image/svg+xmlA interferência da herançacultural na educação sexual de agentes escolares: um estudo de uma instituição infantil do interior paulistaRIAEERevista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 16, n. 1, p. 176-188, jan./mar. 2021. e-ISSN: 1982-5587DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v16i1.13586176A INTERFERÊNCIA DA HERANÇA CULTURAL NA EDUCAÇÃO SEXUAL DE AGENTES ESCOLARES: UM ESTUDO DE UMA INSTITUIÇÃO INFANTIL DO INTERIOR PAULISTALA INTERFERENCIA DE LA HERENCIA CULTURAL EN LA EDUCACIÓN SEXUAL DE AGENTES ESCOLARES: UN ESTUDIO DE UNA INSTITUICIÓN INFANTIL DELINTERIOR PAULISTATHE INTERFERENCE OF CULTURAL HERITAGE IN THE SEXUAL EDUCATION OF SCHOOL AGENTS: A STUDY OF ONE CHILD INSTITUTION OF THE COUNTRYSIDEOF SÃO PAULOMaria Fernanda Celli de OLIVEIRA1Luci Regina MUZZETI2RESUMO: A Educação sexual ainda é um assunto tratadocomo tabu e trabalhá-lo é essencial paraumaformação natural e integral de todo e qualquer indivíduo desde a mais tenra idade. Partindo desta visão, o presente trabalho visa analisar e desvelar,com base na análise de três agentesescolares de uma Instituição de Educação Infantil,como aherança cultural cultivada no seio familiarpode vir a interferir no trabalho das questões relacionadas à sexualidade dentro e fora do âmbito escolar. Para a realização deste estudo partimos dos conceitos elaborados por Pierre Bourdieu,e para a análise dosdadosutilizamos o método praxiológico, também elaborado pelo sociólogo francês e sua equipe. O estudo aqui proposto teve como intuito levantar algumas discussões acerca da interferência da herança familiar sobre asexualidade.PALAVRAS-CHAVE: Agentes escolares. Educação infantil. Educação sexual. Herança cultural. RESUMEN:La educación sexual sigue siendo un tema tabú y trabajar en él es fundamental para la formación natural e integral de todos los individuos desde edades tempranas. Desde esta mirada, el presente trabajo tiene como objetivo analizar y desvelar, a partir delanálisis de tres agentes escolares de una Institución de Educación Infantil, cómo el patrimonio cultural cultivado en la familia puede llegar a interferir en el trabajo de temas relacionados con la sexualidad en el interior y fuera del entorno escolar. Para la realización de este estudio partimos de los conceptos elaborados por Pierre Bourdieu, y para el análisis de los datos utilizamos el método praxiológico, también elaborado por el sociólogo francés y su equipo. El estudio propuesto aquí tuvo como objetivo suscitar algunas discusiones sobre la interferencia de la herencia familiar en la sexualidad.PALABRAS CLAVE:Agentes escolares. Educación infantil. Educación sexual. Patrimonio cultural.1Universidade Estadual Paulista (UNESP), Araraquara SPBrasil. Doutoranda no Programa de Pós-graduação em Educação Escolar. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6358-7986. E-mail:maria-fernanda-co@hotmail.com2Universidade Estadual Paulista (UNESP), Araraquara SPBrasil.Professora no o Departamento de Didática. Doutorado em Educação (UFSCAR). ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6808-2490. E-mail:luci.muzzeti@unesp.br
image/svg+xmlMaria Fernanda Celli de OLIVEIRA e Luci Regina MUZZETIRIAEERevista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 16, n. 1, p. 176-188, jan./mar. 2021. e-ISSN: 1982-5587DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v16i1.13586177ABSTRACT:Sex education is still a taboo subject and working on it is essential for a natural and integral formation of each and every individual from an early age. Based on this vision, the present work aims to analyze and unveil, based on the analysis of three school agents of an Institution of Early Childhood Education, how the cultural heritage cultivated within the family can come to interfere in the work of issues related to sexuality inside and outside the school environment. To carry out this study we started from the concepts elaborated by Pierre Bourdieu, and to analyze the data we used the