image/svg+xmlNarrativas de apenados sobreo início da vida escolarRIAEERevista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 16, n. 1, p. 258-275, jan./mar. 2021. e-ISSN: 1982-5587DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v16i1.14064258NARRATIVAS DE APENADOS SOBRE O INÍCIO DA VIDA ESCOLARNARRATIVAS DE PRISIONEROS SOBRE EL INICIO DE LA VIDA ESCOLARNARRATIVES OF PRISIONERS ABOUT THE START OF SCHOOL LIFELuciane Maria Ribeiro da Cruz SANTOS1Carlos Roberto Jamil CURY2RESUMO: O presente artigo demonstra a dificuldade de concretização das políticas públicas educacionais brasileiras após a aprovação da Constituição de 1988 e da Lei de Diretrizes e Bases de 1996. A narrativa de sete homens sentenciados por processos criminais, com idades inferiores a 29 anos, sobre o início de suas vidas escolares ilustra aspectos concretos da ausência do poder público no atendimento das famílias de classes sociais menos favorecidas economicamente. Os dados foram recolhidos de uma tese de doutorado realizada pela primeira autora no Programa de Pós-graduação em Educação da PUC-MG. O conjunto de entrevistas semiestruturadas foi analisado buscando os indicadores da concretização dos objetivos da República e da Educação Nacional. Observou-se a exclusão educacional articulada ao conjunto de mecanismos responsáveis pela promoção da justiça social e a fragilidade da conquista dos direitos do indivíduo por um processo de inclusão excludente dos direitos sociais.PALAVRAS-CHAVE: Direito à educação. Escolarizaçãoinicial. Apenados brasileiros. Justiça social. RESUMEN:Este artículo desarrollaun enfoque descriptivo de la dificultad de implementar las políticas públicas para la educación en Brasil, desde la aprobación de la Constituicion de 1988 e de la Ley de Diretrizes y Bases de la Educación Nacional. La narrativa de siete hombres condenados por procesos penales, menores de 29 años, sobre el comienzo de su vida escolar ilustra aspectos concretos de la ausencia de poder público en el cuidado de las familias de las clases sociales socialmente menos favorecidas. Los datos fueron recolectados de una tesis doctoral realizada por el primer autor en el Programa de Postgrado en Educación de la PUC-MG. Se analizó el conjunto de entrevistas semiestructuradas buscando indicadores de prácticas efectivas del logro de los objetivos de la República y la Educación Nacional. Se observó la exclusión educativa articulada al conjunto de mecanismos responsables de la promoción de la justicia social y la fragilidad de la conquista delos derechos del individuo a través de un proceso de exclusión de los derechos sociales.PALABRAS CLAVE:Derecho a la educación. Escuela inicial. Prisioneros brasileños. Justicia social.1Secretaria Municipal de Educação (SME), Itabira MGBrasil. Professora de Séries Finais. Doutorado em Educação (PUC-MG).ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2052-7518. E-mail:luciane.rcruz@gmail.com2Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG), Belo Horizonte MGBrasil.Professor Adjunto no Programa de Pós-graduação em Educação. Doutorado em Educação (PUC-SP).ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5555-6602. E-mail:crjcury.bh@terra.com.br
image/svg+xmlLuciane Maria Ribeiro da Cruz SANTOS e Carlos Roberto Jamil CURYRIAEERevista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 16, n. 1, p. 258-275, jan./mar. 2021. e-ISSN: 1982-5587DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v16i1.14064259ABSTRACT:This article demonstrates the difficulty of implementing Brazilian public educational policies after the approval of the 1988 Constitution and the 1996 Guidelines and Bases Law. The narrative of seven men sentenced for criminal proceedings, under the age of 29, about the beginning of their school lives illustrates real aspects of the absence of public power in serving families from socially less favored social classes. The data gathered from a