image/svg+xml
A interferência da herança
cultural na educação sexual de agentes escolares: um estudo de uma instituição infantil do interior
paulista
RIAEE
–
Revista Ibero
-
Americana de Estudos em Educação
,
Araraquara, v. 16, n. 1, p.
176
-
188
, jan./mar. 202
1
. e
-
ISSN: 1982
-
5587
DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v16i1.13586
176
A INTERFERÊNCIA DA HERANÇA CULTURAL NA EDUCAÇÃO SEXUAL
D
E AGENTES ESCOLARES: UM ESTUDO DE UMA INSTITUIÇÃO INFANTIL D
O
INTERIOR PAULISTA
LA INTERFERENCIA DE LA HERENCIA CULTURAL EN LA EDUCACIÓN SEXUAL
DE AGENTES ESCOLARES: UN ESTUDI
O DE
UNA INSTITUICIÓN INFANTIL DEL
INTERIOR PAULISTA
THE INTERFERENCE OF CULTURAL HERITAGE IN THE SEXUAL EDUCATION
OF SCHOOL AGENTS: A STUDY OF ONE CHILD INSTITUTION OF
THE
COUNTRYSIDE
OF
SÃO PAULO
Maria Fernanda Celli de
OLIVEIRA
1
Luci Regina
MUZZETI
2
RESUMO
:
A Educação sexual ainda é um assunto
tratado
como tabu
e trabalh
á
-
lo é essencial
para
uma
formação natural e integral de todo e qualquer indivíduo desde a mais tenra idade.
Partindo desta visão, o presente trabalho visa analisar e desvelar
,
com base na
análise de três
agente
s
escolares de uma Instituição de Educação Infantil
,
como a
h
erança cu
ltural cultivada
no seio familiar
pode vir a interferir no trabalho das questões relacionadas à sexualidade
dentro e fora do âmbito escolar.
Para a realização deste estudo partimos dos conceitos
elaborados por Pierre Bourdieu
,
e para a
análise d
os
dados
ut
ilizamos
o método praxiológico,
também elaborado pelo sociólogo francês e sua equipe.
O estudo aqui proposto teve como
intuito levantar algumas discussões acerca da interferência
d
a herança familiar
sobre a
sexualidade.
PALAVRAS
-
CHAVE
:
Agentes escolares.
Educação infantil.
Educação sexual. Herança
cultural.
RESUMEN
:
La educación sexual sigue siendo un tema tabú y trabajar en él es fundamental
para la formación natural e integral de todos los individuos desde edades tempranas.
Desd
e
esta mirada, el presente trabajo tiene como objetivo analizar y desvelar, a partir del
análisis
de tres agentes escolares de una Institución de Educación Infantil, cómo el patrimonio
cultural cultivado en la familia puede llegar a interferir en el trabajo de temas relacionados
con la sexualidad en el interior y fuera del entorno escolar. Pa
ra la realización de este
estudio partimos de los conceptos elaborados por Pierre Bourdieu, y para el análisis de los
datos utilizamos el método praxiológico, también elaborado por el sociólogo francés y su
equipo. El estudio propuesto aquí tuvo como objet
ivo suscitar algunas discusiones sobre la
interferencia de la herencia familiar en la sexualidad.
PALA
BRAS
CLAVE
:
Agentes escolares. Educación
i
nfantil. Educación sexual. Patrimonio
cultural.
1
Universidade Estadual Paulista (UNESP), Araraquara
–
SP
–
Brasil. Doutoranda no Programa de Pós
-
graduação em Educação Escolar. ORCID:
https://orcid.org/0000
-
0001
-
6358
-
7986
. E
-
mail:
maria
-
fernanda
-
co@hotmail.com
2
Universidade Estadual Paulista (UNESP), Araraquara
–
SP
–
Brasil.
Professora no
o Departamento de Didática
.
Doutorado em Educação
(UFSCAR).
