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Ausência presente em sala de aula: a morte de um aluno/a e o cotidiano
escolar na perspectiva de professoras
RIAEE
–
Revista Ibero
-
Americana de Estudos em Educação
,
Araraquara, v. 16, n. 1, p. 320
-
340, jan./mar. 202
1
. e
-
ISSN: 1982
-
5587
DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v16i1.14472
320
AUSÊNCIA PRESENTE EM SALA DE AULA
:
A MORTE DE UM ALUNO/A E O
COTIDIANO ESCOLAR NA PERSPECTIVA DE PROFESSORAS
AUSENCIA PRESENTE EN EL AULA
:
LA MUERTE DE UN ESTUDIANTE
Y EL
COTIDIANO ESCOLAR EN
LA PERSPECTIVA DE
PROFESORAS
PRESENT ABSENCE IN THE CLASSROOM
:
THE DEATH OF A STUDENT
FROM THE PERSPECTIVE OF TEACHERS
Ilana
LATERMAN
1
Regina
SZYLIT
2
RESUMO
: Este artigo apresenta um estudo exploratório sobre professoras que perderam um
aluno/a por morte por doença no
Fundamental
I
.
E
nfoca
recursos e
desafios em
lidar com tal
situação frente à turma de crianças.
Adota
uma perspectiva multidisciplinar entre os estudos
de luto
e morte
na área da saúde, bases da psicologia
histórico
-
cultural
e da educação
.
Identifica
, nos casos estudados, incertezas no ambiente esco
lar e
processos
visando
equilibrar,
n
os dias e meses, o turbilhão de emoções e a vida cotidiana da turma em sala de aula.
C
ompetiu às professoras e às equipes pedagógicas coordenar a transição entre luto e vida
escolar; estabelecer um ambiente acolhedor e
seguro; e propor modos de lidar com os desafios
emocionais e cognitivos decorrentes da perda do colega. Os resultados estão organizados,
ainda, por meio das práticas realizadas pelas professoras entrevistadas e consideradas por elas
fundamentais para o sup
orte da vida escolar nas
situações vividas.
PALAVRAS
-
CHAVE
: Prática pedagógica
. L
uto na escola
. M
orte de criança
. C
otidiano
escolar
. A
nos iniciais do ensino fundamental.
RESUMEN
:
Este artículo presenta un estudio exploratorio sobre
profesoras
que perdi
eron a
un alumno debido a la muerte por enfermedad en la escuela primaria
.
E
nfoca los recursos y
los desafíos
de la
situación.
A
dopta una perspectiva multidisciplinaria entre los estudios de
duelo y muerte en el área de la salud, las bases de la psicología
histórico
-
cultural y de los
estudios de educación
.
En los casos estudiados,
se
identifica incertidumbres en el entorno
escolar y procesos encaminados a equilibrar, en los días y me
ses,
la vida cotidiana de la
clase en el aula.
Depende de los profesores y
los equipos pedagógicos coordinar la transición
entre el duelo y la vida escolar; establecer un ambiente cálido y seguro; y proponer formas
de afrontar los desafíos emocionales y cognitivos.
Los resultados también se organizan
por
las prácticas realizadas
y considerados fundamentales por ellos para apoyar la vida escolar
en las situaciones vividas.
1
Universidade Federal de Santa Catarina (
UFSC
)
, Florianópolis
–
SC
–
Brasil.
Profess
ora Adjunta no Programa
de Pós
-
Graduação em Educação
. D
outorado
em Educação
(UFSC)
. ORCID:
https://orcid.org/0000
-
0001
-
9790
-
5620
. E
-
mail:
ilana@laterman.com
2
Universidade de São Paulo (
USP
)
, São Paulo
–
SP
–
Brasil. Professora
Titular e Diretora da Escola
de
Enfermagem
.
Doutorado em
Enfermagem
(USP)
.
Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq
-
Nível 1C.
ORCID:
https://orcid.org/0000
-
0002
-
9250
-
0250
. E
-
mail: szylit@usp.br
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Ilana LATERMAN e Regina SZYLIT
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PALABRAS CLAVE
: Práctica pedagógica. Duelo en la escuela. Muerte infantil. Rutina
escolar. Escuela primaria.
