística (CEA D'ANCONA, 1998), em diferentes estágios e com
diferentes critérios de inclusão. Em uma primeira etapa, foram selecionados livros que
compilavam estudos de diferentes países sobre o TDAH. Na segunda etapa, foi especificada a
busca de livros e artigos científicos online sobre TDAH, mídias e discursos, em catálogos e
bases de dados de bibliotecas universitárias (Scielo, Redalyc e PubMed), com foco em
pesquisas das ciências sociais. As palavras-chave de busca nesta etapa (em espanhol e inglês)
foram TDAH, hiperatividade, mídia, jornais, revistas, mídia online.
Para os critérios de inclusão desses artigos e livros priorizamos: i. que os estudos eram
de países sobre os quais já tínhamos informações desde a primeira etapa da pesquisa; ii. que
fossem pesquisadores ou equipes diferentes dos pesquisados na primeira etapa, mesmo quando
os estudos correspondessem ao mesmo país. Em uma terceira etapa, foram selecionados artigos
e capítulos de livros que se referiam ao tema geral do TDAH, infância e mídia, não ancorados
em nenhuma experiência nacional específica. Ao mesmo tempo, e por trabalharmos com
designs flexíveis, mantivemos a nossa atenção aos emergentes, tanto nos materiais como nos
temas.
A seguir, resumimos as principais características do
corpus
.
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Eugenia BIANCHI; Milagros OBERTI; Silvia FARAONE e Flavia TORRICELLI
Estudos de Sociologia
, Araraquara,
v. 27, n. esp. 2, e022023, 2022. e-ISSN:
1982-4718
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8
Quadro 1
–
Principais Características do Corpus
País
No.
LoC
5
/
ARC
6
Ano
pub.
Tipo de mídia analisada
Período de
análise
Geral
1
ARC
2009
Relatos de casos, com questões relacionadas ao
TDAH como diagnóstico da moda e sua expressão
na mídia. Como isso afeta as recomendações para
quem frequenta a consulta psiquiátrica.
2009
2
ARC
2012
47 publicações científicas sobre TDAH e o
impacto que tiveram em 347 artigos de jornal.
1990-2011
3
ARC
2014
Artigo de divulgação da principal associação sobre
TDAH nos Estados Unidos, discute como a
imprensa representa o diagnóstico.
1995-2010
4
LoC
2018
Referência mais ampla a atores médicos e não
médicos nos processos de globalização do
diagnóstico e tratamento do TDAH
1980-2015
5
LoC
2018
Referência a reportagens críticas da mídia sobre o
aumento do diagnóstico.
1995-2015
Argentina
6
LoC
2009
Notas jornalísticas publicadas pelo Clarín e La
Nación.
2002-2007
7
LoC
2018
230 artigos jornalísticos na imprensa escrita
online, com abrangência nacional, regional e local.
2001-2017
8
LoC
2018
Referência em geral a artigos de jornal.
2007-2012
9
ARC
2020
236 artigos online de jornais argentinos de âmbito
nacional e provincial.
2001-2017
Austrália
10
LoC
2018
Fóruns de discussão na Internet, rádio, notícias,
jornais, televisão, música popular e outros meios
de entretenimento.
1970-2015
11
ARC
2017
453 artigos publicados na imprensa escrita
nacional e metropolitana.
1999-2009
Brasil
12
ARC
2010
Publicações científicas nas principais revistas de
psiquiatria e reportagens em jornais e revistas
destinadas ao público em geral.
1998-2008
13
ARC
2013
Publicações científicas e midiáticas de alta
circulação sobre Ritalin© voltadas para o público
leigo.
1998-2008
14
ARC
2017
Artigos jornalísticos de jornais de circulação
nacional, disponíveis na internet.
2010-2014
15
LoC
2018
Reportagens publicadas em jornais e revistas de
grande circulação, artigos em revistas psiquiátricas
sobre os usos da Ritalina, jornais e revistas
voltados ao grande público de maior circulação.
1998-2008
16
LoC
2018
Publicações especializadas de ciências médicas e
psiquiatria, publicações de associações
profissionais, cartas abertas em jornais, estudos
acadêmicos publicados na web e em revistas
acadêmicas, jornais e revistas de grande
circulação.
1998-2008
Estados
Unidos
17
ARC
2009
Cobertura da mídia sobre transtornos mentais,
especialmente TDAH, em artigos de revistas.
1995-2008
18
LoC
2018
Mídia de massa, programas de TV, artigos em
revistas populares.