ORCID:
https://orcid.org/0000
-
0002
-
6808
-
2490. E
-
mail
:
luci.muzzeti@unesp.br
image/svg+xml
Maria Fernanda Celli de OLIVEIRA e Luci Regina MUZZETI
RIAEE
–
Revista Ibero
-
Americana de Estudos em Educação
,
Araraquara, v. 16, n. 1, p.
176
-
188
, jan./mar. 202
1
. e
-
ISSN: 1982
-
5587
DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v16i1.13586
177
ABSTRACT
:
Sex education is still a taboo subject and
working on it is essential for a natural
and integral formation of each and every individual from an early age. Based on this vision,
the present work aims to analyze and unveil, based on the analysis of three school agents of
an Institution of Early Child
hood Education, how the cultural heritage cultivated within the
family can come to interfere in the work of issues related to sexuality inside and outside the
school environment. To carry out this study we started from the concepts elaborated by Pierre
Bou
rdieu, and to analyze the data we used the praxeological method, also elaborated by the
French sociologist and his team. The study proposed here was intended to raise some
discussions about the interference of family inheritance on sexuality.
KEYWORDS
:
Sc
hool agents. Child education.
Sex education. Cultural heritage.
Introdução
As questões relacionadas à sexualidade são até hoje vistas como assuntos “proibidos”
a
serem tratados dentro da escola, sobretudo na Educação Infantil. As lacunas existentes na
formação dos educadores e agente escolares em geral interferem no trabalho
desta
s questões
dentro e fora do âmbito escolar.
A importância de trazer uma instrução de qualidade referente
à sexualidade é iminente a todos os indivíduos, uma vez que
se trata
de
algo intrínseco à vida.
Seguindo esta linha de pensamento e com base no fato de que a Educação Infantil é a fase
mais importante no desenvolvimento humano
,
é imprescindível que a Educação sexual ou
instrução relacionada
à
sexualidade seja explorada desde
a mais tenra idade nas escolas e no
seio familiar.
Assim, como base no exposto, o presente trabalho visa desvelar como a herança
cultural
cultivada
no interior da família pode interferir no
habitus
, ou seja, no comportamento
das agentes aqui analisadas no
tocante
à
sexualidade. Assim, visamos analisar como tais
colaboradoras enxergam a temática, bem como a importância de trabalhá
-
las com as crianças
seja dentro ou fora da escola.
Vale ressaltar ainda que o trabalho aqui proposto faz parte de um recorte da
dissertação de mestrado intitulada “TRAJET
ÓRIA SOCIAL E SEXUALIDADE:
estruturação
da identidade de gênero na Educação Infantil”
,
que analisou a interferência da herança
cultural de três agentes escolares sobre a estruturação da identidade de gênero das mes
mas e a
interferência exercida sobre as crianças atendidas por elas
,
seja enquanto filhos
(as) ou aluno
(as).
Para melhor estruturar este estudo, as três agentes escolares
(colaboradoras da
pesquisa)
serão apresentadas com base em sua trajetória social
,
e os dados obtidos com as
entrevistas semiestruturadas e posteriormente analisados por meio do método
praxiol
ógico
image/svg+xml
A interferência da herança
cultural na educação sexual de agentes escolares: um estudo de uma instituição infantil do interior
paulista
RIAEE
–
Revista Ibero
-
Americana de Estudos em Educação
,
Araraquara, v. 16, n. 1, p.
176
-
188
, jan./mar. 202
1
. e
-
ISSN: 1982
-
5587
DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v16i1.13586
178
(
ORTIZ
,
1983
)
serão incorporados ao texto ao longo da exploração dos conceitos elabora
dos
por Pierre Bourdieu e sua equipe, a saber,
habitus
, gênero e herança cultural. Além disso,
como pano de fundo para a análise referente
à
sexualidade, será apresentado um breve
histórico acerca da temática, trazendo um contraponto
entre realidade e pass
ado
, a fim de
compreender a construção social existente na fala das colaboradoras da pesquisa.