praxeological method, also elaborated by the French sociologist and his team. The study proposed here was intended to raise some discussions about the interference of family inheritance on sexuality.KEYWORDS:School agents. Child education. Sex education. Cultural heritage.IntroduçãoAs questões relacionadas à sexualidade são até hoje vistas como assuntos “proibidos” aserem tratados dentro da escola, sobretudo na Educação Infantil. As lacunas existentes na formação dos educadores e agente escolares em geral interferem no trabalho destas questões dentro e fora do âmbito escolar. A importância de trazer uma instrução de qualidade referente à sexualidade é iminente a todos os indivíduos, uma vez que se tratadealgo intrínseco à vida. Seguindo esta linha de pensamento e com base no fato de que a Educação Infantil é a fase mais importante no desenvolvimento humano,é imprescindível que a Educação sexual ou instrução relacionada àsexualidade seja explorada desde a mais tenra idade nas escolas e no seio familiar. Assim, como base no exposto, o presente trabalho visa desvelar como a herança cultural cultivadano interior da família pode interferir no habitus, ou seja, no comportamento das agentes aqui analisadas notocante àsexualidade. Assim, visamos analisar como tais colaboradoras enxergam a temática, bem como a importância de trabalhá-las com as crianças seja dentro ou fora da escola.Vale ressaltar ainda que o trabalho aqui proposto faz parte de um recorte da dissertação de mestrado intitulada “TRAJETÓRIA SOCIAL E SEXUALIDADE: estruturação da identidade de gênero na Educação Infantil”,que analisou a interferência da herança cultural de três agentes escolares sobre a estruturação da identidade de gênero das mesmas e a interferência exercida sobre as crianças atendidas por elas,seja enquanto filhos(as) ou aluno(as). Para melhor estruturar este estudo, as três agentes escolares(colaboradoras da pesquisa)serão apresentadas com base em sua trajetória social,e os dados obtidos com as entrevistas semiestruturadas e posteriormente analisados por meio do método praxiológico
image/svg+xmlA interferência da herançacultural na educação sexual de agentes escolares: um estudo de uma instituição infantil do interior paulistaRIAEERevista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 16, n. 1, p. 176-188, jan./mar. 2021. e-ISSN: 1982-5587DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v16i1.13586178(ORTIZ, 1983)serão incorporados ao texto ao longo da exploração dos conceitos elaborados por Pierre Bourdieu e sua equipe, a saber, habitus, gênero e herança cultural. Além disso, como pano de fundo para a análise referente àsexualidade, será apresentado um breve histórico acerca da temática, trazendo um contraponto entre realidade e passado, a fim decompreender a construção social existente na fala das colaboradoras da pesquisa.Contemporaneidade x passado: a sexualidade ainda desconhecidaConforme Ribeiro (2009),a transição do século XIX para o século XX fora marcada por diversas lutas ligadas à sexualidade, que vão desde o combate à sífilis e às mais variadas doenças venéreas até o advento da pílula anticoncepcional, movimentos pró-sexualidade (hippie, por exemplo) e a disseminação da AIDS nos anos 80. Porém, mesmo tantas décadas depois, os assuntos que dizem respeito à sexualidade humana ainda são tratados como algo distante e mostram-se como um fator de incômodo a grande parte da sociedade.Segundo Guizzo e Felipe (2015), a partir da segunda metade do século XX, alguns grupos que permaneceram por muitos anos à margem da sociedade começaram a reivindicar seus direitos e questionar, assim, a educação no Brasil. “Tais segmentos, a saber: indígenas, portadores de necessidades especiais, negros/as, mulheres e não heterossexuais (GUIZZO;FELIPE, 2015, p. 2)” clamavam por uma identidade própria que considerasse as diferenças no saber, pensar e agir. Esses movimentos foram ganhando força, especialmente após a década de 1960,com a revolução sexual.No