ABSTRACT:
This article presents an exploratory st
udy of teachers who lost a student due to
death by illness in Elementary School. It focuses resources and challenges in dealing with this
situation. It adopts a multidisciplinary perspective between studies of mourning and death in
the area of health, stud
ies in historical
-
cultural psychology and education. It identifies
uncertainties in the school environment and processes aimed at balancing, in the days and
months, the turmoil of emotions and the daily life in the classroom. It was up to teachers and
peda
gogical teams to coordinate the transition between mourning and school life; establish a
warm and safe environment; and to propose ways to deal with the emotional and cognitive
challenges resulting from the loss. The results are also organized through the
practices
carried out by the teachers interviewed and considered by them to be fundamental for
supporting school life in the situations experienced.
KEYWORDS
: Teacher´s practice. Mourning at school. Child death.
School routine.
Elementary school
.
Intro
dução
Este artigo apresenta um estudo exploratório sobre professoras que perderam um
aluno/a de suas salas de aula por morte por doença nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental.
As questões que enfoca são a propósito dos recursos e desafios da professora e
da equipe
pedagógica em lidar com tal situação frente à turma de crianças. A partir dos dados empíricos
e da pesquisa bibliográfica, em uma perspectiva multidisciplinar entre os estudos de luto e
morte na área da saúde, bases da psicologia e da educação,
é possível afirmar que a morte de
uma criança, nos casos estudados, despertou sentimentos profundos e incertezas no ambiente
escolar, e tratou
-
se, sobretudo, de conseguir equilibrar, ao longo dos dias e meses, o turbilhão
de emoções e a vida cotidiana da t
urma em sala de aula. Nestas situações, competiu às
professoras e às equipes pedagógicas coordenar a transição entre luto e vida escolar;
estabelecer um ambiente acolhedor e seguro; e propor modos de lidar com os desafios
emocionais e cognitivos decorrente
s da perda do colega. Os resultados estão organizados,
ainda, por meio das práticas realizadas pelas professoras entrevistadas e consideradas por elas
fundamentais para o suporte da vida escolar nas
situações vividas.
Para discorrer sobre o estudo explora
tório, este artigo re
fere
-
se a
fatos de morte por
doença de crianças
ocorridos em escolas
dos anos iniciais do ensino fundamental
,
e
às
situaç
ões
decorrente
s
destes fatos
, pela voz
das
professoras
entrevistadas
. Apresenta e reflete
sobre encaminhamentos e
práticas que contribuíram, e podem contribuir, segundo as
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professoras entrevistadas, na lida com a perda e a continuidade da vida escolar cotidiana. Para
a discussão revê os conceitos de luto, luto complicado e luto não reconhecido
,
e toma por base
a psico
logia histórico
-
cultural enfocando a ideia de processo para elaboração de tal situação.
O processo individual e coletivo de elaboração das crianças é compreendido
com a
mediação do professor, e, se possível, da equipe pedagógica e de outros profissionais
que
possam contribuir. As considerações finais buscam resumir os achados, por um lado, e
problematizar o tema, por outro, para dar seguimento à reflexão e aos estudos.
Morte, luto, criança e cotidiano escolar
Elias (2001, p. 17) pontua sobre a dificulda
de, em nossos tempos e cultura, de nos
aproximar da ideia e da conversa sobre a morte, pela recusa em aceitar nossa finitude. Afirma
que este fato inibe os cuidados com os moribundos.
Kovacs (2005, p. 486) lembra que, nas imagens da TV, a morte entra em c
asa, ao
mesmo tempo em que é assunto interdito:
O tema da morte se tornou interdito no século XX (
ARIÈS
, 2003), sendo
banido da comunicação entre as pessoas. Paradoxalmente, nesse mesmo
século, a morte esteve e continua estando, no início do século XXI, c
ada vez
mais próxima das pessoas, em função, principalmente, do desenvolvimento
das telecomunicações. A TV introduz diariamente, em milhões de lares,
cenas de morte, de violência, de acidentes, de doenças, sem a mínima
possibilidade de elaboração, dado o r
itmo propositalmente acelerado desse
veículo.
Neste contexto das contradições culturais em lidar com a morte e em falar sobre ela,
diante de sua banalização nos meios de comunicação, e, ao mesmo
tempo
, pela interdição do
tema
,
situa
-
se a ação pedagógica e
m sala de aula com crianças, frente a uma situação de luto e
perda. Os aspectos culturais defrontam
-
se com a questão da condição humana (
ARENDT
,
2000).