Contemporaneidade x passado: a sexualidade ainda desconhecida
Conforme Ribeiro (2009)
,
a transição do século XIX para o século XX fora
marcada por diversas lu
tas ligadas à sexualidade, que vão desde o combate à sífilis e
à
s
mais variadas doenças venéreas até o advento da pílula anticoncepcional, movimentos pró
-
sexualidade (hippie, por exemplo) e a disseminação da AIDS nos anos 80. Porém, mesmo
tantas décadas de
pois, os assuntos que dizem respeito à sexualidade humana ainda são
tratados como algo distante e mostra
m
-
se como um fator de incômodo a grande parte da
sociedade.
Segundo Guizzo e Felipe (2015), a partir da segunda metade do século XX, alguns
grupos que p
ermaneceram por muitos anos à margem da sociedade começaram a
reivindicar seus direitos e questionar, assim, a educação no Brasil. “Tais segmentos, a
saber: indígenas, portadores de necessidades especiais, negros/as, mulheres e não
heterossexuais (GUIZZO
;
FELIPE, 2015, p. 2)” clamavam por uma identidade própria que
considerasse as diferenças no saber, pensar e agir. Esses movimentos foram ganhando
força, especialmente após a década de 1960
,
com a revolução sexual.
No Brasil, a década de 1990 foi marcada po
r um contexto reivindicatório em
que diferentes movimentos sociais denunciaram as práticas discriminatórias
presentes na educação e exigiram mudanças. O Ministério da Educação tem
promovido iniciativas, debates e discussões com o propósito de superar os
pr
econceitos e as discriminações em instituições escolares em função de
especificidades que marcam os sujeitos como “diferentes”. Estas discussões,
bem como outras ações de movimentos sociais, contribuíram para a
elaboração de documentos oficiais que teriam
emergido com o propósito de
proporcionar uma educação similar para todos e todas independente de
gênero, raça, sexualidade, classe social e outros marcadores possíveis
(GUIZZO
;
FELIPE, 2015, p. 3).
Assim, com base na preocupação
e
m
formar adultos conscientes e capazes de
compreender a natureza das relações humanas, bem como as diferenças e peculiaridades e,
sobretudo, naquilo que diz respeito à sexualidade, o Ministério da Educação sugere que a
Educa
ção Sexual deve estar presente no currículo das escolas desde cedo, como um tema
image/svg+xml
Maria Fernanda Celli de OLIVEIRA e Luci Regina MUZZETI
RIAEE
–
Revista Ibero
-
Americana de Estudos em Educação
,
Araraquara, v. 16, n. 1, p.
176
-
188
, jan./mar. 202
1
. e
-
ISSN: 1982
-
5587
DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v16i1.13586
179
transversal, ou seja, não se
tratando de uma disciplina obrigatória e fixa da grade curricular,
mas devendo estar atrelada a outras matérias, comumente abordada na biologia. T
al sugestão
está descrita nos PCNs
3
, os Parâmetros Curriculares Nacionais
(BRASIL, 199
8
), documento
responsável pela adequação e equação do ensino no Brasil. Por outro lado, este documento é
uma sugestão do governo, e, portanto, a não obrigatoriedade do e
nsino de tal temática
demonstra o preconceito que ainda é fortemente enraizado e presente na cultura brasileira.
Ademais, vale ressaltar que os PCNs fora
m
o primeiro reconhecimento de porte
n
acional, que
legitimou a necessidade e importância da implantação
de programas de orientação de
Educação Sexual nas escolas que atendem crianças e adolescentes, o que não abrange, porém,
a Educação Infantil, perpetuando
,
assim, a ideia de falta de necessidade da abordagem na
referida faixa etária.