Brasil, a década de 1990 foi marcada por um contexto reivindicatório em que diferentes movimentos sociais denunciaram as práticas discriminatórias presentes na educação e exigiram mudanças. O Ministério da Educação tem promovido iniciativas, debates e discussões com o propósito de superar os preconceitos e as discriminações em instituições escolares em função de especificidades que marcam os sujeitos como “diferentes”. Estas discussões, bem como outras ações de movimentos sociais, contribuíram para a elaboração de documentos oficiais que teriam emergido com o propósito de proporcionar uma educação similar para todos e todas independente de gênero, raça, sexualidade, classe social e outros marcadores possíveis (GUIZZO;FELIPE, 2015, p. 3).Assim, com base na preocupação emformar adultos conscientes e capazes de compreender a natureza das relações humanas, bem como as diferenças e peculiaridades e, sobretudo, naquilo que diz respeito à sexualidade, o Ministério da Educação sugere que a Educação Sexual deve estar presente no currículo das escolas desde cedo, como um tema
image/svg+xmlMaria Fernanda Celli de OLIVEIRA e Luci Regina MUZZETIRIAEERevista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 16, n. 1, p. 176-188, jan./mar. 2021. e-ISSN: 1982-5587DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v16i1.13586179transversal, ou seja, não se tratando de uma disciplina obrigatória e fixa da grade curricular, mas devendo estar atrelada a outras matérias, comumente abordada na biologia. Tal sugestão está descrita nos PCNs3, os Parâmetros Curriculares Nacionais(BRASIL, 1998), documento responsável pela adequação e equação do ensino no Brasil. Por outro lado, este documento é uma sugestão do governo, e, portanto, a não obrigatoriedade do ensino de tal temática demonstra o preconceito que ainda é fortemente enraizado e presente na cultura brasileira. Ademais, vale ressaltar que os PCNs foramo primeiro reconhecimento de porte nacional, que legitimou a necessidade e importância da implantaçãode programas de orientação de Educação Sexual nas escolas que atendem crianças e adolescentes, o que não abrange, porém, a Educação Infantil, perpetuando,assim, a ideia de falta de necessidade da abordagem na referida faixa etária.De qualquer maneira, aeducação sexual deve ser promovida em todos os âmbitos e dentre todas as faixas etária, onde,As necessidades e preocupações da saúde sexual e reprodutiva de crianças e jovens variam muito intra e inter-regiões, comunidades e países, o que pode afetar a percepção de um objetivo específico de aprendizagem. Esses objetivos devem, portanto, ser sempre ajustados ao contexto com base em dados e informações confirmadas disponíveis. De qualquer modo, a maior parte dos peritos acredita que crianças e jovens querem e precisam de informação sobre sexualidade e saúde sexual de modo abrangente e tão cedo quanto possível (UNESCO, 2014, p.15).Seguindo esta linha de pensamento, em busca da ascensão e disseminação da educação sexual dentro do âmbito escolar, propõe-se que a orientação sexual seja tratada dentro da escola de maneira interdisciplinar, garantindo assim que o assunto seja encarado de maneira natural e essencial ao comportamento e desenvolvimento humano, em todas as suas fases.Mas como inculcar e conscientizar asociedade acerca da importância de tratar a Educação sexual dentro das escolas sem que esta se torne um problema? Neste sentido, propõe-se neste estudo uma discussão sobre o tratamento da temática através da interdisciplinaridade, ou seja, o tema deve passar e caminhar entre todas as vertentes dentro do sistema de ensino desde a mais tenra idade, contendo responsabilidade, compromisso e respeito atodos.A sexualidade é algo intrínseco ao ser humano e direito de todos, conforme enfatizado pela UNESCO nas “Orientações técnicas de educação em sexualidade para o cenário brasileiro: tópicos e objetivos de aprendizagem” (UNESCO, 2014). Quando orientamos uma 3Atual BNCC -Base Nacional Comum Curricular.