doctoral thesis carried out by the first author in the Graduate Program in Education at PUC-MG. The set of semi-structured interviews was analyzed search for indicators of the achievement of the objectives of the Republic and National Education. It was observed the educational exclusion articulated to the set of mechanisms responsible for the promotion of social justice.Theconquest of the individual's rights is a fragile process so, exclusion of social rights has demonstrated.KEYWORDS: Right to education. Initial schooling. Brazilian prisoners. Social justice.IntroduçãoNeste ano de 2020, durante a vigência de restrições sociais tão severas provocadas pela pandemia de Covid-19, a sociedade brasileira assistiu o diferente tratamento dado pelos sistemas público e privado para solucionar a impossibilidade de contato físico e da manutenção dos esquemas tradicionais das escolas da educação presencial. Por um lado, uma rede privada que se reorganiza, força estruturas, estabelece novos parâmetros, mas de uma ou de outra forma, apresenta respostas que conseguem chegar aos seus estudantes e suas famílias. Por outro, a rede pública letárgica, pouco reativa, manifesta-se reconhecedora de sua dificuldade de criar algum tipo de solução capaz de alcançar e atender a todos.Conhecido dos estudiosos da educação brasileira, o quadro desigual da dupla rede não tem como indicador apenas a questão do acesso aos recursos das tecnologias digitais, sejam pela via da condição de estruturas ou pelo tipo de uso a esses recursos. Este aspecto da educação interveniente na possibilidade de “pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho(BRASIL, 1996) será deixado a outros pesquisadores.Trataremos neste artigo de outros aspectos também denunciadores da dificuldade do alcance dos objetivos da educação nacional, conforme enunciada na Lei de Diretrizes e Bases de 1996, pelo menos para as classes menos favorecidas socioeconomicamente. A discussão sobre a efetividade do direito à educação será realizada a partir da narrativa da memória de alguns dos próprios sujeitos afetados pelas políticas públicas educacionais brasileiras.
image/svg+xmlNarrativas de apenados sobreo início da vida escolarRIAEERevista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 16, n. 1, p. 258-275, jan./mar. 2021. e-ISSN: 1982-5587DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v16i1.14064260A educação é um direito de todos os brasileiros. Direito juridicamente protegido e exigente de um processo histórico constitutivo, de um conjunto de políticas públicas e práticas dos agentes responsáveis pela implementação para a materialização desse direito. Trazemos a narrativa de pessoas de 18 a 29 anos com experiência de privação de liberdade em virtude de sentença penal para tentar compreender na subjetividade e na singularidade a aplicação de aspectos importantesdos direitos articulados às políticas educacionais brasileiras. As narrativas dos 7 homens, uma tomada na fase piloto, versam sobre a trajetória dos anos iniciais da trajetória escolar e buscam na memória as dificuldades e facilidades vividas em um período muito anterior à entrada no sistema prisional.O artigo abordará na primeira seção uma visão do direito à educação a partir das concepções de movimento histórico para situar a educação básica brasileira dentro de uma visão de condição de cidadania, de acordo com a Constituição de 1988. Na segunda seção, apresentaremos e discutiremos as categorias escolhidas para análise: segurança social, inclusão.Na terceira seção descrevemos aspectos metodológicos da pesquisa,e na quarta, relatamos os resultados dos confrontos entre as categorias de análise e os conteúdos de memórias dos sujeitos investigados. Finalizamos o artigo com as conclusões. Uma visão do direito à educaçãoNa visão de Bobbio (1992), a qual adotamos, para o estabelecimento de progressivas formas de relação entre as pessoas nas sociedades e entre