De qualquer maneira, a
educação sexual deve ser promovida em todos os âmbitos e
dentre todas as faixas etária, onde,
As necessidades e preocupações da saúde sexual e reprodutiva de crianças e
jovens variam muito intra e inter
-
regiões, comunidades e países, o que pode
afetar a
percepção de um objetivo específico de aprendizagem. Esses
objetivos devem, portanto, ser sempre ajustados ao contexto com base em
dados e informações confirmadas disponíveis. De qualquer modo, a maior
parte dos peritos acredita que crianças e jovens quere
m e precisam de
informação sobre sexualidade e saúde sexual de modo abrangente e tão cedo
quanto possível (UNESCO, 2014, p.
15).
Seguindo esta linha de pensamento, em busca da ascensão e disseminação da educação
sexual dentro do âmbito escolar, propõe
-
se
que a orientação sexual seja tratada dentro da
escola de maneira interdisciplinar, garantindo assim que o assunto seja encarado de maneira
natural e essencial ao comportamento e desenvolvimento humano, em todas as suas fases.
Mas como inculcar e conscientizar
a
sociedade acerca da importância de tratar a
Educação sexual dentro das escolas sem que esta se torne um problema? Neste sentido,
propõe
-
se neste estudo uma discussão sobre o tratamento da temática através da
interdiscipl
inaridade, ou seja, o tema deve passar e caminhar entre todas as vertentes dentro
do sistema de ensino d
esde a mais tenra idade, contendo responsabilidade, compromisso e
respeito
a
todos.
A sexualidade é algo intrínseco ao ser humano e direito de todos, co
nforme enfatizado
pela UNESCO
nas “
Orientações técnicas de educação em sexualidade para o cenário
brasileiro: tópicos e objetivos de aprendizagem” (UNESCO, 2014)
. Quando orientamos uma
3
Atual BNCC
-
Base Nacional Comum Curricular
.
image/svg+xml
A interferência da herança
cultural na educação sexual de agentes escolares: um estudo de uma instituição infantil do interior
paulista
RIAEE
–
Revista Ibero
-
Americana de Estudos em Educação
,
Araraquara, v. 16, n. 1, p.
176
-
188
, jan./mar. 202
1
. e
-
ISSN: 1982
-
5587
DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v16i1.13586
180
criança em relação à sexualidade, não apenas estamos contribuindo para
a promoção de uma
melhor qualidade de vida, mas também protegemos a infância e os direitos dos pequenos,
além de promover o respeito e a igualdade. Vale ressaltar que o material
se destina
a crianças
a partir dos
cinco
anos de idade, o que ilustra uma das discussões do estudo aqui proposto,
cujo objetivo é alertar para a despreocupação em relação
à
orientação sexual das crianças
menores. Ora, se a sexualidade é algo inerente ao ser humano, por que não há maiores
preocup
ações com a orientação das crianças desde a mais tenra idade?
Apresentação geral das colaboradoras
Antonela
Antonela tem 41 anos, é
casada e
mãe de uma filha, diretora da instituição de
educação infantil aqui analisada, e vem de uma família de 5 pessoa
s, sendo pai, mãe e três
filhos, o que demonstra a relação existente entre a fração de classe média e as estratégias de
reprodução de fecundidade, que difere das famílias da camada popular, que
enxerga
m no
grande número de filhos um futuro apreendido como
sendo de sucesso. Seus pais trabalhavam
e, segundo ela, nenhum dos dois questionava o trabalho um do outro, ambos tinham liberdade
para decidir no que queriam trabalhar.
Dolores
Dolores é auxiliar de escritório na secretaria da escola de
Educação I
nfan
til aqui
analisada. Tem 26 anos, é casada e mãe de duas filhas. É oriunda originalmente de uma
família de 6 pessoas, pai, mãe e quatro irmãos, mas, segundo ela, considera mais algumas
pessoas como sendo da família. Passou a infância em uma pequena cidade d
o interior de São
Paulo, na zona urbana.
Segundo a entrevistada, o marido não está satisfeito com a ocupação
atual dela, pois, segundo suas palavras
“Ele acha que eu não
“
tô
”
aonde eu deveria
“
tá
”
, eu
gosto muito de comércio, de vendas e hoje em dia eu
“
tô
”
trabalhando de auxiliar de escritório
(Dolores, 2016)”.