image/svg+xmlA interferência da herançacultural na educação sexual de agentes escolares: um estudo de uma instituição infantil do interior paulistaRIAEERevista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 16, n. 1, p. 176-188, jan./mar. 2021. e-ISSN: 1982-5587DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v16i1.13586180criança em relação à sexualidade, não apenas estamos contribuindo para a promoção de uma melhor qualidade de vida, mas também protegemos a infância e os direitos dos pequenos, além de promover o respeito e a igualdade. Vale ressaltar que o material se destinaa crianças a partir dos cincoanos de idade, o que ilustra uma das discussões do estudo aqui proposto, cujo objetivo é alertar para a despreocupação em relação àorientação sexual das crianças menores. Ora, se a sexualidade é algo inerente ao ser humano, por que não há maiores preocupações com a orientação das crianças desde a mais tenra idade?Apresentação geral das colaboradorasAntonelaAntonela tem 41 anos, é casada e mãe de uma filha, diretora da instituição de educação infantil aqui analisada, e vem de uma família de 5 pessoas, sendo pai, mãe e três filhos, o que demonstra a relação existente entre a fração de classe média e as estratégias de reprodução de fecundidade, que difere das famílias da camada popular, que enxergam no grande número de filhos um futuro apreendido como sendo de sucesso. Seus pais trabalhavam e, segundo ela, nenhum dos dois questionava o trabalho um do outro, ambos tinham liberdade para decidir no que queriam trabalhar.DoloresDolores é auxiliar de escritório na secretaria da escola de Educação Infantil aqui analisada. Tem 26 anos, é casada e mãe de duas filhas. É oriunda originalmente de umafamília de 6 pessoas, pai, mãe e quatro irmãos, mas, segundo ela, considera mais algumas pessoas como sendo da família. Passou a infância em uma pequena cidade do interior de São Paulo, na zona urbana.Segundo a entrevistada, o marido não está satisfeito com a ocupação atual dela, pois, segundo suas palavras “Ele acha que eu não aonde eu deveria , eu gosto muito de comércio, de vendas e hoje em dia eu trabalhando de auxiliar de escritório(Dolores, 2016)”.MárciaMárcia tem 37 anos, é casada e mãe de três filhos, é professora (não graduada) da instituição de Educação Infantil aqui analisada, e vem de uma famíliade 12 pessoas, sendo que 9 são filhos de pai e mãe e 1 filho apenas do pai. A família morou durante 7 anos na zona
image/svg+xmlMaria Fernanda Celli de OLIVEIRA e Luci Regina MUZZETIRIAEERevista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 16, n. 1, p. 176-188, jan./mar. 2021. e-ISSN: 1982-5587DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v16i1.13586181rural, em uma cidade da Bahia. Segundo ela, não existe um trabalho específico de homem ou mulher. Relata ainda que o pai não gostava muito da profissão de sua mãe, meu pai não gostava muito [...]por causa de as crianças, porque tinha que ficar com os outros, aí por isso que minha mãe sai de ser isso[...](Márcia, 2016)”.Gênerosegundo Pierre BourdieuBourdieu (1999) define o gênero comoa “socialização do biológico e biologizaçãodo social(BOURDIEU, 1999, p.9), em outras palavras, o gênero é construído eestruturado no agente, no processo de socialização. É muito mais do que o simples sexo,englobando todas as relações de luta e de dominação que permeiam a posição social do sexoem uma determinada sociedade, em um determinado momento histórico, contemplando,assim, a ordem social das coisas: “[...] A ordem social funciona como uma imensa máquinasimbólica que tende a ratificar a dominação masculina sobre a qual se alicerça: é a divisãosocial do trabalho, distribuição bastante restrita das atividades atribuídas a cada um dosdois sexos [...]”