image/svg+xmlConstrução do critério gênero no Programa Nacional do Livro Didático (2006-2020)RIAEERevista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 16, n. 1, p. 63-83, jan./mar. 2021. e-ISSN: 1982-5587DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v16i1.1375263CONSTRUÇÃO DO CRITÉRIO GÊNERO NO PROGRAMA NACIONAL DO LIVRO DIDÁTICO (2006-2020)CONSTRUCCIÓN DEL CRITERIO DE GÉNERO EN ELPROGRAMA NACIONAL DEL LIBRO DIDÁCTICO (2006-2020)CONSTRUCTION OF THE GENDER CRITERION IN THE NATIONAL TEXTBOOK PROGRAM (2006-2020)Lívia de Rezende CARDOSO1Rosa Virgínia Oliveira Soares de MELO2RESUMO: São problemáticas que envolvem currículo, gênero e livros didáticos que tomamos como interesse de investigação neste artigo. Analisamos aqui como a categoria gênero é construída nos critérios de inclusão ou exclusão em editais do Programa Nacional do Livro Didático. Algumas vezes, gênero é abarcado em critérios de cidadania ou Direitos Humanos. Outras, vem explicitamente associado à mulher e relacionado ao que é construído sobre feminino e masculino. Para empreender as análises, observamos os documentos legais reguladores do PNLD, além dos editais do período de 2006 a 2020, disponíveis para consulta eletrônica. Com as análises, percebemos o caráter geral e pouco característico dos itens avaliativos sobre questões de diversidade de gênero, que, além de estar em reduzidos itens, compartilham espaço com outras categorias analíticas, como raças e etnias. Tal avaliação, a depender do posicionamento político em relação à temática, acarreta, portanto, em silenciamentos ou aprisionamentos de gênero nas coleções de LD.PALAVRAS-CHAVE: Currículo. Gênero. Livro didático.RESUMEN: Son temas que involucran currículo, género y libros didácticosque tomamos como interés en la investigación en este artículo. Analizamos aquí cómo la categoría de género se basa en los criterios de inclusión o exclusión en los avisos públicos del Programa Nacional de Libros de Texto. A veces, el género se incluye en los criterios de ciudadanía o derechos humanos. Otros están explícitamente asociados con las mujeres y relacionados con lo que se construye sobre lo femenino y lo masculino. Para llevar a cabo los análisis, observamos los documentos legales reglamentarios de PNLD, además de los avisos públicos del período 2006 a 2020, disponibles para consulta electrónica. Con los análisis, nos dimos cuenta del carácter general y poco característico de los ítems evaluativos sobre temas de diversidad de género, que, además de estar en ítems reducidos, comparten espacio con otras categorías analíticas, tales como razas y etnias. Tal evaluación, dependiendo de la posición política en relación con el tema, conduce a silencios o encarcelamientos de género en las colecciones de LD.1Universidade Federal de Sergipe (UFS), São Cristóvão SE Brasil.Professora no Programa de Pós Graduação emEducação.Doutorado em Educação (UFMG). ORCID:https://orcid.org/0000-0003-4091-9110.E-mail: livinha.bio@gmail.com2Universidade Federal de Sergipe (UFS), São Cristóvão SE Brasil.Mestranda no Programa de Pós-graduação em Educação. ORCID:https://orcid.org/0000-0002-8165-1483. E-mail: rosavirginia.aju@gmail.com
image/svg+xmlLívia de Rezende CARDOSO e Rosa Virgínia Oliveira Soares de MELORIAEERevista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 16, n. 1, p. 63-83, jan./mar. 2021. e-ISSN: 1982-5587DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v16i1.1375264PALABRAS-CLAVE: Currículo. Género. Libro didáctico.ABSTRACT: These are issues that involve curriculum, gender and textbooks that we take as an interest in research in this article. We analyze here how the gender category is built on the inclusion or exclusion criteria in notices of the National Textbook Program. Sometimes, gender is included in citizenship or human rights criteria. Others are explicitly associated with women and related to what is built on feminine and masculine. To undertake the analyzes, we observe the PNLD regulatory legal documents, in addition to the public notices from the period 2006 to 2020, available for electronic consultation. With the analyzes, we noticed the general and uncharacteristic nature of the evaluative items on issues of gender diversity, which, in addition to being in reduced items, share space with other analytical categories, such as races and ethnicities. Such an assessment, depending on the political position in relation to the theme, therefore leads to silencing or imprisonment of gender in the LD collections. KEYWORDS: Curriculum. Gender. Textbook.Situando a questãoLivros didáticos (LD) e