O professor ou professora que se depare com a morte de um aluno ou aluna terá que
lidar com sentimentos
e comportamentos individuais, únicos, seus e de seus alunos e
familiares, e ao mesmo tempo, sentimentos e comportamentos universais (
HELLER
, 2013).
Afora a família, as crianças têm a escola como lugar privilegiado de viver a infância.
Mas como, sendo profe
ssor ou professora, apoiar crianças que perderam um colega? Como
apoiar o professor ou professora que tem diante de si 25 crianças tentando entender e elaborar
seus sentimentos frente à morte de um colega?
A morte de uma criança da turma traz ao meio socia
l uma nova situação para a qual os
modelos próprios de espelhamento, imitação, exemplos de comportamento esperados e usuais
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parecem não sustentar respostas suficientes. Vigotski (2018) explica o preponderante papel do
meio social e cultural no desenvolvime
nto infantil. Explica que, quando no meio está presente
a forma final da conduta em questão, com exemplos de como se faz naquela situação, a
criança, aos poucos e por meio das interações sociais, modifica a conduta inicial, elaborando,
até que, transforman
do o sentido do ocorrido, integra o modo de fazer para aquela situação.
Escreve o autor: “[…] o meio é a fonte de todas as características especificamente humanas da
criança. Se a forma ideal estiver ausente, não se desenvolverá a atividade, a característi
ca, a
qualidade correspondente na criança.” (
VIGOTSKI,
2018, p. 87).
No caso da morte de uma criança, que respostas nossa cultura tem a oferecer? Que
modelos serão disponibilizados às crianças?
A pesquisa
A pesquisa cujos resultados são aqui apresentado
s e discutidos teve por objetivo
i
nvestigar sobre
os desafios na sala de aula e as ações pedagógicas diante d
a morte por doença
de criança do Fundamental I
,
na perspectiva d
e
professor
a
s
que viveram esta situação.
Metodologia da pesquisa
Pesquisa do ti
po qualitativo, exploratório (GIL, 2008), uma vez que há poucas
referências nacionais, e mesmo internacionais, sobre a turma e seu professor/a de anos iniciais
diante da morte de um
colega
.
Neste artigo são apresentados dados, análises, resultados e discus
são obtidos por meio
de estudo bibliográfico e de entrevistas com professoras de três escolas que passaram pela
morte de um de seus alunos dos anos iniciais do ensino fundamental entre três e sete anos
atrás. O critério de tempo estabeleceu
-
se para que hou
vesse um certo distanciamento
emocional do ocorrido, mas sem recair no esquecimento dos detalhes.
As professoras, no caso desta pesquisa
,
são professoras mulheres, generalistas em sua
prática, referência
para seus alunos e alunas,
e responsáveis pela turma
. Durante o ano letivo,
a professora e a turma convivem diariamente, por quatro a cinco horas por dia, o que as leva a
estabelecer vínculos significativos com seus alunos e a conhecer as respectivas famílias. Este
fator, metodologicamente, é relevante, poi
s, em situações de perda e luto, o vínculo e as
condições prévias de convivência são variáveis significativas (FRANCO, 2002).
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Os dados obtidos nas entrevistas são analisados pela perspectiva de Bardin (2010) e
discutidos a partir de autores da área de estu
dos de luto e morte, saúde, psicologia e educação,
em uma perspectiva multidisciplinar para pensar sobre o cotidiano escolar. Entre os autores
sobre luto e morte destacamos Shear, Franco
e
Kovacs
.
A criança e a escola são compreendidos a partir dos seguint
es aportes: a) perspectiva
histórico
-
cultural de Vigotski; b) entendimento de morte na condição humana como
experiência universal e ao mesmo tempo particular e subjetiva (HELLER, 2013); c)
compreensão da escola como um espaço em que as crianças vivem sua i
nfância e inseparável
das profundas experiências de vida (
FREINET
, 1996).