os Estados,“direitos do homem, democracia e paz são três momentos necessários do mesmo movimento histórico(p.1). A ideia de progressividade se estabelece na compreensão de uma história viva dinâmica e sem grandes rupturas. O direito à educação se assenta em uma dimensão estruturante da condição humana que é a racionalidade,e torna-se, pelo reconhecimento de sua importância,uma “arma não violenta de reinvindicação e de luta(CURY, 2002, p. 261).Por mais que o nosso olhar próximo não consiga perceber todo o movimento transformador de uma década ou os efeitos dos grandes debates, as reverberações das perdas geradas por processos conducentes a retrocessos, entendemos que os direitos das pessoas, em especial o da educação, repercutem sobre a paz social e melhoram a qualidade das democracias progressivamente. Transpor do reconhecimento do direito à educação para a sua concretude exigiu do Brasil muitas fases, ainda não completadas, iniciadas nos acordos internacionais de
image/svg+xmlLuciane Maria Ribeiro da Cruz SANTOS e Carlos Roberto Jamil CURYRIAEERevista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 16, n. 1, p. 258-275, jan./mar. 2021. e-ISSN: 1982-5587DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v16i1.14064261reconhecimento da Declaração dos Direitos do Homem (1945), até chegar à condição de direito público, definida pela Constituição Federal de 1988. Posição um pouco diferente adota Chevallier (2013),para quem a Declaração, por si só, não assume a força de direito positivo, a menos que venha a fazer parte de um Tratado, de uma Convenção ou de um ordenamento jurídico nacional. Esta composição dentro do ordenamento jurídico foi referida por Bobbio (1992) ao destacar os processos de internacionalização e de constitucionalização na promoção do reconhecimento, consolidação, homogeneização e proteção aos direitos fundamentais. Os direitos são o produto de um processo histórico de articulação dos sujeitos aos princípios filosóficos propugnados por um conjunto de pensadores, mas também fruto das articulações com a vida política e social, portanto, exigentes de “participação cada vez mais ampla, generalizada e frequente dos membros de uma comunidade no poder político(BOBBIO, 1992, p.33). A participação que gerou desde os direitos civis até os direitos sociais, dentre eles o objeto desta pesquisa, a educação básica, se esboroa quanto esvaziada da articulação que confere direção e sentido à ação, seja de um legislador nacional, seja de um agente político em sua ação executiva delegada, de um(a) Conselheiro(a) Tutelar, de um(a) profissional de saúde pública, de um(a) professor(a) de uma escola pública. Conforme ensina Cury (2009), o Estado de direito é aquele em que as proteções e garantias aos direitos funcionam, superando a falta de condições objetivas e a necessidade de boa vontade dos que proclamam os meios para proteger os direitos. Com a lei, rompem-se os privilégios e os mecanismos da influência.A proposição da educação como direito vincula-se ao estabelecimento de um Estado de direito, em cujo processo histórico de constituição se aplicam os substantivos desde a força da concepção liberal de organização política,passando pelas lutas sociais desencadeadas por organizações sociais implicadasna ampliação dos direitos políticos e dos direitos sociais. E vale a observação de Chevallier (2013),que este processo é dotado de um estado de inacabamento e incompletude que o habilita à dinâmica social.O processo histórico de conquista dos direitos num país como o Brasil, em que a escravatura provocou um impacto sociocultural, além de ter tornado mais lenta a efetivação do direito à educação,provocou a naturalização de diferenças e discriminações persistentes até o momento atual. As discriminações tisnam a percepção da aplicação dos princípios pela sociedade e tornam difícil o reconhecimento de um estado de injustiça social coexistente com a legalidade.