Meados dos
anos 1990
–
2012
França
19
ARC
2015
Cobertura televisiva da questão do TDAH de
1995 a 2010, por meio de 60 programas de
1995-2010
5
Livro ou Capítulo de Livro.
6
Artigo em Revista Científica.
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Estudos de Sociologia
, Araraquara,
v. 27, n. esp. 2, e022023, 2022. e-ISSN:
1982-4718
DOI:
https://doi.org/10.52780/res.v27iesp.2.16855
9
televisão, incluindo notícias, talk shows e debates.
Exclui programas de ficção.
20
ARC
2017
159 artigos de nove jornais franceses com dados e
opiniões sobre TDAH.
1995-2015
21
LoC
2018
Relatórios oficiais, revistas científicas nacionais,
sites de mães de crianças com TDAH, livros e
artigos de jornais sobre hiperatividade e déficit de
atenção publicados na imprensa nacional.
1987-2014
22
ARC
2019
Programas de TV e imprensa não especializada,
sites.
1995-2015
Reino
Unido
23
ARC
2011
Artigos em jornais nacionais com três ou mais
referências a hiperatividade e TDAH.
2000-2009
24
ARC
2012
Artigos em jornais nacionais sobre TDAH e
gênero.
2009
–
2011
25
LoC
2018
Revisão de artigos e livros sobre as representações
midiáticas de discursos sobre TDAH no Reino
Unido e em outros países (Austrália, Estados
Unidos, França etc.). Destaca-se a influência da
internet, assim como as narrativas de pais e mães.
1985-2018
26
LoC
2018
Artigos em jornais e, em alguns casos, suas versões
eletrônicas.
2008-2012
Taiwan
27
ARC
2015
Ampla cobertura negativa da mídia durante janeiro
de 2010, como base e gatilho para a análise de
reclamações ambulatoriais submetidas ao National
Health Insurance Research Database de Taiwan.
2000-2011
28
LoC
2018
Artigos de jornais locais sobre hiperatividade em
crianças desde a década de 1950, pesquisas
médicas e educacionais relevantes, literatura
popular, documentos e regulamentos
governamentais, folhetos produzidos por
organizações de pais, discussões sobre TDAH em
fóruns de pais em sites, revistas médicas e para pais
da segunda metade do a década de 1980, livros
escritos principalmente por psiquiatras, destinados
a professores e pais de escolas, meios de
comunicação de massa, seriados de jornais, artigos
de jornais sobre alunos com TDAH.
Fontes
históricas:
desde 1950.
Pesquisa de
campo: 2013-
2015
Fonte: Organizado pelas autoras durante a investigação.
Foram utilizadas técnicas de gravação, gridagem, filtragem e sistematização de dados.
Com base em critérios e ferramentas de busca e processamento concebidos e utilizados em
pesquisas anteriores, foi desenvolvida uma matriz de dados e categorizados os aspectos que
permitem contrastar os diferentes materiais. Foram feitas estimativas de regularidade dos temas
emergentes e processamento parcial das informações. A análise foi ilustrativa e não exaustiva.
As questões que nortearam a análise são: Que tipos de discursos sobre o TDAH são
expressos na mídia de diferentes países? Como a mídia e outros atores não médicos se articulam
com os atores médicos em relação aos processos de diagnóstico e tratamento do TDAH na
infância em diferentes países? E que efeitos essa articulação produziu?
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Eugenia BIANCHI; Milagros OBERTI; Silvia FARAONE e Flavia TORRICELLI
Estudos de Sociologia
, Araraquara,
v. 27, n. esp. 2, e022023, 2022. e-ISSN:
1982-4718
DOI:
https://doi.org/10.52780/res.v27iesp.2.16855
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Discussão e resultados
Para este artigo recuperamos duas discussões de achados que emergem do
processamento e nos conectamos com as questões de pesquisa. Fazem parte de uma discussão
mais ampla, que diz respeito ao lugar da mídia como fonte de informação científica para o
público leigo e, mais especificamente, de informação sobre as ciências da saúde. A
variabilidade na precisão das informações publicadas impulsiona essas discussões, e o TDAH
tem sido assiduamente estudado. Essa discussão vai desde o fator de impacto das publicações
científicas que são utilizadas para a elaboração de artigos jornalísticos, até a publicação
jornalística de achados científicos atualizados de estudos sobre TDAH (GONON
et al.
, 2012).