As escolas escolhidas pelo sistema bola de neve (
snowball sampling
) tem por intenção
possibilitar uma aproximação com o fenômeno. As escolas pesquisadas apresentam certa
diversidade:
uma escola pública, uma escola particular laica e uma escola particular de
administração religiosa. Própria para a pesquisa qualitativa, adotamos a entrevista aberta,
como propõe Minayo (2012)
,
para obter informações sobre o tema segundo a visão do
s
entre
vistado
s
nes
.
Análises e
discussão
Questões interdisciplinares sobre o luto surgiram a partir das análises dos conteúdos.
O referencial construiu
-
se na inter
-
relação das áreas da educação, da psicologia e dos estudos
do luto.
A primeira questão que se ap
resent
a neste diálogo interdisciplinar
é: Caracteriza
-
se
como situação de luto das professoras e/ou das crianças o que ocorre após a morte de criança
da turma? Segundo Franco (2010)
,
o luto é uma experiência subjetiva, porque dotada de
significado, inserid
a em uma cultura e de determinações múltiplas. De acordo com a literatura
na área (FRANCO, 2002; BARBOSA, 2010; entre outros), o luto depende do tipo de relação
e vínculo estabelecido; da idade e do tipo de morte, da vivência durante o processo, dos
recurs
os (afetivos, espirituais e rituais), entre outros aspectos próprios de cada situação de
perda por morte. Estas variáveis influem na vivência da perda e do luto, e na percepção da
situação, de si mesmo e dos outros envolvidos
.
A partir desta abordagem, dec
orrem outras questões sobre eventual existência de
condições para que se torne um luto complicado. De acordo com Franco (2010), luto
complicado caracteriza
-
se quando a pessoa experimenta uma desorganização prolongada que
a impede de retomar suas atividades
com a qualidade anterior à perda. Luto complicado é um
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conceito que contribui para as reflexões sobre as descrições das entrevistas. Outro conceito
dos estudos é o de luto não reconhecido ou não autorizado (CASELLATO, 2013), que se
caracteriza por não ser
reconhecido socialmente como tal. Ou seja, a dor da pessoa que o
vivencia, e que, por exemplo, não é da família, pode não ser percebida, nem qualificada pelos
que estão à sua volta. A professora que perde um aluno/a tem sua dor reconhecida e
respeitada?
N
esta pesquisa
encontramos dados que nos fazem pensar sobre possibilidades de
não reconhecimento do luto da professora
,
bem como na
possibilidade de o luto tornar
-
se
complicado nas turmas.
Estas possibilidades indicam a importância de compreender o
fenômeno
a partir também dos estudos de luto.
Prosseguimos a discussão buscando os
desafios, os encaminhamentos e práticas reconhecidas pelas professoras como base de apoio
para a vida cotidiana na sala de aula após o fato da morte.
Contexto dos fatos
Nas esco
las pesquisadas existem semelhanças e diferenças nos acontecimentos sobre o
conhecimento da doença (pelas professoras), o momento da morte, a relação das professoras
com a família, o recebimento da notícia pelas professoras, o envolvimento da equipe
pedagó
gica. A partir daí as professoras e a equipe pedagógica se v
e
em diante de dar a notícia
para seus alunos e para a comunidade escolar, e mediar e orientar a sequência de eventos
envolvendo seus alunos e as famílias na vida escolar.
Ainda que em contextos di
ferentes, defrontar
-
se com o fato da morte concretamente
parece ter impactado as professoras
entrevistadas
pelo inesperado da situação. Mesmo nos
casos em que as informações seriam suficientes para considerar tal possibilidade, as
professoras dizem da difi
culdade em pensar na morte de uma criança. Este “evitar pensar”
sobre a morte de criança,
pode
significa
r
também
desafios na
expressa
ção
sobre ela. Como
falar da morte? Com quem falar de morte?
Heller
et al.
(2013) fizeram pesquisa com professores que tinh
am em suas salas de
aula alunos em estado terminal, ou casos em que já havia ocorrido a morte, para compreender
quais o conhecimento e o suporte que estes professores tinham. A pesquisa
tipo
survey
,
feita
nos EUA, contou com 190 sujeitos. A principal fonte
de suporte dos professores identificada
dentro da escola foi a do enfermeiro da escola. Em segundo lugar, a dos colegas e, em
terceiro, a do psicólogo escolar. Fora da escola, a rede de suporte foi, em primeiro lugar, a
família; em segundo lugar, leituras
e pesquisas na internet; em terceiro, outros amigos. Com
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relação às crianças, o primeiro suporte na escola foi o orientador escolar, juntamente com a
professora de sala de aula.