image/svg+xmlNarrativas de apenados sobreo início da vida escolarRIAEERevista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 16, n. 1, p. 258-275, jan./mar. 2021. e-ISSN: 1982-5587DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v16i1.14064262Homens pretos, pobres e suas famílias, mal escolarizados, têm na sociedade livre, uma realidade mais dura e de menor acessibilidade aos serviços de proteção do Estado, aos bens de consumo, ao mecanismo de preparação pela educação escolar para a vida social e para o trabalho. Há uma violência social contra estas pessoas, que exige a reflexão contra a prática excludente de direitos (SANTOS, 2020). A liberdade será o primeiro dos princípios, ao qual o Estado deve respeitar e pelo qual o cidadão deve lutar em favor de si próprio e de todos os outros. A paz social, obtida pela aplicação da justiça social, categoria em que a educação básica ocupa lugar fundamental, possibilita aos indivíduos as condições para exercer e lutar pela própria liberdade e pelo desenvolvimento pleno de sua capacidade, exercer em plenas condições sua cidadania dá ao indivíduo a sensação de segurança social.A segurança social, superando o estado de necessidade que põe a pessoa em constante luta pela sobrevivência, alça o indivíduo àcondição de cidadão, qualquer que seja sua classe social. Possibilita a luta pela participação na definição de seus direitos,pois é fruto do gozo de direitos básicos, fundamentais. Ao sentir-se seguro socialmente, o cidadão pode se envolver em outras questões da vida social e política, uma delas, o sentido da aprendizagem na própria educação. Para compora segurança social, um conjunto de condições acessórias, não pouco importantes,precisa ser atendida,e ao longo do processo de constituição de direito à educação foram reconhecidas pelas legislações. Dentro dessas condições, elegemos dois aspectos fundamentais para a aplicação de um mínimo de justiça social dentro da educação básica, nos anos iniciais da escolarização. Eles possibilitam o favorecimento da experiência de aprendizagem das crianças que ingressam o ambiente escolar, quais sejam,a segurança alimentar e a inclusão,e verificamos como estes aspectos repercutiram sobre a integração aluno-escola. Chamaremos essas condições acessórias de categorias de análise para fins desse estudo e na seção seguinte analisaremos cada uma dessas categorias. Condições acessórias para que se cumpra o direito à educaçãoPara concretizar os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil,dispostos no artigo 3º da Constituição Federal de 1988, uma integração das ações protetivas das políticas públicas sociais se faz necessária. Erradicar a pobreza e marginalização, reduzir as desigualdades sociais, promover o bem de todos sem quaisquer formas de discriminação são tarefas complexas em que a educação é apenas um dos campos de trabalho.
image/svg+xmlLuciane Maria Ribeiro da Cruz SANTOS e Carlos Roberto Jamil CURYRIAEERevista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 16, n. 1, p. 258-275, jan./mar. 2021. e-ISSN: 1982-5587DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v16i1.14064263Por esse motivo, essaseção volta-se à discussão de duas condições, a segurança alimentar e a inclusão, consideradas categorias necessárias para que o direito se constitua efetivo na sua condição democratizante. Segurança alimentarA Constituição de 1988 reconheceu o direito à segurança alimentar e instituiu no artigo 208 a universalidade do atendimento da alimentação escolar, sem restrições. Foi criado, em 1955, o Programa Nacional de Alimentação Escolar, cujo escopo foi a suplementação alimentar dos estudantes das escolaspúblicas e da rede filantrópica conveniada. Segundo Santos et al.