paradidáticos vêm sendo tomados como objeto de várias investigações sobre representações de gêneros, de grupos étnicos e classes sociais. Juntamente com os currículos de escolas, esses materiais pedagógicos e LD contemplam conteúdos que, sob tormentas da ‘ideologia de gênero’, vêm sendo contestados “para impedir que a diferença se prolifere e para fazer com que gênero e sexualidade sejam considerados temas não escolares” (PARAÍSO, 2018, p. 23). Isso porque alguns modos de regulação tentam definir o “campo do ‘costumeiro, do aceito, do normalizado e do esperado’ e nesse processo definem capacidades expressivas particulares como marginais, falsas ou perversas” (SIMON, 2008, p. 74).Quando os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) colocaram “a pluralidade cultural como tema transversal, criaram um território para a contenção dos temas postos na educação” (RODRIGUES; ABRAMOWICZ, 2013, p. 22). Assim, em 2014, o termo gênero foi suprimido do Plano Nacional de Educação (PNE) em nível de Congresso Nacional e fortemente combatido em secretarias municipais e estaduais nos anos seguintes. Em 2017, a regra do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) que previa nota zero à redação que ofendesse princípios dos Direitos Humanos foi entendida pelo desembargador federal como violação da liberdade de manifestação do pensamento, ao avaliar pedido da associação Escola Sem Partido (EsP). Na decisão, mantida pela Ministra do Supremo, defendeu-se que não
image/svg+xmlConstrução do critério gênero no Programa Nacional do Livro Didático (2006-2020)RIAEERevista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 16, n. 1, p. 63-83, jan./mar. 2021. e-ISSN: 1982-5587DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v16i1.1375265existe uma base epistemológica, impondo-se o respeito ao ‘politicamente correto’, nada mais do que um ‘simulacro ideológico’ dos direitos humanos propriamente ditos3. Em janeiro de 2019, o então Ministro da Educação tentou modificar critérios do vigente Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), excluindo-se a obrigação de as obras apresentarem diversidade étnica, combate à violência contra mulher e promoção positiva da imagem da mulher4. Nota-se, portanto, como esses textos oficiais se constituem como políticas regulatórias que predizem “padrões, condições de trabalho e atuação, regras individuais e para o grupo” (POSSA; BRAGAMONTE, 2018, p. 1058).São problemáticas que envolvem currículo, gênero e LD que tomamos como interesses de investigação neste artigo. Mais especificamente, buscamos analisar como a categoria gênero é construída nos critérios de inclusão ou exclusão em editais do PNLD, compreendendo o período de 2006 a 2020. Por vezes, gênero é abarcado em critérios de cidadaniae de Direitos Humanos. Em outras, vem explicitamente associado à mulher e às suas relações com o que é construído sobre feminino e masculino, mantendo a hegemônica maneira de classificação estruturada em torno de oposições binárias. Para Silva (2008, p. 76), “em uma oposição binária, um dos termos é sempre privilegiado, recebendo um valor positivo, enquanto o outro recebe uma carga negativa”. Para empreender essas análises, observamos os documentos legais que regulamentam o PNLD, bem como os editais disponíveis para consulta eletrônica. Mesmo tratando-se de uma política curricular que estabelece a necessidade de discussões acerca da diversidade cultural nos LD, vale destacar que “as políticas curriculares são, por sua natureza, discursos normativos com a finalidade de gerir populações” (MACEDO; RANNIERY, 2018, p. 743). Nesse sentido, questionamos o público endereçado por essa política curricular como “algo que não é nem pode ser fixo e muito menos da ordem da semelhança, do espelhamento ou, ainda, da mesmidade” (p. 748). Além disso, as políticas públicas educacionais podem se constituir como “uma trama complexa, na qual a diferença, sem a qual não há educação, é constrangida” (p. 743). Currículo é aqui entendido “como um artefato cultural que ensina, educa e produz sujeitos, que está em muitos espaços desdobrando-se em diferentes pedagogias” (PARAÍSO, 2010, p. 11). Com tal finalidade, instâncias culturais, assim como os LD, “transmitem uma variedade de formas de conhecimento que embora não sejam reconhecidas como tais são 3Disponívelem:https://www.conjur.com.br/2017-out-26/liminar-impede-zerar-redacao-enem-ofenda-direitos-humanos.Acesso em:jul. 2019.4Disponívelem:https://novaescola.org.br/conteudo/14998/vai-nao-vai-entenda-a-confusao-no-edital-do-pnld-2020-que-permitia-erros-nos-livros.Acesso em:jul. 2019.