No Brasil não encontramos estudos semelhantes, mas é possível afirmar que as
escolas, com raras exceções, não têm a figura do enfermeiro escolar (BRASIL, 2019).
As
escolas estudadas não
contava
m
com serviço de enfermagem próprio
ou ações de
cooperação
com a enfermagem do hospital que atendia às crianças. Ainda que seja comum haver
postos
de saúde públicos próximos a escolas públicas e particulares,
também
não ocorreu trabalho
cooperativo entre os postos de saúde e as escolas pesquisadas.
Permanece a questão: com
quem falar sobre a morte?
O
principal sistema de apoio entre os profess
ores pesquisados nos EUA é o da
enfermagem
e,
no Brasil, há a hipótese de que não temos este trabalho conjunto na maioria
dos casos.
Tem ficado claro
com este estudo
que
, lidar com a doença e morte de uma criança
na escola
se trata de buscar um conjunto de
possibilidades
de apoio
, de interlocutores
ao
professor e, talvez, programas e projetos de integração de áreas seja uma das possibilidades.
Nas escolas pesquisadas, a notícia da morte d
o
coleg
a
foi dada às crianças pela
professora e pela coordenadora ou a
equipe pedagógica, juntas. A fala da profa.
Ana
mostra a
dificuldade em noticiar. Nesta fala, refere
-
se a esta dificuldade, que persistiu nas semanas
seguintes, como uma notícia ainda não inteiramente absorvida:
E aí chegou acho que em agosto, acho que f
oi 11 ou 12 de agosto ele veio a
falecer. E daí foi muito complicado. Primeiramente para dizer para estas
crianças o que tinha acontecido. Mas eu tentei fazer o mais simbólico
possível. Que agora a gente não precisaria mais fazer cartinhas, que agora
a gen
te poderia colocar o “Arno” em nosso pensamento, foi tudo desta
forma, pra não chegar “ah o coleguinha de vocês morreu...” acho que eu
não tinha nem condições de falar isso na época porque foi bem complicado.
Então foi todo um trabalho assim de conversa me
smo, mas, eu sentia que
não rolava. Eles estavam muito sentidos, muito, muito, muito, eu não
conseguia atingir ... talvez até porque eu também não estava conf
o
rmada,
não conseguia passar essa segurança pra eles n
é
. Então foi quando a Alda
(nome fictício, p
rofessora da universidade cuja turma faria estágio docente
na escola) veio aqui
(Profa. Ana).
Alda
chegou à escola depois de três semanas do ocorrido. Psicóloga de formação,
professora no curso de Pedagogia, tinha a escola A como campo de estágio docente.
Afirma
não ter sido chamada em função da situação; pelo contrário, tomou ciência quando chegou na
escola. Mas, segundo a profa. Ana, foi sua intervenção junto à turma que permitiu a
elaboração dos fatos e o acolhimento dos sentimentos presentes na turma.
Disse ainda a profa.
Ana que o fato de ter alguém lidando com as crianças, fazendo dinâmicas de expressão,
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conversa e acolhimento, para o que ela mesma, naquele momento, não conseguia nem
tranquilidade nem discernimento, a deixou mais tranquila, apaziguand
o seu sentimento de
culpa, principalmente por ter envolvido afetivamente toda a turma na situação de doença do
colega, com vídeos e cartas enquanto durou a internação, com rifa para o caixa da cirurgia,
com a união através da qual a turma passou a incluir
Arno
(nome fictício da criança doente e
que veio a falecer)
em todos os momentos.
Na Escola B, a notícia foi dada pela professora de Filosofia, também coordenadora, a
profa.
Bruna
. Tratando
-
se, porém, de uma comunidade em que muitas famílias se conhecem
nã
o apenas da escola, mas de convivência social em outros espaços, sendo
Beta
(nome fictício
da criança doente e que veio a falecer)
irmã gêmea de um menino da turma e, ainda, filha de
uma pessoa da equipe de gestão da escola, o envolvimento da escola inteir
a ocorreu. A notícia
foi dada às crianças já em um outro espaço de sala, e imediatamente foram propostas e
realizadas conversas e dinâmicas expressivas, como o desenho. O professor da aula de
Religião também conversou com as crianças sobre
dúvidas na persp
ectiva da religião. A
escola fez algum ritual em memória
de
Beta
. Passado um ano de sua morte, deu seu nome à
biblioteca
.