Além disso, como apontam Ponnou, Haliday e Gonon (2019), as pesquisas sobre como
os meios de comunicação de massa retratam o TDAH têm se concentrado principalmente no
estudo de artigos jornalísticos, e apenas uma minoria examinou programas de televisão, mesmo
ficção, focados em TDAH como uma condição médica.
Em consonância com a importância da Internet nos processos de globalização da
medicalização do TDAH (CONRAD; BERGEY, 2014), os sites têm sido alvo de pesquisas.
Ponnou, Haliday e Gonon (2019) relataram que, em geral, algumas informações importantes
estão faltando nos sites, como menções de autoria, explicações sobre o transtorno ou os
diferentes tratamentos possíveis. Eles também se referiram a pesquisas que estabeleceram que,
mesmo nos sites mais populares, as informações que existem sobre o TDAH raramente foram
escritas por acadêmicos ou apoiadas por referências científicas. Isso é especialmente relevante,
dado o papel desempenhado pelo jornalismo científico, que nos meios de comunicação de
massa atua como tradutor de informações técnicas, posteriormente divulgadas em publicações
dos jornais mais lidos (BRZOZOWSKI; CAPONI, 2017).
Montoya
et al.
(2013), Reavley e Jorm (2011) Ahmed
et al.
(2014) e Akram
et al.
(2008)
documentaram que estudos avaliando sites de TDAH, por unanimidade, descobriram que as
informações são de baixa qualidade, básicas e incompletas. Ponnou, Haliday e Gonon (2019)
estabelecem que as representações do TDAH em programas de televisão e imprensa voltados
ao público leigo são expressão das profundas discrepâncias entre as informações que circulam
nos meios de comunicação de massa e o consenso científico, este último também atravessado
por discrepâncias de grande calibre.
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Medicalização global, TDAH e infâncias. Um estudo na mídia de 7 países
Estudos de Sociologia
, Araraquara,
v. 27, n. esp. 2, e022023, 2022. e-ISSN:
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Primeira discussão: a multiplicidade de atores sociais
Levando-se em conta esse contexto, a primeira discussão decorre do fato de que, nas
mídias analisadas nas matérias, são apresentados múltiplos e diferentes discursos profissionais
e leigos sobre o TDAH, que também colocam posições díspares quanto ao estado do quadro
clínico, sua etiologia, seu processo diagnóstico e seu tratamento.
A natureza diversa e não convergente dos discursos que aparecem na mídia sobre o
TDAH é um achado recorrente nos diferentes materiais analisados. Como ilustração dessa
situação, para a Argentina (FARAONE; BIANCHI, 2018; BIANCHI
et al.
, 2020) foi
documentado que, no período 2001-2008, as abordagens médicas e científicas predominaram
na mídia gráfica e, em menor grau, saúde mental e/ou educação. Quanto aos atores sociais, as
notas referem-se à multiplicidade dos envolvidos no problema. Por um lado, profissionais e
especialistas, especialmente médicos de diferentes especialidades e profissionais de saúde
mental (principalmente psicólogos).
Outros atores mencionados pertencem ao campo educacional (professores, professores
e a escola como instituição), e às famílias (pais e mães). Para o período 2008-2017, foram
pesquisados os meios de comunicação nacionais escritos on-line, os meios de comunicação
provinciais e locais, com achados semelhantes ao primeiro período quanto aos atores
representados, com referências a profissionais médicos (psiquiatria, neurologia, pediatria) e
saúde mental (psicologia, psicopedagogia). Com nuances, esses atores aparecem nos materiais
do restante dos países. Por sua vez, professores e familiares, nesse período, ocupam um lugar
central nas notas, como destinatários de atividades ou organizados em torno de associações e
fundações que ganharam relevância especialmente na mídia local. Essa multiplicidade de
discursos e atores que aparecem na mídia argentina é consistente com o restante dos estudos
analisados, para os outros seis países, com características e funções semelhantes. Outros estudos
incluem orientadores escolares (HARTWOOD
et al.
, 2017), laboratórios farmacêuticos e
indústria farmacêutica relacionados ao marketing (BRZOZOWSKI; CAPONI, 2017;
CONRAD; SINGH, 2018; HORTON-SALWAY; DAVIS, 2018; PONNOU; HALIDAY;
GONON, 2019; BIANCHI
et al.
, 2020).
Adicionalmente, e como resultado desta primeira discussão, constatamos nos materiais
que as vozes dos meninos e meninas aparecem muito lateralmente, ou não aparecem na forma
de testemunhos. Em estudos de vários países, foi documentada a ausência geral de suas vozes
em primeira pessoa, que expõem suas posições. Alguns exemplos são a Argentina (FARAONE;
BIANCHI, 2018; BIANCHI
et al.