image/svg+xmlLívia de Rezende CARDOSO e Rosa Virgínia Oliveira Soares de MELORIAEERevista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 16, n. 1, p. 63-83, jan./mar. 2021. e-ISSN: 1982-5587DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v16i1.1375266vitais na formação de identidade e de subjetividade” (SILVA, 2003, p. 140). De modo estratégico, “os grupos dominantes sempre falaram sobre os demais grupos e construíram representações que tiveram e têm efeitos de poder e de verdade” (PARAÍSO, 2004, p. 60). Dessa forma, “as políticas de currículo, as condições de ensino e as práticas pedagógicas são orientadas pela ‘política’ convencional dos governos” (SIMON, 2008, p. 67). Também chamadas por este autor de Tecnologias culturais, esse conjunto de práticas organizacionais, curriculares e pedagógicas “contribuem para definir as formas pelas quais o significado é produzido, pelas quais as identidades são moldadas e os valores contestados ou preservados” (p. 68). Isso significa distanciar, diferenciar, separar, posicionar e classificar grupos.A grade de ideias referente à aprendizagem, ao ensino e ao currículo funciona “para separar e classificar os indivíduos, criando diferenciações cada vez mais apuradas do comportamento rotineiro” (POPKEWITZ, 2001, p. 29), implicando um contexto no qual “se ensina e regula o corpo, produzindo subjetividades e arquitetando formas e possibilidades de viver em sociedade” (MOREIRA; SILVA JUNIOR, 2016, p. 48). Nesse sentido, “deter o privilégio de classificar significa também deter o privilégio de atribuir diferentes valores aos grupos assim classificados” (SILVA, 2008, p. 82). O processo de classificação é central na vida social e as classificações são sempre feitas a partir do ponto de vista da identidade. Para Silva (2008, p. 73), “identidade é simplesmente aquilo que se é”. Em oposição a ela, “a diferença é aquilo que o outro é” (IDEM) e ambas são “uma relação social. Isso significa que sua definição -discursiva e linguística -está sujeita a vetores de força, a relações de poder” (p. 75). A identidade e a diferença são tomadas como “declarações sobre quem pertence e sobre quem não pertence, sobre quem está incluído e quem está excluído” (IDEM). “Selecionar é questão de poder” (p.168) e, afinal, “o poder estáinscrito no currículo” (IDEM).Partido da assertiva que o discurso não é apenas uma mera denominação de coisas através das “letras, palavras e frases, mas uma série de acontecimentos em que estão vinculadas relações de poder, articuladas a uma ordenação do saber, que legitimam certos modos de dizer as coisas” (POSSA; BRAGAMONTE, 2018, p. 1052), analisamos todos os documentos selecionados, considerando a orientação em relação ao modo como aí está inserida a categoria gênero. Observamos que, quase em sua totalidade, as orientações são gerais, visam respeitar os direitos humanos e as diversidades sociais, culturais e religiosas da sociedade brasileira, o pluralismo de ideias, preparar os indivíduos para o exercício da cidadania e para o convívio social, e garantir as oportunidades e a igualdade de condições para o acesso e a permanência dos/as alunos/as na escola.