(2007),o Decreto 37.106/1955 instituiu a Campanha de Merenda Escolar com alimentos obtidos por doações de programas internacionais. Posteriormente, no final da década de 1970, passou a integrar o Programa Nacional de Alimentação e Nutrição do Instituto Nacional de alimentação e nutrição, alcançando 14 milhões de escolares de 1º grau e pré-escolares com parte das necessidades calóricas e nutricionais diárias. Em 1983, o programa passou a ser responsabilidade da Fundação de Assistência ao Educando até 1997, quando a Secretaria Executiva do Fundo Nacional para o Desenvolvimento da Educação passou a coordenar, num espírito de autonomia e descentralização, em acordo com os ventos soprados da carta constitucional de 1988 o Programa Nacional de Alimentação Escolar. Abreu (1995, p. 31) alertava para a dicotomia na compreensão das políticas focalizadoras de alimentação escolar. Conforme foi entendido na maioria dos países de Terceiro Mundo, as políticas de alimentação do educando poderiam ser interpretadas por caráter assistencialista, suplementar, como medida de combate à fome, ou “como um direito do cidadão e um dever do Estado, que é responsável pelo bem-estar das crianças, inclusive por sua alimentação enquanto estão na escola, como acontece em muitos países desenvolvidos do chamado Primeiro Mundo.O processo de descentralização foi passo importante para melhorar os resultados do programa ainda na avaliação de Santos et al.(2007). Em 1993, apenas 300 municípios aplicavam o programa número que, em 1995, chegou a 3380. A descentralização foi fruto da verificação de uma série de problemas decorrentes da centralização da política nacional. Em primeiro lugar, a dificuldade de fazer o programa penetrarnos mais de 5000 municípios brasileiros com características tão variadas, em segundo, conforme Abreu (1995), a dificuldade de atender aos hábitos culturais regionais de alimentação, os problemas com
image/svg+xmlNarrativas de apenados sobreo início da vida escolarRIAEERevista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 16, n. 1, p. 258-275, jan./mar. 2021. e-ISSN: 1982-5587DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v16i1.14064264corrupção e os desvios de verbas no processo de compra de produtos, o favorecimento de grandes grupos econômicos em detrimento dos pequenos produtores locais. A dicotomia inicial foi superada pela definição da Lei 11947/2009,que concebeu alimentação escolar como forma de contribuir no desenvolvimento dos alunos e na melhoria do rendimento escolar. As diretrizes da legislação definiram pelo respeito às tradições culturais e alimentares; pela inclusão da educação nutricional no processo de ensino e aprendizagem; pela universalidade do atendimento; pelo controle social comunitário das ações do Programa executadas por cada um dos entes públicos; pelo fortalecimento do desenvolvimento sustentável; pelos incentivos à inclusão do pequeno produtor e do produtor de agricultura familiar no processo de aquisição de produtos; pela equanimidade qualitativa da oferta calórica e nutricional aos estudantes com necessidades especiais, vulnerabilidades, condições de saúde e idades específicas (BRASIL, 2009). Um grande volume de pesquisas foi realizado na avaliação do PNAE. Santos et al. (2007) avaliou a execução do programa em 45 municípios baianos, com entrevistas a gestores e crianças de 7 a 14 anos. Liberman (2015) analisou 10 trabalhos sobre o tema divulgados na base de dados SCIELO verificando os temas abordados, as tendências de cada investigação, os problemas identificados e as sugestões apresentadas. Lopes (2017) procurou osprincipais problemas e suas possíveis causas na implementação do PNAE em âmbito nacional. Concluiu que tanto as características do arranjo federativo quanto as dificuldades de controle e fiscalização do PNAE exigem mudanças para a melhoria da aplicabilidade das ações. As pesquisas convergem na consideração da importância na garantia de segurança alimentar,seja para públicos específicos ou para todo o público escolar. Entendemos a efetividade de todo o conjunto de informações organizadas pelas vias documentais, pelo estudo dos dados oficiais, pelas investigações de campo. Entretanto, também é importante ouvir as experiências relatadas espontaneamente por pessoas que formam um público vulnerável e para quem o direito de alimentar-se na escola se aproxima do cumprimento da compensação pela falta da condição e segurança alimentar no ambiente familiar. Este é o esforço revelado neste artigo, apresentado na seção 3.InclusãoIniciaremos nossa reflexão sobre o processo de inclusão rememorando a queda dos muros de fronteiras das Ciências Sociais, com consequências sobre o ambiente das pesquisas historiográficas, a partir da publicação de trabalhos de LeGoffe Nora (1995).