, 2020), onde se verificou que meninos e meninas foram
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referidos apenas como objetos do problema ou como protagonistas passivos de diferentes casos
apresentados; e também França (PONNOU; HALIDAY; GONON, 2019) e Austrália
(HARTWOOD
et al.
, 2017), onde é mencionado que as descrições de crianças aparecem na
mídia analisada, mas não suas vozes.
Da mesma forma, diferentes estudos documentaram mudanças nas abordagens do
discurso midiático sobre o TDAH. Um estudo do Brasil (ITABORAHY; ORTEGA, 2013)
indica que ao longo dos anos houve uma mudança de foco, tanto na descrição quanto na
apresentação dos debates sobre a existência do TDAH, e o questionamento do uso da Ritalina©.
Mencionam também a forte influência de artigos estrangeiros nas publicações, algo que, embora
não tão acentuado, também foi documentado em uma investigação para a Argentina
(FARAONE; BIANCHI, 2018).
Para o caso da França, Ponnou, Haliday e Gonon (2019) concluem que, ao final do
período analisado, a mídia francesa, em vez de promover a doença (doenças mercantilistas),
parece ter desempenhado um papel na resistência à medicalização do TDAH. Isso se torna mais
relevante no contexto que Akrich e Rabeharisoa (2018) colocam para a França. Os autores
reconstruíram que, além da persistência das tensões entre psiquiatras com formação
psicodinâmica e outros especialistas, o panorama do TDAH na França mudou substancialmente
desde o início do século XXI. Sua análise mostrou que, no período 1998-2004, dois terços dos
artigos publicados expressavam dúvidas sobre a realidade do TDAH, associando-o
inequivocamente à cultura americana. Ao contrário, no período 2005-2012, três quartos dos
artigos deixaram de descartar a existência do TDAH, expondo frequentemente uma perspectiva
neurobiológica para consolidá-lo.
Para Taiwan, Tseng (2018) também documentou uma mudança na forma como o TDAH
é apresentado na mídia de massa, datando do período 1998-2018. De um vínculo prévio com o
mau comportamento, passou da mídia para uma associação ao mau desempenho dos alunos.
Assim, ao final do período estudado, o TDAH é retratado mais como uma questão acadêmica
do que disciplinar.
Tseng (2018) conclui que essa transformação pode ser entendida como um dos efeitos
da publicação do DSM-IV em 1994. Essa versão envolveu, entre outras modificações, a
reformulação do TDAH em termos do estabelecimento do subtipo desatento, sem
hiperatividade e impulsividade. A influência do DSM na globalização do TDAH é um elemento
que Conrad e Bergey (2014) marcam como um veículo para a globalização do TDAH, que vem
sendo estudado em termos de desbloqueio epistemológico e tecnológico (BIANCHI, 2014), e
que está presente como alusão praticamente unânime no corpus analisado.
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Medicalização global, TDAH e infâncias. Um estudo na mídia de 7 países
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Voltando ao caso de Taiwan, outro ator que ele menciona e que também é referência
recorrente nos materiais estudados são as empresas farmacêuticas, outro dos veículos da
globalização do TDAH identificados por Conrad e Bergey (2014). Tseng (2018) os analisa em
seu papel de patrocinadores em concursos acadêmicos para crianças diagnosticadas com
TDAH, associando o tratamento farmacológico ao aumento das chances de serem escolhidos.
Nesse sentido, Tseng (2018) marca a ambiguidade de, por um lado, o efeito desestigmatizante
desses concursos, e sua coexistência com a apresentação midiática do diagnóstico, que continua
sendo referido como um transtorno neurológico puro, e a descrições dos "milagres" atribuídos
às drogas.
O lugar dos laboratórios farmacêuticos transnacionais como patrocinadores também foi
estudado no Brasil (ITABORAHY; ORTEGA, 2013), onde esse papel foi documentado nos
sites de entidades sem fins lucrativos que visam difundir o conhecimento sobre o TDAH. O
exemplo é a Associação Brasileira de Déficit da Atenção (ABDA), criada em 1999, que em seu
site lista o patrocínio dos laboratórios Novartis e Shire, junto a outras associações profissionais,
federações e empresas nacionais e internacionais, e contribuições de associados (BIANCHI
et
al.
, 2016).