. (BOURDIEU, 1999, p. 18).Para Bourdieu (1999), o gênero perpassa a questão biológica e trata-se de umaviolência simbólica quando nos referimos à dominação masculina. O sociólogo denunciaainda as dicotomias e oposições ligadas ao gênero, enfatizando que:Quando os dominados aplicam àquilo que os domina esquemas que sãoproduto da dominaçãoou, em outros termos, quando seus pensamentos esuas percepções estão estruturados de conformidade com as estruturasmesmas da relação da dominação que lhes é imposta, seus atos deconhecimento são, inevitavelmente, atos de reconhecimento, desubmissão (BOURDIEU, 1999, p. 22).As disposições perante o gênero enquadram-se como resultado da trajetória social e da herança cultural, principalmente em relação aos aspectos relacionados com a cultura familiar e escolar.Conforme Bourdieu (1999), a dominação estáintrinsecamente ligada à sociedade e se faz imperceptível aos olhos, beirando a normalidade, onde, “a força masculina se evidencia no fato de que ela dispensa justificação: a visão androcêntrica impõem-se como neutra e não tem necessidade de se enunciar em discursos que visem a legitimá-la(BOURDIEU, 1999, p. 18).Isso quer dizer que, apesar de acreditarmos que temos a liberdade para pensarmos,ainda aceitamos ser dominados pelos grupos dominantes. Dessa forma, o gênero éconstruído
image/svg+xmlA interferência da herançacultural na educação sexual de agentes escolares: um estudo de uma instituição infantil do interior paulistaRIAEERevista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 16, n. 1, p. 176-188, jan./mar. 2021. e-ISSN: 1982-5587DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v16i1.13586182e estruturado em um processo de socialização que irá englobar as relações dedominação presentes na sociedade.[...] sempre vi na dominação masculina, e no modo como é imposta evivenciada, o exemplo por excelência dessa submissão paradoxal,resultante daquilo que eu chamo de violência simbólica, violência suave,insensível, invisível a suas próprias vítimas, que se exerce essencialmentepelas vias puramente simbólicas da comunicação e do conhecimento, ou,mais precisamente, do desconhecimento, do reconhecimento ou, emúltima instância, do sentimento (BOURDIEU, 1999, p.7).Bourdieu destaca ainda que:Outro fator determinante da perpetuação das diferenças é a permanênciaque a economia dos bens simbólicos (do qual o casamento é uma peçacentral) deve à sua autonomia relativa, que permite à dominaçãomasculina nela perpetuar-se, acima das transformações dos modos deprodução econômica: isto, com o apoio permanente e explícito que afamília, principal guardiã do capital simbólico, recebe das Igrejas e doDireito (BOURDIEU, 1999, p. 115).Parareconhecer as relações existentes entre as divisões de gênero, objeto deestudo desta pesquisa, faz-se necessário compreender como elas se estabeleceram.Segundo Bourdieu (1999), esse trabalho de reprodução deu-se até pouco tempopor três principais instâncias: família, Igreja e escola.Nas palavras do autor: “É sem dúvida àfamília que cabe o papel principal nareprodução da dominação e da visão masculina, é na família que se impõe a experiênciaprecoce da divisão sexual do trabalho e da representação legítima dessa divisão [...](BOURDIEU, 1999, p. 103).E,por fim, Bourdieu discorre acerca do papel da escola na reprodução das desigualdades de gênero:[...] a Escola, mesmo quando já liberta da tutela da Igreja, continua atransmitir os pressupostos da representação patriarcal (baseada nahomologia entre a relação homem/mulher e a relação (adulto/criança) esobretudo, talvez, os que estão inscritos em suas próprias estruturashierárquicas, todas sexualmente conotadas [...] (BOURDIEU, 1999, p.104).A força da ordem masculina se evidencia no fato de que ela dispensa justificação: avisão androcêntrica impõe-se como neutra e não tem necessidade de se enunciar emdiscursos que visem a legitimá-la. (BOURDIEU, 1999, p. 18)As divisões constitutivas da ordem social e, mais precisamente, asrelações sociais de dominação e de exploração que estão instituídas entreos gêneros se inscrevem, assim, progressivamente em duas classes dehabitus diferentes, sob a forma de hexis corporais opostos e
