“NÃO SOMOS MAIS OS MESMOS”: UMA ANÁLISE DAS RELAÇÕES MEDIADAS PELA COLABORAÇÃO CRÍTICA À LUZ VIGOTSKIANA NO CONTEXTO DO ENSINO DE LIBRAS PARA SURDOS


“NO SOMOS MÁS LOS MISMOS”: UN ANÁLISIS DE LAS RELACIONES MEDIADAS POR LA COLABORACIÓN SEGUIENDO LOS PRINCIPIOS VIGOTSKIANOS EN UN CONTEXTO DE ENSEÑO DE LA LENGUA BRASILEÑA DE SEÑALES (LIBRAS) PARA SORDOS


“WE ARE NOT THE SAME ANYMORE”: AN ANALYSIS OF THE RELATIONS MEDIATED BY THE COLLABORATION FOLLOWING THE VIGOTSKIAN PRINCIPLES IN A TEACHING BRAZILIAN SIGN LANGUAGE (LIBRAS) CONTEXT FOR DEAF PEOPLE


Viviane Nunes SARMENTO1 Neiza de Lourdes Frederico FUMES2


RESUMO: Este estudo teve por objetivo analisar, mediatizados pela colaboração, o processo de construção de software (Lepê) e o ensino de Libras para surdos. Para isso, utilizamos os pressupostos da pesquisa colaborativa crítica, assim como as orientações trazidas por Vigotski para realizar a produção e análise dos dados. Foi participante deste processo um professor bilíngue (Português/Libras) atuante no Agreste Meridional de Pernambuco. Como resultados, construímos um software (Lepê) para o ensino de Libras para crianças surdas em contextos educativos, além de termos contribuído para o amadurecimento dos conceitos estudados pelos participantes relacionados a esse ensino. Também destacamos como resultado que o professor participante pôde construir uma consciência crítica, não apenas acerca da importância do trabalho colaborativo, mas também em relação às suas ações. Pudemos concluir que a colaboração crítica nos trouxe um ideal revolucionário a ser instaurado nas práticas diárias de ensino de Libras para surdos, visto que subsidiados em seus princípios e ações, houve transformações dos participantes na busca das formulações de unidades coletivas e históricas, rompendo com a individualização prevalente.


PALAVRAS-CHAVE: Pesquisa colaborativa crítica. Ensino de Libras. Psicologia sócio- histórica.


RESUMEN: Este estudio tuvo como objetivo analizar, mediado por la colaboración, el proceso de construcción de software (Lepê) con un enfoque en la enseñanza de Libras para sordos. Para esto, utilizamos los supuestos de la investigación colaborativa crítica, así como las pautas aportadas por Vigotski para llevar a cabo la producción y el análisis de los datos. Un maestro bilingüe (portugués / Libras) que trabaja en Agreste Meridional de Pernambuco


1 Universidade Federal do Agreste de Pernambuco (UFAPE), Garanhuns – PE – Brasil. Coordena grupos de pesquisa e extensão que possuem como foco o ensino de Libras. Doutorado em Educação (UFAL). ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1594-5192. E-mail: vivianesarmento2@gmail.com

2 Universidade Federal de Alagoas (UFAL), Maceió – AL – Brasil. Professora do Instituto de Educação Física e Esporte (IEFE). Doutorado em Ciência do Desporto e da Educação Física (U.PORTO) – Portugal. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1913-4784. E-mail: neiza.fumes@iefe.ufal.br




participaron en este proceso. Como resultado, creamos un software (Lepê) para enseñar Libras a niños sordos en contextos educativos, además de haber contribuido a la maduración de los conceptos estudiados por los participantes. Como resultado, también destacamos que el maestro participante fue capaz de crear una conciencia crítica, no solo sobre la importancia del trabajo colaborativo, sino también en relación con sus acciones. Pudimos concluir que la colaboración crítica nos trajo un ideal revolucionario para establecerse en las prácticas docentes diarias de Libras para sordos, ya que subsidiados en sus principios y acciones, hubo transformaciones de los participantes en la búsqueda de formulaciones de unidades colectivas e históricas que rompieran con la individualización prevalente.


PALABRAS CLAVE: Investigación colaborativa crítica. Enseñanza de la Lengua Brasileña de Señales (Libras). Psicología socio-histórica.