Segunda discussão: a articulação dos atores sociais
A segunda discussão está relacionada à articulação de atores não médicos nos processos
de globalização do TDAH. Conrad (2005) afirmou que a medicalização viu seu potencial crítico
renovado ao incorporar as tecnologias como um dos motores de mudança (
shifting engines
) do
processo no século XXI, em detrimento dos profissionais médicos como principais atores da
medicalização da sociedade. Posteriormente, a essa linha de transformações anteriores na
medicalização, Conrad e Bergey (2014) acrescentaram a globalização do diagnóstico, tomando
o TDAH como exemplo paradigmático.
O pressuposto básico que norteia essa discussão, então, é, em primeiro lugar, que a
multiplicidade de atores sociais não médicos que estão presentes nos processos de globalização
do TDAH não é desintegrada ou isolada, mas que existem áreas de articulação entre suas
agendas, objetivos e interesses. E, em segundo lugar, que a mídia desempenha um papel
relevante como articuladora de atores sociais não médicos nesses processos.
Os resultados da análise dos materiais mostram que, em todos os países, estão
documentadas articulações entre atores sociais não médicos. Em consonância com o que
propõem Bianchi, Faraone e Torricelli (2021), quando a globalização de um diagnóstico se
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torna evidente em determinada região ou país, é possível identificar tanto consonâncias globais
que podem ser rastreadas em escala global, quanto especificidades locais que fazer diferentes
fatores políticos, econômicos, culturais, sociais etc. Mais amplamente, isso está ligado ao fato
de que a medicalização não é um processo unívoco, homogêneo ou geral (BIANCHI
et al.
2016).
Portanto, essas articulações que fazem parte dos processos de globalização do TDAH
têm alguns atores em comum na maioria dos casos nacionais, e em outros casos possuem
características únicas, em um duplo vínculo típico desses processos, já documentado em relação
a sazonalidade e as tendências de dispensação de metilfenidato e atomoxetina na Argentina
(BIANCHI; FARAONE; TORRICELLI, 2021).
Como resultado da análise dos materiais, constatamos que os atores sociais mais
referenciados de forma articulada são a mídia, laboratórios farmacêuticos (com campanhas de
marketing farmacêutico como elemento de destaque), associações de pais e professores. Menos
frequentes são as alusões a políticas públicas ou programas assistenciais, regulamentos ou
projetos legislativos para sancionar leis específicas. Uma exposição exaustiva das diferentes
articulações dos atores ultrapassaria os objetivos deste artigo, razão pela qual apresentamos a
seguir alguns exemplos de articulações no Brasil, Estados Unidos e Argentina.
Para o Brasil, Itaborahy e Ortega (2013) documentaram a associação entre os principais
centros de pesquisa que promovem o conhecimento sobre TDAH, grupos de apoio ao paciente
e laboratórios farmacêuticos. Estes formam um importante polo de divulgação do discurso
oficial sobre o diagnóstico. No estudo apontam que um importante jornal especializado inclui
anúncios de medicamentos específicos, e publica trabalhos de Grupos de Estudos financiados
por laboratórios, e o conflito de interesses decorrente dessa articulação nem sempre foi
explicitado na revista. Quanto às associações e grupos de doentes e cuidadores, estes são
constituídos, além de familiares e pessoas diagnosticadas, por profissionais médicos e
investigadores especializados e reconhecidos internacionalmente, estes últimos com forte
presença nos grupos.
O grupo nacional mais relevante (surgido em 1999) é a Associação Brasileira de Déficit
da Atenção (ABDA). O site desta entidade sem fins lucrativos é divulgado em várias revistas e
publicações científicas periódicas, e tem uma média de 200.000 acessos por mês. Uma coisa a
ter em mente é que a composição mista da ABDA a torna um meio relevante para leigos e
profissionais, na divulgação do discurso biomédico sobre o TDAH no país (ORTEGA;
CONÇALVES; ZORZANELLI, 2018). O exposto permite concluir que a articulação entre
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Medicalização global, TDAH e infâncias. Um estudo na mídia de 7 países
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, Araraquara,
v. 27, n. esp. 2, e022023, 2022. e-ISSN:
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centros de pesquisa, grupos de pacientes e laboratórios farmacêuticos no Brasil constitui uma
complexa rede de formação e disseminação do conhecimento biomédico sobre o TDAH.
Nos Estados Unidos, por outro lado, Bergey
et al.
(2018) elencam uma série de fatores
concomitantes com a mídia, como outros veículos para a expansão do diagnóstico de TDAH
para a população adulta. Eles citam uma ampla coalizão de profissionais médicos, juntamente
com outros atores não médicos, como ativistas contra a pobreza, defensores da saúde e bem-
estar das crianças e crianças com deficiência.