Márcia
Márcia tem 37 anos, é
casada e
mãe de três filhos, é professora (não gr
a
duada) da
instituição
de E
ducação
I
nfantil aqui analisada, e vem de uma f
amília
de 12 pessoas, sendo
que 9 são filhos de pai e mãe e 1 filho apenas do pai. A família morou durante 7 anos na zona
image/svg+xml
Maria Fernanda Celli de OLIVEIRA e Luci Regina MUZZETI
RIAEE
–
Revista Ibero
-
Americana de Estudos em Educação
,
Araraquara, v. 16, n. 1, p.
176
-
188
, jan./mar. 202
1
. e
-
ISSN: 1982
-
5587
DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v16i1.13586
181
rural, em uma cidade da Bahia. Segundo ela, não existe um trabalho específico de homem ou
mulher. Relata ainda que o pai não gostava muito d
a profissão d
e sua mãe
,
“
meu pai não
gostava muito
[
...
]
por causa de as crianças, porque tinha que ficar com os outros, aí por isso
que minha mãe sai de ser isso
[...]
(Márcia, 2016)”.
Gênero
segundo
Pierre
Bourdieu
Bourdieu (1999) define o gênero como
a “socialização do biológico e biologização
do
social
”
(BOURDIEU, 1999, p.
9), em outras palavras, o gênero é construído e
estruturado no
agente, no processo de socialização. É muito mais do que o simples sexo,
englobando todas as
relações de luta
e
de do
minação que permeiam a posição social do sexo
em uma determinada
sociedade, em um determinado momento histórico, contemplando,
assim, a ordem social das
coisas: “[...] A ordem social funciona como uma imensa máquina
simbólica que tende a
ratificar a domina
ção masculina sobre a qual se alicerça: é a divisão
social do trabalho,
distribuição bastante restrita das atividades atribuídas a cada um dos
dois sexos [...]”.
(BOURDIEU, 1999, p. 18).
Para Bourdieu (1999), o gênero perpassa a questão biológica e
trata
-
se de uma
violência simbólica quando nos referimos à dominação masculina. O sociólogo denuncia
ainda as dicotomias e oposições ligadas ao gênero, enfatizando que:
Quando os dominados aplicam àquilo que os domina esquemas que são
produto da dominação
ou, em outros termos, quando seus pensamentos e
suas percepções estão estruturados de conformidade com as estruturas
mesmas da relação da dominação que lhes é imposta, seus atos de
conhecimento
são, inevitavelmente, atos de
reconhecimento
, de
submissão
(B
OURDIEU, 1999, p. 22).
As disposições perante o gênero enquadram
-
se como resultado da trajetória social e da
herança cultural, principalmente em relação aos aspectos relacionados com a cultura familiar
e escolar.
Conforme Bourdieu (1999), a dominação está
intrinsecamente ligada à sociedade e se
faz imperceptível aos olhos, beirando a normalidade, onde, “a força masculina se evidencia no
fato de que ela dispensa justificação: a visão androcêntrica impõem
-
se como neutra e não tem
necessidade de se enunciar e
m discursos que visem a legitimá
-
la
”
(BOURDIEU, 1999, p. 18).
Isso quer dizer que, apesar de acreditarmos que temos a liberdade para pensarmos,
ainda aceitamos ser dominados pelos grupos dominantes. Dessa forma, o gênero é
construído
image/svg+xml
A interferência da herança
cultural na educação sexual de agentes escolares: um estudo de uma instituição infantil do interior
paulista
RIAEE
–
Revista Ibero
-
Americana de Estudos em Educação
,
Araraquara, v. 16, n. 1, p.
176
-
188
, jan./mar. 202
1
. e
-
ISSN: 1982
-
5587
DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v16i1.13586
182
e estruturado em um pr
ocesso de socialização que irá englobar as relações de
dominação
presentes na sociedade.