ABSTRACT: This study aimed to analyze, mediated by collaboration, the software construction process (Lepê) with a focus on teaching Libras for the deaf. For this, we use the assumptions of critical collaborative research, as well as the guidelines brought by Vigotski to carry out the production and analysis of the data. A bilingual teacher (Portuguese / Libras) from the Specialized Educational Service working in Agreste Meridional de Pernambuco participated in this process. As a result, we built software (Lepê) for teaching Libras to deaf children in educational contexts, in addition to having contributed to the maturation of the concepts studied by the participants. We also highlight as a result that the participating teacher was able to build critical awareness, not only about the importance of collaborative work, but also in relation to his actions. We were able to conclude that the critical collaboration brought us a revolutionary ideal to be established in the daily teaching practices of Libras for the deaf since subsidized in its principles and actions, there were transformations of the participants in the search for the formulations of collective and historical units breaking with the individualization prevalent.


KEYWORDS: Critical collaborative research. Teaching Brazilian Sign Language (Libras). Socio-historical phychology.


Introdução


Compreendemos ser imprescindível a organização do meio linguístico para o desenvolvimento e apreensão de generalizações. Ocorre que a maioria das crianças surdas, filhas de famílias ouvintes e não conhecedoras/usuárias da Libras, não possui em sua realidade acesso aos diálogos e às narrativas no seio familiar/social. Por conseguinte, só passam a ter contato com esse tipo de relação comunicacional ao alcançar a idade e/ou o ingresso escolar.

Para este grupo, é por meio da escola bilíngue que irá acontecer o seu primeiro contato com a Libras, possibilitado que os sujeitos surdos possam situar as mais diversas situações experimentadas/conhecidas antes do ingresso escolar às formas generalizantes que lhes são fornecidas pela língua.



Entretanto, há muitas discussões na comunidade surda, bem como acadêmica, sobre a falta de efetividade da escola bilíngue na perspectiva da educação inclusiva, colocando em xeque a inclusão do estudante surdo em sala de aula comum do ensino regular, principalmente, em função dos constantes desempenhos negativos apresentados pelos mesmos (SOUSA et al., 2016).

Em estudo sobre a inclusão escolar de pessoas surdas, Lima (2012) nos traz relatos sobre a forma como os professores que compõem a escola argumentam sobre a temática, chegando à conclusão da necessidade de cursos de formação e de mudanças na concepção sobre a surdez e a pessoa surda.

Esta falta de clarezas – linguísticas, educacionais, sociais – nos chama atenção para a recorrente inquietação sobre para quem estamos pensando esta educação. Nesse contexto, tendo em mente tais conflitos, compreendemos a necessidade de planejamento e desenvolvimento de uma perspectiva em que esta educação não seja realizada de uma maneira isolada, tendo, portanto, o envolvimento de todos os partícipes.

Tal consideração e necessidade nos trouxeram ao conhecimento das práticas colaborativas, as quais vêm ganhando cada vez mais espaço (BANDEIRA 2016; CAPELLINI, 2004; IBIAPINA, 2016; MAGALHÃES, 2009) no contexto da educação brasileira e, mais precisamente, da Educação Especial.

Isto posto, encontramos nesta possibilidade – de pesquisar colaborativamente – os diálogos mediatizadores que resultaram na construção de um software, o qual denominamos Lepê3, com vistas ao desenvolvimento de possibilidades críticas e transformadoras para o ensino de Libras na educação de surdos. Desse modo, nos propusemos a analisar, mediatizados pela colaboração, o processo de construção de software (Lepê), tendo como foco o ensino de Libras para surdos.


Metodologia


A pesquisa qualitativa que desenvolvemos foi ancorada na proposta da colaboração, seguindo as orientações de Ibiapina (2008), Magalhães (2009), Liberali, Magalhães, Lessa e Fidalgo (2009), Magalhães e Fidalgo (2010) e Ibiapina, Bandeira e Araújo (2016). Nesse sentido, conforme nos explica Magalhães (2009), na atividade de pesquisa colaborativa,


[...] ao relacionar-se com o outro por meio de significados compartilhados, os seres humanos estão selecionando, adequando, reduzindo, ampliando seus


3 Apresentaremos mais detalhamentos no desenvolvimento do estudo.




sentidos para que possam encontrar formas de agirem de forma colaborativa. Está aí a essência da colaboração: assumir riscos ao compreender o compartilhamento de significados como um exercício de conflito, de partilha, de apropriação, de recusa, de aceitação, de confrontação e de combinação dos vários sentidos expostos (MAGALHÃES, 2009, p. 02)


Nesse exercício de colaboração, tivemos um professor/instrutor da rede estadual de Educação de Garanhuns, ao qual iremos nos reportar pelo nome fictício de Akira, advindo da cultura japonesa e cujo significado é ‘acreditar no amanhã’.