De acordo com Bergey
et al.
(2018), nos Estados Unidos, desde a década de 1990, a
mídia tem funcionado como veículo para a popularização de concepções que implicam na
ampliação do diagnóstico de TDAH na infância e adolescência, para um transtorno que abrange
toda a vida (embora não existisse evidência clínica ou epidemiológica). Eles mencionam tanto
programas de televisão quanto artigos em revistas populares.
A já mencionada coalizão de atores médicos e não médicos fez lobby e conseguiu, em
1990, a aprovação do
Americans with Disabilities Act
(ADA), cuja política proíbe a
discriminação e garante oportunidades iguais para pessoas com deficiência no emprego, nos
serviços governamentais estaduais e locais, adaptações em equipamentos públicos e transporte.
O TDAH foi incluído neste ato como uma condição física ou mental que poderia aumentar o
nível de deficiência. Essa política ajudou a estabelecer o TDAH adulto como uma condição
legítima.
Por fim, para a Argentina, foram encontradas duas articulações de atores não médicos
em que a mídia tem um papel de destaque. A primeira foi detectada entre as estratégias de
marketing da indústria farmacêutica, foi documentada a publicação de cartilhas e boletins
voltados aos professores, que são vendidos em bancas de jornal. Essas publicações contêm
conselhos para professores e informações detalhadas sobre os medicamentos usados no
tratamento do TDAH, dados estatísticos e conselhos gerais para detectar a condição. Também
foi documentada a publicação de artigos divulgando medicamentos para o tratamento do
TDAH, que foram incluídos em revistas especializadas para professores e psicólogos
educacionais, às vezes dedicando números inteiros ao assunto. A autoria dos referidos artigos
e dossiês é geralmente de formadores de opinião vinculados a laboratórios que produzem os
psicofármacos amplamente difundidos. Os estudos destacam que essas modalidades de
publicidade na mídia escrita não são legalmente permitidas na Argentina de acordo com a Lei
16.463, que proíbe qualquer forma de publicidade de medicamentos que requerem prescrição
médica (FARAONE
et al.
, 2010).
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A segunda está documentada mais recentemente (BIANCHI
et al.
, 2020), e decorre dos
conflitos decorrentes da sobreposição e tensão de projetos de lei e regulamentos de diferentes
jurisdições e âmbitos, que circulam em torno do TDAH e outros diagnósticos específicos (TEA,
DEA). Isso ocorre em um contexto de crescente expansão em nível internacional das chamadas
leis para patologias e de retração do Estado na cobertura dos problemas relacionados à saúde.
Nesse caso, a mídia, especialmente a imprensa escrita on-line local e regional, e apenas em
alguns casos voltada para uma grande audiência nacional, reproduz tais conflitos incorporando
a questão da legislação específica para o diagnóstico e tratamento do TDAH. O surgimento
dessas notas se consolida a partir de meados da década de 2010, não tendo sido documentada
nenhuma menção à legislação vinculada a esses diagnósticos anterior a esse período.
O estudo de Bianchi
et al.
(2020) também conclui que, nos processos de medicalização,
e particularmente no caso do TDAH em crianças, a imprensa escrita argentina (nacional e
provincial) tornou-se um ator não médico relevante tanto na institucionalização do problema,
como na apresentação de linhas terapêuticas a seguir e em ações de promoção de legislação
específica. As notas jornalísticas analisadas no estudo mostram que a escola e a família, e outros
profissionais não médicos da área da saúde mental, psicólogos e psicopedagogos são as
principais referências consultadas, juntamente com os médicos (neurologistas, psiquiatras e
pediatras).
A dinâmica identificada na Argentina é consistente com a documentada em pesquisas
no Brasil, Estados Unidos e França, delineando um quadro que transcende as fronteiras
nacionais. No entanto, no estudo das notas jornalísticas da imprensa escrita online na Argentina,
não foi documentada a presença da indústria farmacêutica como voz direta, nem vínculo
explícito com associações ou grupos de apoio a crianças com TDAH, podendo ser registrado o
fato de que as associações e grupos de apoio a pacientes e familiares não atingem a escala ou
coordenação com as empresas farmacêuticas que possuem no Brasil, Estados Unidos e outros
países europeus (BIANCHI
et al.
, 2017).
Uma que emerge dessa segunda discussão tem a ver com a escassa perspectiva de gênero