[...] sempre vi na dominação masculina, e no modo como é imposta e
vivenciada, o exemplo por excelência dessa submissão paradoxal,
resultante
daquilo que eu
chamo de violência simbólica, violência suave,
insensível,
invisível a suas próprias vítimas, que se exerce essencialmente
pelas vias
puramente simbólicas da comunicação e do conhecimento, ou,
mais
precisamente, do desconhecimento, do reconhecimento ou, em
última
instância, do sentimento (BOURDIEU, 1999, p.
7).
Bourdieu destaca ainda que:
Outro fator determinante da perpetuação das diferenças é a permanência
que
a economia dos bens simbólicos (do qual o casamento é uma peça
central)
deve à sua autonomia r
elativa, que permite à dominação
masculina nela
perpetuar
-
se, acima das transformações dos modos de
produção econômica:
isto, com o apoio permanente e explícito que a
família, principal guardiã do
capital simbólico, recebe das Igrejas e do
Direito (BOURDIE
U, 1999, p.
115).
Para
reconhecer as relações existentes entre as divisões de gênero, objeto de
estudo
desta pesquisa, faz
-
se necessário compreender como elas se estabeleceram.
Segundo Bourdieu
(1999), esse trabalho de reprodução deu
-
se até pouco
tempo
por três principais instâncias:
família, Igreja e escola.
Nas palavras do autor: “É sem dúvida
à
família que cabe o papel
principal na
reprodução da dominação e da visão masculina, é na família que se impõe a
experiência
precoce da divisão
sexual do trabalho e da representação legítima dessa divisão
[...]
(BOURDIEU, 1999, p. 103)
”
.
E
,
por fim, Bourdieu discorre acerca do pa
pel da escola na reprodução das
desigualdades de gênero:
[...] a Escola, mesmo quando já liberta da tutela da Igreja, c
ontinua a
transmitir os pressupostos da representação patriarcal (baseada na
homologia
entre a relação homem/mulher e a relação (adulto/criança) e
sobretudo,
talvez, os que estão inscritos em suas próprias estruturas
hierárquicas, todas
sexualmente conotad
as [...] (BOURDIEU, 1999, p.
104)
.
A força da ordem masculina se evidencia no fato de que ela dispensa justificação: a
visão androcêntrica impõe
-
se como neutra e não tem necessidade de se enunciar em
discursos
que visem a legitimá
-
la. (BOURDIEU, 1999, p.
18)
As divisões constitutivas da ordem social e, mais precisamente, as
relações
sociais de dominação e de exploração que estão instituídas entre
os gêneros
se inscrevem, assim, progressivamente em duas classes de
habitus
diferentes, sob a forma de
hexis
c
orporais opostos e
image/svg+xml
Maria Fernanda Celli de OLIVEIRA e Luci Regina MUZZETI
RIAEE
–
Revista Ibero
-
Americana de Estudos em Educação
,
Araraquara, v. 16, n. 1, p.
176
-
188
, jan./mar. 202
1
. e
-
ISSN: 1982
-
5587
DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v16i1.13586
183
complementares e de princípios de visão e de divisão, que levam a
classificar
todas as coisas do mundo e todas as práticas segundo
distinções redutíveis à
oposição
entre o masculino e o feminino
(BOURDIEU, 1999, p. 41)
Segundo as concepções do teórico, é no corpo, ou seja, na
héxis
corporal (ORTIZ,
1983), que as desigualdades entre os sexos se materializam e a ideia de dominação
masculina
se faz natural. Com isso, Bourdieu (1999) cria uma teoria que propõe e torna
possív
eis as
mudanças relacionadas à quebra dessa dominação masculina. “O mundo social
constrói o
corpo como realidade sexuada e como depositário de princípios de visão e de
divisão
sexualizantes” (BOURDIEU, 1999, p. 18)
.