Para a produção dos dados, utilizamos as sessões de reflexão, as quais foram registradas por meio de filmagens e tratavam de todo o processo de construção do software Lepê, voltado para o ensino de Libras para alunos surdos, como também a verificação e a aplicação do recurso por professores do Atendimento Educacional Especializado de escolas do Agreste pernambucano.

No que tange ao software (Lepê) analisado, vale destacar que foi realizado o seu registro de código fonte pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial - INPI, tendo como titular a Universidade Federal Rural de Pernambuco e a Universidade Federal de Alagoas como parceira/colaboradora externa, com direitos cedidos pelas pesquisadoras. A expedição do certificado de registro consistia em protocolo sob numeração: BR 51 2018 000608-6.

Ainda destacamos que, em relação ao Lepê, foi necessária a construção de um banco de dados com sinais em Libras, feito a partir das sessões de reflexão, ocorridas durante um ano. Com Akira, os encontros foram realizados quinzenalmente, sendo alguns momentos registramos por filmagens, e outros por meio de diário de campo.

Durante as sessões reflexivas, além de discutirmos acerca das demandas emergentes do processo, realizamos as filmagens do software e debatemos a programação digital (interface das telas, manuseio, opções de gifs, fotografias, etc.). Também escolhemos e gravamos o vocabulário e os contextos a serem inseridos no software.

Considerando essa produção de dados, neste este estudo escolhemos para análise sete sessões de reflexão registradas por filmagens e dez sessões anotadas em diários de campo.

Ressaltamos que o presente estudo também foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Universidade Federal de Alagoas, sob numeração de parecer: 2.636.956.


Análise e discussão dos dados



A proposição do software Lepê partiu da ideia de ampliação do contato dos alunos surdos com a Libras, visto que os encontros destes (do Agreste Meridional Pernambucano e do professor Akira) eram resumidos a poucos dias na semana. Desse modo, pensamos no desenvolvimento de um recurso que permitisse o uso de estratégias que ultrapassem o ensino de “listas de palavras”, nomeação e repetições de sinais, como indicam Lacerda, Santos e Martins (2016).

Inicialmente, apontamos para duas questões primordiais: a primeira foi a necessidade de discutir a construção do pensamento e da linguagem no contexto da pessoa com surdez, levando em consideração a realidade objetiva, marcada pela falta de fluência dos professores atuantes nas escolas e a distância entre essas escolas e a região pólo em que Akira as atendia; a segunda questão consistia na necessidade de se pensar em estratégias para alcançar os alunos em suas respectivas experiências, visto ser necessário conhecermos as demandas dos professores de Libras da região, o cotidiano dos alunos surdos, os gestos utilizados no cotidiano, assim por diante.

Esses elementos foram reconhecidos por nós como relevantes na construção do

software Lepê.

Os diálogos, provenientes de sete sessões reflexivas, demonstram como essas possibilidades eram consideradas na construção do pensamento e da linguagem no contexto da surdez durante a escolarização:


Viviane: Como você acha que deveríamos pensar nos contextos, baseados na experiência que você tem com os alunos da região? O que eu tenho visto, dentro da minha experiência, são muitas associações, mas poucos trabalhos com significados. Sempre imagem e sinal. Será que realmente eles compreendem o que sinalizam quando são feitas essas associações?

Akira: [...] Se eu for falar, por exemplo, sobre Frida [aluna do professor Akira]. Ela tem 7 anos, é... E que eu acompanhei ela durante 1 ano [...] Então, se você fizer o sinal de pato para ela, ela sabe o que é pato, mas tem outros sinais que ela faz, mas que ela não compreende, ela não sabe o que é [...] Ela vai agregando e sinaliza. É aí quando você pergunta; o que é (referindo-se ao significado do sinal)? Me explique ou desenhe pra mim, me mostre; ela são sabe como mostrar. [...] Eu sei que tem uma série de vocábulos que ela não consegue saber o que são [...] Acredito que os contextos devam explorar isso: a proximidade com as experiências desses alunos. Se for preciso, a gente traz comida, roupa, tudo de casa, mas que sejam coisas usuais.