image/svg+xmlConstrução do critério gênero no Programa Nacional do Livro Didático (2006-2020)RIAEERevista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 16, n. 1, p. 63-83, jan./mar. 2021. e-ISSN: 1982-5587DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v16i1.1375267As abordagens referentes à categoria gênero, “na maioria das vezes, estão centralizadas em discursos vigilantes e moralizantes, e, além disso, reforçam modelos de como deve ser o comportamento considerado adequado” (GIACHINI; LEÃO, 2016, p. 1411) para as subjetividades Consideramos, porém, que tal categoria tem ganhado amplitude em investigações e não pode ser operada apenas como um termo ou dimensão.Gênero é uma norma, que estabelece “os significados culturais assumidos pelo corpo sexuado” (BUTLER, 2010, p. 24); é a “condição social pela qual somos identificados como homem ou como mulher” (LOURO, 1997, p. 80); é a “capacidade de o sujeito assumir determinado lugar social, de agir socialmente, de maneira voluntária, de fazer escolhas e decidir sobre si” (DOS ANJOS; CARDOSO, 2014, p. 71). O gênero não nega a biologia, mas enfatiza a “construção social e histórica produzida sobre as características biológicas” (p.22). Ao não se falar a respeito de tais questões, talvez se almeje que os indivíduos tomem conhecimento e possam se interessar por elas. Desse modo, “o silenciamento -a ausência da fala -aparece como uma espécie de garantia da ‘norma’” (p. 68).A relação entre o Governo Federal, por meio do Ministério da Educação, e o gerenciamento de LD que chegam às escolas públicas remete ao ano de 1938, quando se instituiu a Comissão Nacional do LD. A partir do Decreto-Lei n.º 1.006, foram estabelecidas condições de autorização, produção, importação, utilização e correções nos LD. Em 1945, tal comissão assumiu o controle sobre a adoção de LD em todos os estabelecimentos de ensino no país. Em 1972, o Instituto Nacional do Livro admitiu o processo de coediçõesde LD em conjunto com as editoras. E em 1983, foi criada a Fundação de Assistência ao Estudante, incorporando-se o Programa do LD que, em 1985, teve o seu nome ampliado para PNLD. A essa altura, o governo se torna financiador dos LD, extinguindo-se o processo de coedição.Esse programa se fundamenta na distribuição gratuita de LD, obras pedagógicas e literárias aos alunos dos Ensinos Fundamental e Médio das escolas públicas, instituições confessionais, comunitárias ou filantrópicas sem fins lucrativos e conveniadas com o poder público, além de oferecer outros materiais de apoio à política educativa. É gerido pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), e se respalda na livre participação de editoras privadas e na livre escolha por parte dos professores/as. A legislação que rege o PNLD é Portaria do MEC 7/2007, Resolução 51/2009, Resolução 02/2011, Resolução 40/2011, Resolução 42/2012, Decreto 9099/2017 e Resolução 15/2018.Os editais do PNLD são dispositivos utilizados pelo Estado para estabelecer as diretrizes para a escolha dos LD distribuídos às escolas públicas. Cada edital versa sobre o modo como acontecem as etapas do programa, desde as normas de inscrição, condutas de
image/svg+xmlLívia de Rezende CARDOSO e Rosa Virgínia Oliveira Soares de MELORIAEERevista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 16, n. 1, p. 63-83, jan./mar. 2021. e-ISSN: 1982-5587DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v16i1.1375268participação, documentação necessária, etapas do processo de avaliação e seleção das coleções, processos de habilitação, aquisição, produção e entrega dos materiais, a disposições gerais e anexos. Os anexos trazem modelos de declaração, da estrutura editorial e outras especificações técnicas para a produção, além de princípios e critérios gerais e específicos (nas áreas de Ciências, Geografia, História Língua Portuguesa, inclusive Alfabetização, e Matemática) para avaliação dos livros didáticos. Há editais destinados, também, a escolhas de dicionários e de obras