A dominação masculina, que constitui as
mulheres como objetos
simbólicos,
cujo ser (esse) é um ser
-
percebido (percipiti) tem por efeito
coloca
-
las em
permanente estado de insegurança corporal, ou melhor, de
dependência
simbólica: elas existem primeiro pelo, e para, o olhar dos
outros, ou seja,
enquanto objetos receptivos, atraentes, disponíveis
(BOURDIEU, 1999, p.
82).
Quando falamos de gênero dentro do âmbito escolar,
podemos verificar nas falas das
colaboradoras que existem contradições e equívocos relacionados à temática
,
ilustrando tal
fato a partir do relato das participantes
,
que perpetuam os preconceitos
:
Olha, hoje em dia pra minha filha eu vejo de uma maneira diferente, porque,
as coisas mudaram muito, mas quando eu era criança eu brincava de pipa,
de pião, eu brincava de bolinha d
e gude, então, se você ver bem eu brincava
com coisas que era de menino e mesmo assim minha opção foi...
de gênero,
é feminina né, eu me considero feminina, então, é...
eu acho que hoje em dia
eu vejo mais isso, porque
“
tá
”
se discutindo muito isso, então
eu tenho
preocupação pelas minhas filhas, mas não que eu descrimino se ela quiser
brincar de bola, ela vai brincar de bola, mas sabendo que é um brinquedo
que é do amiguinho, no caso, um menino
(Dolores, 2016).
Na
visão de
Antonela,
por exemplo,
a constru
ção de gênero é algo
que se dá
socialmente
;
e
la
discorre acerca dos brinquedos e das brincadeiras realizadas dentro da escola
:
Ah, eu acho que, por exemplo, a boneca é mais de menina sim, a criança
às
vezes quer brincar de boneca mas não sabe que a boneca é de sexo feminino
ou de sexo masculino e pega e fala
“a
h é um bebê, meu bebê
”
; e a bola
também, várias meninas gostam de brincar de bola e, e bola é mais pra
menino, então, eu acho que assim, o gêner
o bola, a
í
a criança menina não
pode brincar de bola, não vejo porque não
(Antonela, 2016)
.
Quando
falamos de gênero no âmbito familiar,
ilustramos a visão de divisão gênero
inculcada na fala de Antonela
e de Dolores
,
Ah, eu sempre falo assim, é... por e
xemplo, é...
você é menina, é...
tomando
banho, vamos tomar banho, tomar banho com a mamãe, então sempre
image/svg+xml
A interferência da herança
cultural na educação sexual de agentes escolares: um estudo de uma instituição infantil do interior
paulista
RIAEE
–
Revista Ibero
-
Americana de Estudos em Educação
,
Araraquara, v. 16, n. 1, p.
176
-
188
, jan./mar. 202
1
. e
-
ISSN: 1982
-
5587
DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v16i1.13586
184
assim, frisando que é menina. Porque ela sempre fal
a
dos amiguinhos, de
todos, fala o nome deles, então menina... friso que ela é menininha
(Antonela,
2016).
Eu acho que cada um nasce do jeito que é
“
pa
”
nascer, isso não muda. Se
você tem que fazer
“
xixi
”
de pé, você vai fazer
“
xixi
”
de pé, como você vai
fazer
“
xixi
”
sentado. Eu acho que assim, eu sou contra [...]
(Dolores, 2016).
De maneira geral, as participantes demonstram uma visão de dominação naturalizada
em relação ao gênero, onde Bourdieu explica que
“a
força particular da sociodicéia masculina
lhe vem do fat
o de ela acumular e condensar duas operações: ela legitima uma relação de
dominação inscrevendo
-
a em uma natureza biológica que é, por sua vez, ela própria uma
construção social naturalizada
”
(BOURDIEU, 1999, p. 33).
Verificamos a naturalização desta
domin
ação na fala de Márcia, quando indagada a respeito do que é ser um homem bem
sucedido:
“
Ah, um homem com uma boa profissão, que estuda,
‘
tipo
’
advogado (risos)
assim...
”
(Márcia,
2016). Já uma mulher bem sucedida é “u