image/svg+xmlLuciane Maria Ribeiro da Cruz SANTOS e Carlos Roberto Jamil CURYRIAEERevista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 16, n. 1, p. 258-275, jan./mar. 2021. e-ISSN: 1982-5587DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v16i1.14064265A introdução de uma concepção relativista, capaz de absorver outros objetos de pesquisa, processos mais singulares de análise e abordagens mais inovadoras ampliou a tipificação dos problemas e ao mesmo tempo dos sujeitos de pesquisa. Foi essa premissa a introdutora de uma visão de História em que o caráter múltiplo e dinâmico das interações sociais passa a ser explorado para compor mais de uma narrativa sobre a sociedade e as relações nela estabelecidas. Coloca-se em diálogo professor e aluno, gestor e legislador, negro e branco. Desse diálogo compreende-se de forma diferente as situações de opressão/resistência; demanda/negociação; avanço/retrocesso. Nessa direção, Gomes (2012) discute a situação da escravidão no Brasil mostrando que as pesquisas têm revelado uma complexidade do quadro de opressão histórica do branco sobre o negro, simultaneamente aos atos de resistência, às negociações, à luta pela identidade das práticas culturais e religiosas. Toda a ambiguidade desse quadro compõe o racismo estrutural brasileiro que repercute, ainda hoje, sobre homens, mulheres e crianças. O sentido dessa ambiguidade expressa-se no conceito de historicidade formulado por Charles Morazé (1954, p. 59) para quemDevemos procurar para além da geopolítica, do comércio, das artes e da própria ciência, aquilo que justifica a atitude de obscura certeza dos homens que se unem, arrastados pelo enorme fluxo do progresso que os específica, opondo-os. Sente-se que esta solidariedade está ligada à existência implícita que cada um experimenta em si, duma certa função comum a todos. Chamamos a esta função historicidade.Não há História sem sociedade, sem prática social e interpretação. Assim, traremos dois aspectos dessa inclusão. O primeiro será a inclusão de sujeitos de pesquisa incomuns nas pesquisas educacionais, principalmente dedicadas aos anos iniciais da escolarização. O segundo aspecto da inclusão será tratado a partir da perspectiva de inclusão excludente e seletiva, conforme tratado por Cury (2008). Ao sepropor pensar sobre herdeirose/ou os reais atingidos pela privação dessa destinação universal da educação escolar como direito específico” o pesquisador percorre ordenamento legal desde os tempos imperiais para demonstrar a gradatividade da elaboraçãodo direito à educação, paralelamente à constituição de um “duplo dualismo franco, explícito e seletivo”(CURY, 2008, p. 214).O caráter multiplicador das faculdades humanas, ínsito nas relações de aprendizagem, superior à dimensão utilitarista e instrumentalizadora da educação, foi força mobilizadora para torná-la direito constitutivo do indivíduo e social do cidadão.
image/svg+xmlNarrativas de apenados sobreo início da vida escolarRIAEERevista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 16, n. 1, p. 258-275, jan./mar. 2021. e-ISSN: 1982-5587DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v16i1.14064266A inclusão de todos no direito à educação se fez, no caso brasileiro, pari passu à tessitura de uma dupla rede educacional, a pública para os menos favorecidos e a particular para a elite brasileira. O processo de desigualdade social e concentração de renda identificado em vários países e no Brasil tem acentuado as dificuldades de produzir-se na escola pública condições de inclusão realmente includentes. As heranças do processo histórico sobre as condições de desenvolvimento do sucesso escolar são sintetizadas e explicitadas.Hoje, até mesmo setores mais conservadores do espectro político reconhecem que os graves problemas sociais extraescolares interferem negativamente no acesso, na trajetória e no desempenho dos alunos procedentes de famílias de baixa renda não foi prioridade nem em políticas públicas, nem na ação de significativos segmentos das elites. O “empurra-empurra” entre os poderes gerais do Império e dos poderes provinciais, a iniquidade da escravatura, a descentralização sem recursos desde o Ato Adicional e a perversa distribuição da renda geraram uma herança até hoje pesada e não superada e que articula fatores sociais, étnicos, espaciais, regionais e o acesso, a permanência e o desempenho qualitativo na escola (CURY, 2008, p. 217).A relação de causalidade entre pobreza e educação tem entendimentos em direções opostos nos estudos sociais. Há abordagens que entendem que a falta daeducação causa a pobreza e as que pensam na direção inversa. Nosso entendimento é que pobreza e carência educacional formam um complexo sistema, intrincado e auto sustentável, gerador de mais carências sociais e econômicas, de violências e outras formas de exclusão.Também nessa direção, Julião (2009) investiga a associação empírica entre pobreza, favelamento, desemprego, migrações e criminalidade, analisando o perfil social de autores de crimes em busca de indicadores de relação entre pobreza e criminalidade. Nesse foco analítico, Rambla, Pereira e Espluga (2013) verificaram que características pessoais, familiares e socioeconômicas favorecem ou dificultam o acesso ao sistema de oportunidades educacionais em sociedades desiguais, como a brasileira.Segundo Couto (2004),a pobreza é uma falta de bem-estar em várias dimensões materiais e não materiais resultantes de processos econômicos, sociais, culturais, políticos, ambientais e individuais em que não se chega a alcançar níveis satisfatórios ou mesmo justos para a satisfação das suas necessidades. Assim, pode-se perceber que a constituição do direito público subjetivo da educação é insuficiente, embora necessária condição para que a educação promova o desenvolvimento pleno das capacidades individuais. A garantia de se estar na escola pode, inclusive, disparar as outras faltas impeditivas do alcance das satisfações de cada pessoa e das condições de aprendizagem.