Essa discussão nos convida a retomar Vigotski (2001), ao explicar o gesto de “apontar”. O gesto, em si, não é nada mais que uma tentativa sem sucesso de pegar alguma coisa, um movimento dirigido para um certo objeto, que desencadeia a atividade de aproximação. Assim, no desencadeamento, a criança tenta pegar alguma coisa, um




movimento dirigido para um certo objeto, gerando uma atividade de aproximação, na qual seus dedos fazem movimentos que lembram o pegar.

Até então, esse gesto é apenas um direcionamento de pegar alguma coisa ou tocar algo contido naquele espaço, entretanto, Vigotski (2001) alerta que, quando a mãe vem em ajuda da criança e nota que o seu movimento indica alguma coisa, a situação muda fundamentalmente. O apontar torna-se um gesto para os outros. A tentativa malsucedida da criança engendra uma relação, não com o objeto que ela procura, mas com a outra pessoa. Consequentemente, o significado primário daquele movimento à situação objetiva como um todo é que ela, de fato, começa a compreender esse movimento como o gesto de apontar.

A partir dessas reflexões, os parceiros colaborativos compreenderam que a sinalização da aluna Frida tinha por base uma situação objetiva que a circundava – e isto deveria ser levado em consideração – como ainda “o outro” e o que isto “resultará” nele – na proposição do software. Disso resultou o entendimento de que o Lepê não trabalharia com a associação de sinais e figuras e que seria dirigido para crianças, como era a maioria dos alunos. E, justamente por isso, tínhamos em mente a necessidade de referencialidade no que tange aos significados das palavras.

Assim, foi preciso discutir tais propriedades para que pudéssemos abastecer os conteúdos do Lepê e analisar a possibilidade de uso deste na realidade objetiva em que estávamos trabalhando. Sobre isto, nos baseamos em Vigotski (2001) quando argumenta que a referencialidade concreta da palavra se manifesta de modo bem mais nítido e intenso na criança que no adulto. Para a criança, a palavra é parte do objeto, uma de suas propriedades, e está mais estreita e indissoluvelmente ligada ao objeto, que a palavra do adulto. É isto que assegura um peso específico bem maior de referencialidade concreta na palavra da criança.

Ainda conforme o autor, é precisamente pelo fato de a palavra estar vinculada ao objeto na criança mais estreitamente, que ela representa uma espécie de parte do objeto. Por sua vez, o adulto pode mais facilmente separar-se do objeto, substituí-lo nos pensamentos e levar uma vida autônoma. Assim, a insuficiente diferenciação da referencialidade concreta e do significado da palavra redunda no fato de a palavra da criança estar, ao mesmo tempo, mais próxima da realidade e mais distante dela que a palavra do adulto.

Portanto, como parte dos desdobramentos das reflexões entre a pesquisadora e o professor Akira, ficou estipulado que o mais importante para a realização dos contextos seria a proximidade com a realidade da região, para que esta referencialidade com o objeto não fosse perdida. No entanto, tomamos medidas para que não se tornasse apenas uma associação com um objeto isolado, mas sim, com um grupo ou uma classe deles.



Ainda, com base em Vigotski (2001), as palavras não exercem desde o início o papel de signos. A princípio, em nada diferem de outra série de símbolos que atuam na experiência dos objetos aos quais estão relacionados. Por isso, durante o processo de construção do Lepê, tínhamos clareza de que apenas utilizar uma relação associativa entre palavras e objetos era insuficiente para o surgimento do significado, portanto, precisaríamos ir além.

Nesses termos, o significado da palavra ou o conceito não são equivalentes a uma relação associativa entre o complexo sonoro/forma gestual e a série de objetos. Esta relação é mais complexa, considerando que a palavra/sinal se refere a um grupo de fenômenos, os quais requerem uma generalização. Além disso, quando usamos uma palavra ou um sinal, evocamos um ato de pensamento externalizado por palavras ou sinais, que são um ato de pensamento verbal/gestual.

Considerando estes diferentes aspectos, a criação do software buscou um ensino de Libras de modo que não fosse apenas utilizada a referência visual e sua sinalização, assim como, evitamos o uso de avatares, visto que são limitados no que se refere aos significados que pretendíamos construir, especialmente na utilização do código fonte quando existem palavras homônimas.