Vale aqui reproduzir a fala da professora da escola C:
A coordenação subiu e aí contou que ela tinha ficado muito doente, que não
res
istiu... Aí teve aluno que chorou, aluno que ficou muito emocionado, e aí
a orientação da coordenação pra mim é “leva eles pra uma sala, a gente
tem uma sala de piso de madeira, que é a sala de balé com espelho, e vamos
fazer desenhos. Vamos ver como reage
m, conversar, fazer desenhos”
.
Daí
teve alunos que choraram compulsivamente porque lembraram da morte do
avô, da morte do cachorro, mas assim não mortes recentes... esse do avô
tinha sido há 2 anos. Como isso desencadeia, n
é
, a perda, sei lá, vai
desencade
ando coisas antigas ou a dor atual e ele precisa ter uma
justificativa. Os desenhos encantadores. Desenhos frequentes, foi neste dia e
a cada momento, a gente falava, a gente tocava no assunto
(Profa.
Celi
).
As professoras
entrevistadas
nos apresentam um
contexto intenso, que causa uma
interrupção na vida escolar tal como se dava até então. Para pensar sobre esta nova situação, o
retrato inicial será abordado como início de um processo.
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O processo de elaboração
A notícia da morte da criança para o
s colegas da sala de aula dá início a um novo
momento na vida da turma e da professora. O que vem a seguir é um processo
simultaneamente individual e coletivo. Ou seja, para cada criança e para a professora, a
depender de seu vínculo com a criança falecida
, a depender de sua amizade, além de cada
história de vida e de perdas já vividas, das crenças da família sobre a morte e de sua atitude
face a ela. Ademais, cada criança tem uma possibilidade cognitiva em lidar com esta
informação e um modo de ser diante
dos desafios emocionais. No entanto, além das questões
individuais, o grupo de crianças junto com a professora formam uma unidade funcional. Com
o objetivo comum de aprender, convivem diariamente, tendo já contraído vínculos, ocupando
espaços e performance
s próprias no grupo.
As mediações para o aprendizado, das ações pedagógicas, e dos cuidados, adquirem
em situações de morte uma dimensão do humano explicitada. Se a educação assim mediada
ensina às crianças o humano em nós (
VIGOTSKY
, 2001), diante de uma
situação de morte a
mediação é fundamental, é parte da atribuição de sentidos de vida.
Este novo momento, que começa a partir da morte da criança e da notícia de sua
morte, se apresenta como um processo. O modo como é passada a notícia da morte é
important
e; porém, o entendimento desta notícia, sua elaboração pelas crianças e, na verdade,
pelos adultos, também é processual.
Este
tempo
processual foi explicado pelas professoras nas
entrevistas
,
ao reverem os acontecimentos
. Aquilo que, por qualquer razão, nã
o foi bem
explicado num primeiro momento,
foi
retomado nos dias, nas semanas seguintes. As
perguntas que forem respondidas no momento da notícia também virão à tona outras vezes
nas semanas seguintes. Dias, semanas, meses. Ao que parece, o ano letivo fica
marcado e a
ausência torna
-
se presente por objetos, lembranças, por um ou outro colega que, em dado
momento, comenta.
Metzgar (1995) dá algumas indicações para informar a notícia na sala de aula de
crianças. Sugere que o professor, ou quem dê a notícia, r
espire, se acalme. Pode ser que chore;
neste caso, poderá mostrar que choramos e nos recuperamos. Considera ainda importante que
se pense antes o que será dito e como será dito, para que isso ajude na difícil tarefa de dar a
notícia da morte de uma criança
. Quando falar sobre morte, continua Metzgar
(1995), que se
explique com clareza. As metáforas atrapalham
,
ensina
ainda a autora,
pois confundem a
criança, que poderá associar, em sua fantasia, fatores da vida, como o sono
,
com a morte. É
importante, afirm
a ainda, usar um vocabulário e compreensão próprios à idade das crianças,
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Ilana LATERMAN e Regina SZYLIT
RIAEE
–
Revista Ibero
-
Americana de Estudos em Educação
,