image/svg+xmlLuciane Maria Ribeiro da Cruz SANTOS e Carlos Roberto Jamil CURYRIAEERevista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 16, n. 1, p. 258-275, jan./mar. 2021. e-ISSN: 1982-5587DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v16i1.14064267Sendo componente central de ações públicas comprometidas com o desenvolvimento social sustentável,a redução da pobreza e das desigualdades é condição essencial para que o acesso à educação e os níveis de escolaridade possam se configurar ações de qualidade educacional, em uma perspectiva mais ampla de atendimento social. Retomando a ideia inicialmente posta nessa seção de discutir a inclusão excludente, entendemos que é no fortalecimento do direito social, via integração das ações das políticas públicas sociais,que o direito individual se fará fortalecido e o direito social efetivado.Aspectosmetodológicos da pesquisaApresentamos um recorte de um estudo de caso múltiplo realizado em um presídio de Itabira, Minas Gerais, com 29 pessoas brasileiras, homens, com experiência de privação de liberdade por motivo de sentença penal. A tese de doutorado, disponível no acervo da PUCMinas, percorre aspectos da trajetória de aprendizagem dos sujeitos da pesquisa a partir de seus relatos de memória sobre os anos iniciais de escolarização. Subsidiariamente, percebeu-se como se concretizam algumas condiçõesque garantem o direito à educação, de que segurança social dispõem as famílias dos entrevistados para garantir o sucesso dos anos iniciais da escolarização e como a inclusão educacional realmente se efetiva. Neste quadro foi possível perceber se as condições de vida favoreciam ou não as relações entre o aluno e a escola.As orientações de Yin (2001) serviram para a elaboração da pesquisa empírica, de abordagem qualitativa, para quem problemas de pesquisa formulados centralmente com as perguntas como? ou por quê? propiciam elaborações explicativas vinculadas operacionalmente, ao longo do tempo, não devem exigir do pesquisador controle dos eventos comportamentais e possibilitam enfoca situações contemporâneas.Também foram importantes as orientações metodológicas da História Oral,conforme contribuições de Verena Alberti (1990; 2006) e Delgado (2006).Neste artigo, apresentamos discussões sobre os resultados da fase piloto em que se desenvolveu uma entrevista semiestruturada com um depoente e os da segunda fase da pesquisa,quando foram entrevistados 6 outros sujeitos. A entrevista semiestruturada da fase piloto ofereceu proposições orientadoras da segunda fase da pesquisa. A escolha dos sujeitos obedeceu ao perfil etário pré-estabelecido,
image/svg+xmlNarrativas de apenados sobreo início da vida escolarRIAEERevista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 16, n. 1, p. 258-275, jan./mar. 2021. e-ISSN: 1982-5587DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v16i1.14064268pessoas com idade inferior a 29 anos. Também foram observados o perfil de participação nas