literárias. Encontram-se disponíveis eletronicamente os que compreendem às edições de 2006 a 2020, com exceção da versão 2009, que não está disponível no endereço eletrônico do MEC.Os editais do PNLD analisados trataram respectivamente do processo de seleção e avaliação de obras destinadas à escolha de: i) 2006 -dicionários de Língua Portuguesa para os anos iniciais do ensino fundamental; ii) 2007 -coleções para as séries iniciais do ensino fundamental; iii) 2008 -coleções para os anos finais do ensino fundamental; iv) 2009 -Edital não disponível no endereço eletrônico do MEC; v) 2010 -coleções e obras complementares para os anos iniciais do ensino fundamental; vi) 2011 coleções de língua espanhola para professores do ensino médio e para a educação de jovens e adultos; vii) 2012 -coleções para o ensino médio e dicionários brasileiros de língua portuguesa; viii) 2013 -coleções para alunos do campo, para os anos iniciais do ensino fundamental e obras complementares para os anos iniciais do ensino fundamental (1º, 2º e 3º anos); ix) 2014 -coleções para a Educação de Jovens e Adultos (EJA), coleções para os anos finais do ensino fundamental e obras de literatura para alunos do ensino fundamental das escolas públicas, no âmbito do PNLD de Alfabetização na Idade Certa;x) 2015 -coleções para o ensino médio;xi) 2016 -coleções para alunos do campo e para os anos iniciais do ensino fundamental; xii) 2017 -coleções para os anos finais do ensino fundamental; xiii) 2018 -coleções para o ensino médio; xiv) 2019 coleçõespara os anos iniciais do ensino fundamental; xv) 2020 coleções e obras literárias para os anos finais do ensino fundamental.Nas próximas seções, analisaremos, inicialmente, a construção dos critérios de avaliação dessa política curricular até os editais de 2016, aos quais se observa certo aprimoramento das questões de diversidade e gênero. Na seção seguinte, identificaremos efeitos da BNCC e da onda conservadora que tenta influenciar as políticas educacionais nos regulamentos do PNLD, acarretando em umasupressão de vários textos antes presentes nos editais. Na quarta seção, passaremos a uma análise por disciplinas específicas, explicitando quais áreas têm maiores avanços e seus reflexos nas obras didáticas, segundo a literatura
image/svg+xmlConstrução do critério gênero no Programa Nacional do Livro Didático (2006-2020)RIAEERevista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 16, n. 1, p. 63-83, jan./mar. 2021. e-ISSN: 1982-5587DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v16i1.1375269especializada em livros didáticos. Por fim, teceremos algumas considerações gerais sobre a política curricular em questão.A construção de critérios até 2016Os Direitos Humanos são aqueles inerentes a todos os seres humanos, independe de raça, sexo, nacionalidade, etnia, idioma, religião ou qualquer outra condição. Neles estão incluídos o direito à vida e à liberdade, à liberdade de opinião e de expressão, o direito ao trabalho e à educação, entre outros. Todos merecem estes direitos, sem discriminação. ODireito Internacional dos Direitos Humanosestabelece as obrigações dos governos a fim de promover e proteger os direitos humanos e as liberdades de grupos ou indivíduos (ONU, 1948). AEducaçãoem Direitos Humanosé essencialmente a formação de uma cultura de respeito à dignidade humana através da promoção e da vivência dos valores da liberdade, da justiça, da igualdade, da solidariedade, da cooperação, da tolerância e da paz. Se atentarmos à teorização cultural contemporânea, há uma tendência a abordar o multiculturalismo, ou pluralismo cultural, em educação simplesmente como uma questão de tolerância e respeito para com a diversidade cultural. Segundo Silva (2008, p. 79), “por mais edificantes e desejáveis que possam parecer, esses nobres sentimentos impedem que vejamos a identidade e a diferença como processos de produção social, como processos que envolvem relações de poder”.De acordo com Rodrigues e Abramowicz (2013, p. 