Conscientes disso, no abastecimento do Lepê, buscamos considerar as possibilidades de aproximações com situações que fizessem parte do cotidiano do alunado. Desse modo, por exemplo, vocabulários relacionados aos alimentos buscaram aproximação com os alimentos cultivados na região e referentes à merenda escolar. Outro exemplo foram as escolhas para sinais relacionados a elementos mais subjetivos, como “saudade”. Para este, buscamos aproximá-lo a um contexto de despedida, visto que a maioria do alunado de Garanhuns não morava especificamente na cidade e, em muitos casos, precisava se afastar de parte da família para realização do atendimento com o professor Akira.

Dessa forma, o caminho para construção do software foi orientado pela premissa de que a linguagem e a língua são constituídas nas relações sociais entre sujeitos, em particular, na relação professor-aluno. Com isto, o Lepê seria um instrumento para ser utilizado no ensino da língua de sinais para alunos surdos.

Assim, para o Lepê criamos alguns espaços, dentre os quais destacamos a tela de apresentação, em que o professor, ao abrir para acesso, encontra uma área na qual é sinalizado em Libras, com legenda em português, o objetivo do software, conforme nos mostra a Figura

1. Além disso, encontra a opção de ajuda, caso necessário.


Figura 1 – Tela de apresentação do Lepê



Fonte: Acervo dos autores


Após o avanço desta tela, há o acesso para um novo espaço, o qual denominamos “tela de ensino”, contendo cinco opções de linguagem compreensiva, conforme apresentamos na Figura 2.


Figura 2 – Tela inicial do Lepê


Fonte: Acervo dos autores


Tais opções de linguagem compreensiva foram organizadas, de acordo com Felipe (2007), no que se refere à organização da ordem de vocabulário, bem como por Quadros e Cruz (2011), no que se refere às sugestões de formação de contextos e avaliação, especialmente no uso de verbos e pronomes. Apesar desta ordem, estipulamos que ficaria a critério do professor acessar de acordo com a necessidade e as vivências do aluno com o qual estaria trabalhando.

Cada acesso de linguagem compreensiva ficou registrada de 1 a 5 e contém vocabulários que apresentam a sinalização e a imagem correspondente a um ou mais contextos/possibilidade de vivências, conforme exposto nas Figuras 3 e 4.




Figura 3 – Tela de ensino do Lepê com o vocabulário de sentimentos (sinal do sentimento saudade)


Fonte: Acervo dos autores


Figura 4 – Tela com situação contextual do sentimento saudade


Fonte: Acervo dos autores


Além disso, o Lepê possui, em cada organização de linguagem compreensiva, uma opção para avaliação quantitativa. Pensamos nesse elemento com base na proposta de Vigotski (2001) sobre a importância da solução de problemas com fins ao alcance de conceitos.

Segundo Vigotski (2001), a questão central deste processo é o emprego funcional do signo ou da palavra como meio para se dominar o fluxo dos próprios processos psicológicos e resolver os problemas que se tem pela frente. Embora tenhamos conhecimento de que essas soluções de problemas sejam vinculadas às situações sociais, percebemos, durante a construção do Lepê, que poderíamos propor uma ‘simulação’ dessas ‘situações problema’.





Na opção de avaliação da ferramenta havia a exposição de uma situação a partir de um contexto/referência – ressaltando que os contextos utilizados estavam relacionados aos vocabulários que compuseram o Lepê. Na sequência, eram apresentadas múltiplas escolhas, por meio de sinais, para que o aluno escolhesse a opção correta. Nesta oportunidade, era registrado pelo software o percentual de erros e acertos no nome do aluno, conforme segue na Figura 7.


Figura 5 – Tela de avaliação


Fonte: Acervo dos autores


Pensando que os professores poderiam utilizar a ferramenta no Atendimento Educacional Especializado, Akira e a pesquisadora refletiram sobre outro modo de avaliação, desta vez, mais a cargo do acompanhamento do professor. Assim, foi criado um espaço de avaliação qualitativa.

Nesta função, o professor pode fazer os registros pertinentes ao desenvolvimento, às potencialidades e às necessidades do seu aluno, criando um arquivo para cada um e acessando-o quando considerar oportuno, já que o arquivo com os registros fica salvo em uma pasta gerada após preenchimento deste espaço, conforme ilustramos com a Figura 8.