image/svg+xmlMaria Fernanda Celli de OLIVEIRA e Luci Regina MUZZETIRIAEERevista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 16, n. 1, p. 176-188, jan./mar. 2021. e-ISSN: 1982-5587DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v16i1.13586183complementares e de princípios de visão e de divisão, que levam aclassificar todas as coisas do mundo e todas as práticas segundodistinções redutíveis à oposição entre o masculino e o feminino (BOURDIEU, 1999, p. 41)Segundo as concepções do teórico, é no corpo, ou seja, na héxis corporal (ORTIZ,1983), que as desigualdades entre os sexos se materializam e a ideia de dominaçãomasculina se faz natural. Com isso, Bourdieu (1999) cria uma teoria que propõe e tornapossíveis as mudanças relacionadas à quebra dessa dominação masculina. “O mundo socialconstrói o corpo como realidade sexuada e como depositário de princípios de visão e dedivisão sexualizantes” (BOURDIEU, 1999, p. 18).A dominação masculina, que constitui asmulheres como objetossimbólicos, cujo ser (esse) é um ser-percebido (percipiti) tem por efeitocoloca-las em permanente estado de insegurança corporal, ou melhor, dedependência simbólica: elas existem primeiro pelo, e para, o olhar dosoutros, ou seja, enquanto objetos receptivos, atraentes, disponíveis(BOURDIEU, 1999, p.82).Quando falamos de gênero dentro do âmbito escolar, podemos verificar nas falas das colaboradoras que existem contradições e equívocos relacionados à temática, ilustrando tal fato a partir do relato das participantes,que perpetuam os preconceitos:Olha, hoje em dia pra minha filha eu vejo de uma maneira diferente, porque, as coisas mudaram muito, mas quando eu era criança eu brincava de pipa, de pião, eu brincava de bolinha de gude, então, se você ver bem eu brincava com coisas que era de menino e mesmo assim minha opção foi...de gênero, é feminina né, eu me considero feminina, então, é...eu acho que hoje em dia eu vejo mais isso, porque se discutindo muito isso, então eu tenho preocupação pelas minhas filhas, mas não que eu descrimino se ela quiser brincar de bola, ela vai brincar de bola, mas sabendo que é um brinquedo que é do amiguinho, no caso, um menino(Dolores, 2016).Navisão de Antonela, por exemplo, a construção de gênero é algoque se dá socialmente;eladiscorre acerca dos brinquedos e das brincadeiras realizadas dentro da escola:Ah, eu acho que, por exemplo, a boneca é mais de menina sim, a criança àsvezes quer brincar de boneca mas não sabe que a boneca é de sexo feminino ou de sexo masculino e pega e fala “ah é um bebê, meu bebê; e a bola também, várias meninas gostam de brincar de bola e, e bola é mais pra menino, então, eu acho que assim, o gênero bola, aía criança menina não pode brincar de bola, não vejo porque não(Antonela, 2016).Quandofalamos de gênero no âmbito familiar, ilustramos a visão de divisão gênero inculcada na fala de Antonelae de Dolores,Ah, eu sempre falo assim, é... por exemplo, é...você é menina, é...tomando banho, vamos tomar banho, tomar banho com a mamãe, então sempre
image/svg+xmlA interferência da herançacultural na educação sexual de agentes escolares: um estudo de uma instituição infantil do interior paulistaRIAEERevista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 16, n. 1, p. 176-188, jan./mar. 2021. e-ISSN: 1982-5587DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v16i1.13586184assim, frisando que é menina. Porque ela sempre falados amiguinhos, de todos, fala o nome deles, então menina... friso que ela é menininha(Antonela, 2016).Eu acho que cada um nasce do jeito que é panascer, isso não muda. Se você tem que fazer xixide pé, você vai fazer xixide pé, como você vaifazer xixisentado. Eu acho que assim, eu sou contra [...](Dolores, 2016).De maneira geral, as participantes demonstram uma visão de dominação naturalizada em relação ao gênero, onde Bourdieu explica que “aforça particular da sociodicéia masculina lhe vem do fato de ela acumular e condensar duas operações: ela legitima uma relação de dominação inscrevendo-a em uma natureza biológica que é, por sua vez, ela própria uma construção social naturalizada(BOURDIEU, 1999, p. 33).Verificamos a naturalização desta dominação na fala de Márcia, quando indagada a respeito do que é ser um homem bem sucedido: Ah, um homem com uma boa profissão, que estuda, tipoadvogado (risos) assim...(Márcia,2016). Já uma mulher bem sucedida é “u