16), nos últimos vinte anos, a diversidadee outros temas a ela relacionados estão sendo abordados “de forma central no debate internacional e nacional, nas discussões sobre o desenvolvimento e na formulação de políticas públicas, especialmente na área da educação”. Assim, nas documentações selecionadas,observou-se, por exemplo, que em relação à diversidade, a portaria normativa do MEC nº 7, de 05 de abril de 2007, que dispõe sobre as normas de conduta no âmbito da execução dos Programas do Livro, encontra-se a orientação que se considerem para a escolha dos livros didáticos as diversidades sociais e culturais características da sociedade brasileira, bem como do pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas.As Resoluções/CD/FNDE nº 51, de 16 de setembro de 2009 que Dispõe sobre o PNLD para Educação de Jovens e Adultos (PNLD EJA) e a de nº 42, de 28 de agosto de 2012 que Dispõesobreo PNLD paraaeducação básica , repetem a mesma orientação nas considerações iniciais, solicitando que tais diversidades sejam levadas em conta, já que a
image/svg+xmlLívia de Rezende CARDOSO e Rosa Virgínia Oliveira Soares de MELORIAEERevista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 16, n. 1, p. 63-83, jan./mar. 2021. e-ISSN: 1982-5587DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v16i1.1375270educação é direito de todos e dever do Estado,visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadaniaesua qualificação para o trabalho.O decreto nº 9099, de 18 de julho de 2017, que versa sobre o PNLD, apresenta sobre o respeito às diversidades em seu artigo 3º, respeito às diversidades sociais, culturais e religiosas e respeito à liberdade e o apreço a tolerância. A Resolução/CD/FNDE nº 15, de 26 de julho de 2018, que dispõe sobre as normas de conduta no âmbito da execução do PNLD, repete o considerando já visto nas Resoluções/CD/FNDE nº 51 e nº 42, ao dizer que se deve considerar as diversidades sociais e culturais que caracterizam a sociedade brasileira, bem como o pluralismo de ideias e as concepções pedagógicas no processo de escolha.Ao analisar os editais, observou-se que há uma grande preocupação com o caráter social do LD ao contribuir para a formação da cidadania, para o respeito mútuo entre as pessoas, a ética e o reconhecimento da diversidade, favorecendo o diálogo e o apreço à tolerância. Segundo Rodrigues e Abramowicz (2013, p. 16), essa seria uma possível estratégia pedagógica “liberal” que “consistiria em estimular e cultivar os bons sentimentos e a boa vontade para com a chamada "diversidade" cultural”. Alguns editais analisados trazem orientações básicas como a não veiculação de preconceitos de quaisquer condições econômico-social, étnico-racial, de gênero no item destinado aos critérios de avaliação comuns a todas as áreas.Sobre essa necessidade de uma educação para a cidadania, Bampi (2000, p. 1) afirma que “quando cidadania é apresentada como uma solução para a emancipação, transformação e libertação dos indivíduos, sua construtibilidade é suprimida”. Além disso, são postas em “funcionamento técnicas sutis de governamentalidade”, através das quais se moldam e normalizam a “conduta, as aspirações as decisões dos indivíduos, com o propósito de alcançar objetivos considerados desejáveis” (p. 10).Foucault (2008, p. 45) define a governamentalidade como um “conjunto formado pelas instituições, procedimentos, análises, reflexões, os cálculos e táticas” comuns a “todas as formas modernas de pensamento e ação políticos” (MILLER;ROSE, 2012, p. 40), tendo “por alvo principal a população, por principal forma de saber a economia política e por instrumento técnico essencial os dispositivos de segurança” (FOUCAULT, 2008, p. 143). De acordo com Bampi, governar as pessoas não é força-las a fazer o que deseja o governante; é uma espécie de manipulação tênue no modo pelo qual os indivíduos conhecem a si mesmos e se conduzem, ou seja, é a “sutil integração de tecnologias de coerção e tecnologias do eu” (FOUCAULT, 1993).