Figura 8 – Tela de avaliação qualitativa



Fonte: Acervo dos autores


A descrição anterior mostra diferentes etapas e características do Lepê, as quais acreditamos ser uma importante ferramenta para a aprendizagem da Libras por alunos surdos, pois acreditamos que “a criança só terá acesso à significação dos objetos culturais, ou seja, só poderá tornar-se um ser cultural, por intermédio da mediação do outro” (PINO, 2005, p. 67). Ressaltamos também a importância do meio (social) e do trabalho do professor ao conduzir o ensino utilizando o instrumento, visto que “é nesse processo que a mediação do outro – detentor da significação – é essencial, mesmo se a criança é o agente desse processo” (PINO, 2005, p. 168).

As sessões reflexivas que levaram à construção do Lepê também favoreceram outras reflexões sobre o ensino de Libras para alunos surdos. Mediados pelas vivências colaborativas, Akira e a pesquisadora revisitaram suas práticas acerca do ensino da Libras, conforme destacamos:


Akira: Eu não consigo mais voltar a minha prática. Para mim, tem que aparecer o contexto, vivências. Para mim, se isso não aparecer não funciona o ensino [...] eu pude compreender que esse conceito que eu usava antes da associação é limitante. [...] Então, hoje eu sei que a associação não consegue internalizar em diversos aspectos a língua, então é limitante [...]. Porque na língua, casa não é apenas casa. A casa tem uma vivência para o sujeito, uma relação, um sentimento, uma particularidade. Quando eu penso em casa eu penso na minha casa inicialmente? O que ela significa? Então, eu tento trazer essa relação próxima a experiência do sujeito[...].

Viviane: É uma coisa muito importante também que mudou a minha vida. Eu achava há alguns anos atrás que era do específico para o todo [...].

Akira: Mas não é. É do todo para o específico!

Viviane: E aí, foi justamente na construção do pensamento e da linguagem de Vigotski que eu mudei isso [...]. E eu também só compreendi na prática essa questão do todo para o específico depois do nosso trabalho de colaboração [...].




Akira: Essas ações vieram a partir das reflexões que eu tive a partir da construção do pensamento, construção da língua, a construção do outro, dentro do que a gente teve quando fez a formação e o Lepê [...] E eu posso dizer que minha prática na escola que trabalho hoje mudou, por essas formações que construímos juntos, pelo processo.


Conforme asseguram Magalhães e Fidalgo (2010), e com as quais concordamos, a pesquisa colaborativa crítica está inserida em um paradigma crítico que tem como objetivo intervir e transformar contextos, de modo a propiciar que os participantes aprendam por meio da participação coletiva na condução da pesquisa.

No nosso caso, mostramos uma mudança de significações em relação ao ensino da Libras do professor Akira e da pesquisadora. Anteriormente, estes utilizavam um método de associações com imagens e sinais e, a partir dos estudos, da construção do Lepê e das sessões de reflexão, passaram a questionar suas próprias ações.

Esses dados nos levam à reflexão sobre dois pontos que merecem ser destacados: o primeiro, trata-se da relevante apreensão do professor Akira sobre a importância de se considerar as vivências e as experiências do sujeito no momento do ensino; o segundo, da mediatização de novas significações em relação ao que está ao seu redor, oportunizando a materialização do pensamento, o qual, no caso das pessoas com surdez, será por meio da Libras.

No decorrer desse processo, Akira e a pesquisadora criaram Zonas de Desenvolvimento Coletivas (NEWMAN; HOLZMAN, 2002) e, por meio destas, promoveram autoconhecimento, reconstruíram suas práticas e transformaram suas significações, conforme exposto nos trechos anteriores e no que segue:


Akira: Eu tinha uma restrição em trabalhar com Vigotski. Eu sempre achei Vigotski difícil, complexo e pesado [...]. As leituras em Vigotski que a gente fez sobre o pensamento e a linguagem, até mesmo as discussões sobre perijivanie, me deram uma outra perspectiva sobre Vigotski [...] O texto não muda, mas eu mudo a partir do texto [...] Quando você volta à leitura, você tem outra perspetiva do texto. Eu acho que os textos que a gente tem usado, tem sido muito bem discutidos e a compreensão tem sido muito boa. Eu estou sendo irradiado pela questão teórica. Ela é muito interessante [...] Eu melhorei com o processo, aprendi com o processo, cresci com o processo, mudei [...] E na linha prática, querendo ou não, o Lepê enche a gente de esperança. Lógico que a gente sabe que é indispensável que exista alguém que ensine a língua [...] mas o Lepê ele me traz esperança. Então, o Lepê é esperança! Esperança também de que o nosso projeto continue.


Essas reflexões nos trazem a convicção de que o processo colaborativo e a construção das Zonas de Desenvolvimento Proximal não significam uma ‘zona’ com a simples mediação




de alguém mais experiente, de um lugar ou instrumento, mas sim, uma abstração, “um espaço de vida” que é inseparável do “nós que a produzimos” (NEWMAN; HOLZMAN, 2002).

Mediante o exposto, compreendemos que a palavra ‘esperança’, mencionada por Akira, torna-se apenas uma generalização que carrega consigo as significações de todo o processo, visto que a zona de desenvolvimento criada a partir deste estudo consiste em uma unidade psicológica da história e, portanto, um lugar de atividade revolucionária.

Por isso, nos sustentando em Vigotski (1991), novamente, afirmamos que é aqui que o passado e o presente se fundem, e o presente é visto à luz da história. Portanto, para concluir – na verdade, para continuar – utilizamos nossas falas/palavras, carregadas de ‘libertação’:


Viviane: Particularmente, posso dizer que a gente sabe que a necessidade impositiva em torno de uma comunidade que [...] faz a educação padronizada, preconceituosa é mais uma consequência de toda essa ferida social, de reafirmação de normalidades vigentes [...] Isso não mudou tanto de quando eu comecei ou você começou a fazer essa pesquisa, mas meus sentidos, eu posso dizer que são outros, meus sentidos foram completamente transformados ao longo da pesquisa, ao longo do meu contato com você e do contato com o grupo também, em que a gente cria laços, afetos [...].

Akira: Não somos os mesmos. Isso é engraçado, não é? Se eu der um passo, já não estou no mesmo lugar, né? Alguém me disse isso uma vez e ficou na minha memória. Não somos os mesmos do início da pesquisa e, assim, nós tínhamos o mesmo olhar de esperança que ainda temos, só que agora o foco é outro, o motivo é outro, o olhar é outro. A mesma esperança de que a educação para os surdos funcione, que ela cresça, se desenvolva e que a gente consiga melhorar e alcançar os objetivos enlaçados, mas agora o processo diferente do nosso começo lá atrás, no início da pesquisa.


Considerações finais


Concluímos que, mediatizados pela colaboração, durate a construção do Lepê, houve o amadurecimento de conceitos importantes entre Akira e a pesquisadora sobre o ensino de Libras para surdos. Por isso, compreendemos que esse tipo de diálogo provocado pela construção do Lepê poderia ser uma importante alternativa para se pensar em soluções para romper com as condições objetivas que os surdos vivenciam em seu processo de escolarização.

Esse rompimento com as práticas arraigadas, além do encontro favorável das novas práticas com as ideias de Vigotski, causaram aos participantes uma consciência crítica, não apenas da importância do trabalho colaborativo, como também, da reconstrução de suas ações, provocando uma motivação externalizada na palavra ‘esperança’, lançada por Akira no último diálogo reflexivo, ao tentar definir o que sentia ao término das reflexões.




A constituição da práxis a partir da oportunidade de compreender o real por meio de uma dialeticidade histórica e social se deu não apenas por meio das relações instituídas pela pesquisadora e por Akira, mas sim e também, pela compreensão do lugar social e particular do outro.

Defendemos este caminho porque, mesmo longe de resolvermos todas as demandas dos professores que ensinam os surdos e da educação bilíngue de uma maneira geral, durante as ações e reflexões desenvolvidas com base na colaboração crítica foi possível criar zonas de desenvolvimento – coletivas – que caminharam rumo à transformação dos envolvidos, podendo ser este processo um aliado na busca efetiva de se construir esta educação.

Por isso, esperamos que esta perspectiva, pautada na colaboração crítica, possa ser vista como revolucionária do dia a dia para os que buscam uma educação de surdos – mais precisamente, os professores – ativa, social, histórica, com alteridade e libertadora.


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How to reference this article


SARMENTO, V. N.; FUMES, N. L. F. “We are not the same anymore”: an analysis of the relations mediated by the collaboration following the Vigotskian principles in a teaching Brazilian sign language (Libras) context for deaf people. Revista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 16, n. 3, p. 1939-1953, July/Sep. 2021. e-ISSN: 1982-

5587. DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v16i3.13643


Submitted: 01/05/2020 Required revisions: 04/01/2021 Approved: 10/02/2021 Published: 01/07/2021