image/svg+xmlConstrução do critério gênero no Programa Nacional do Livro Didático (2006-2020)RIAEERevista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 16, n. 1, p. 63-83, jan./mar. 2021. e-ISSN: 1982-5587DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v16i1.1375271Nos editais dedicados à escolha dos dicionários, seja de Língua Portuguesa ou de Língua Estrangeira, as referências feitas ao respeito às diversidades são encontradas como critério de exclusão, àqueles que apresentarem palavras ou imagens, preconceitos em relação à condição econômico-social, cor, etnia, gênero, orientação sexual, religião, linguagem ou qualquer outra forma de atitude discriminatória. Tal edital cita, ainda, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB nº 9394/1996), que preconiza como princípios do ensino a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber, o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, o respeito à liberdade e apreço à tolerância. Isso quer dizer que, pedagogicamente, os indivíduos devem ter contato com a diversidade de expressões e grupos culturais, aceitando a diversidade como natural, numa “visão superficial e distante das diferentes culturas”. Nela, “o outro aparece sob a rubrica do curioso e do exótico”, sem que sejam questionadas as relações de poder, ou como surgiram os processos de diferenciação, implicando, assim, na produção de novas dicotomias, a exemplo da “do dominante tolerante e do dominado tolerado ou a da identidade hegemônica, mas benevolente e da identidade subalterna, mas ‘respeitada’” (RODRIGUES; ABRAMOWICZ, 2013, p. 16).Todavia, grande parte dos editais apresenta, em seus princípios gerais, uma vez que pouquíssimas vezes aparecem como critério de qualificação, as recomendações de promover positivamente a imagem da mulher, considerando sua participação em diferentes profissões e espaços de poder; que se abordasse a temática de gênero, da não violência contra a mulher, visando à construção de uma sociedade não sexista, justa e igualitária. Ao tratar de modo tão genérico as diversidades fazendo-se menção apenas ao termo “mulher” , o início do PNLD pautou-se em uma visão de gênero como sinônimo de sexo biológico. A linguagem faz esse papel de instituir distinções e desigualdades, pois ela é “seguramente, o campo mais eficaz e persistente, tanto porque ela atravessa e constitui a maioria de nossas práticas, como porque ela nos parece, quase sempre, muito ‘natural’” (LOURO, 1997, p. 65). Desse modo, os textos acabam reproduzindo esse ocultamento feminino através dos atributos, qualidades comportamentos e analogias, no uso do diminutivo, por exemplo.A oposição binária masculino e feminino, determinada biologicamente, materializa-se no termo utilizado apenas como substituta das palavras homens e mulheres, adotando o gênero como uma substituição mecânica do sexo. As relações de gênero, segundo Butler (2010,p. 24), são“significados culturais assumidos pelos corpos sexuados”, ou seja, é uma condição sócio-histórico-cultural
image/svg+xmlLívia de Rezende CARDOSO e Rosa Virgínia Oliveira Soares de MELORIAEERevista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 16, n. 1, p. 63-83, jan./mar. 2021. e-ISSN: 1982-5587DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v16i1.1375272que vai além da condição estabelecida biologicamente através do sexo masculino ou feminino.Essa orientação sofreu algumas modificações com o tempo. Em 2007, 2008 e 2010, o texto era o mesmo. Já nos editais do EJA de 2011, nos editais do Campo e de 2013, nos do EJA e de 2014 e no edital do Campo 2016, ampliou-se tal texto, de modo que não só se abordasse a temática de gênero, nem só se promovesse positivamente a imagem da mulher, mas que se reconhecesse e que se tratasse de modo adequado a diversidade de gênero, considerando a participação de mulheres e homens em diferentes trabalhos, profissões e espaços de poder, discutir as diferentes possibilidades de expressão de feminilidades e masculinidades, além de desmistificar preconceitos e estereótipos sexuais e de gênero, visando à construção de uma sociedade não-sexista, não-homofóbica. Assim, vemos que, a partir de 2011, a concepção de gênero é um pouco ampliada nos editais do PNLD. Vemos uma mudança no reconhecimento do gênero apenas como sexo biológico para se pensar em diversidade de gêneros e, de modo implicado, de sexualidades, uma vez que a heterossexualidade dividiu espaço com outras narrativas. Outro ponto acrescentado é que se fala em promover discussões sobre preconceitos, discriminação e violências correlatas às minorias sociais ligadas às relações de gênero, às minorias sexuais, étnico-raciais, geracionais, entre localidades urbanas e rurais e às relações socioambientais, sendo que algumas dessas não são parte de nossas discussões neste artigo.A BNCC e os critérios a partir de 2016A partir de 2016 e até o edital de 2019, o texto volta um pouco ao mesmo modelo inicial do ano de 2007, quando a sugestão é de que apenas se promova positivamente a figura da mulher, acrescentando-se somente que se reforce sua visibilidade e protagonismo social, e, por fim, que se aborde a temática de gênero, acrescentando-se, no entanto, que tal abordagem vise à construção de uma sociedade não-sexista, justa e igualitária, inclusive no que diz respeito ao combate à homo e transfobia. Mais uma vez, o abstracionismo “segue tentando controlar os fantasmas, produzindo políticas inclusivas que visam a acomodar e a incorporar