image/svg+xmlAusência presente em sala de aula: a morte de um aluno/a e o cotidianoescolar na perspectiva de professorasRIAEERevista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 16, n. 1, p. 320-340, jan./mar. 2021. e-ISSN: 1982-5587DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v16i1.14472320AUSÊNCIA PRESENTE EM SALA DE AULA: A MORTE DE UM ALUNO/A E O COTIDIANO ESCOLAR NA PERSPECTIVA DE PROFESSORASAUSENCIA PRESENTE EN EL AULA: LA MUERTE DE UN ESTUDIANTE Y EL COTIDIANO ESCOLAR ENLA PERSPECTIVA DE PROFESORASPRESENT ABSENCE IN THE CLASSROOM:THE DEATH OF A STUDENT FROM THE PERSPECTIVE OF TEACHERSIlana LATERMAN1Regina SZYLIT2RESUMO: Este artigo apresenta um estudo exploratório sobre professoras que perderam um aluno/a por morte por doença noFundamentalI. Enfocarecursos edesafios emlidar com tal situação frente à turma de crianças. Adotauma perspectiva multidisciplinar entre os estudos de lutoe mortena área da saúde, bases da psicologiahistórico-culturale da educação.Identifica, nos casos estudados, incertezas no ambiente escolar e processosvisandoequilibrar, nos dias e meses, o turbilhão de emoções e a vida cotidiana da turma em sala de aula. Competiu às professoras e às equipes pedagógicas coordenar a transição entre luto e vida escolar; estabelecer um ambiente acolhedor e seguro; e propor modos de lidar com os desafios emocionais e cognitivos decorrentes da perda do colega. Os resultados estão organizados, ainda, por meio das práticas realizadas pelas professoras entrevistadas e consideradas por elas fundamentais para o suporte da vida escolar nassituações vividas. PALAVRAS-CHAVE: Prática pedagógica. Luto na escola. Morte de criança. Cotidiano escolar. Anos iniciais do ensino fundamental.RESUMEN: Este artículo presenta un estudio exploratorio sobre profesorasque perdieron a un alumno debido a la muerte por enfermedad en la escuela primaria.Enfoca los recursos y los desafíos de lasituación. Adopta una perspectiva multidisciplinaria entre los estudios de duelo y muerte en el área de la salud, las bases de la psicologíahistórico-cultural y de los estudios de educación.En los casos estudiados, se identifica incertidumbres en el entorno escolar y procesos encaminados a equilibrar, en los días y meses, la vida cotidiana de la clase en el aula.Depende de los profesores y los equipos pedagógicos coordinar la transición entre el duelo y la vida escolar; establecer un ambiente cálido y seguro; y proponer formas de afrontar los desafíos emocionales y cognitivos.Los resultados también se organizan porlas prácticas realizadas y considerados fundamentales por ellos para apoyar la vida escolar en las situaciones vividas.1Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis SC Brasil. Professora Adjunta no Programa de Pós-Graduação em Educação. Doutoradoem Educação(UFSC). ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9790-5620. E-mail:ilana@laterman.com2Universidade de São Paulo (USP), São Paulo SP Brasil. ProfessoraTitular e Diretora da Escolade Enfermagem. Doutorado emEnfermagem(USP). Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq -Nível 1C. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9250-0250. E-mail: szylit@usp.br
image/svg+xmlIlana LATERMAN e Regina SZYLITRIAEERevista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 16, n. 1, p. 320-340, jan./mar. 2021. e-ISSN: 1982-5587DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v16i1.14472321PALABRAS CLAVE: Práctica pedagógica. Duelo en la escuela. Muerte infantil. Rutina escolar. Escuela primaria.ABSTRACT:This article presents an exploratory study of teachers who lost a student due to death by illness in Elementary School. It focuses resources and challenges in dealing with this situation. It adopts a multidisciplinary perspective between studies of mourning and death in the area of health, studies in historical-cultural psychology and education. It identifies uncertainties in the school environment and processes aimed at balancing, in the days and months, the turmoil of emotions and the daily life in the classroom. It was up to teachers and pedagogical teams to coordinate the transition between mourning and school life; establish a warm and safe environment; and to propose ways to deal with the emotional and cognitive challenges resulting from the loss. The results are also organized through the practices carried out by the teachers interviewed and considered by them to be fundamental for supporting school life in the situations experienced.KEYWORDS: Teacher´s practice. Mourning at school. Child death. School routine. Elementary school.IntroduçãoEste artigo apresenta um estudo exploratório sobre professoras que perderam um aluno/a de suas salas de aula por morte por doença nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental. As questões que enfoca são a propósito dos recursos e desafios da professora eda equipe pedagógica em lidar com tal situação frente à turma de crianças. A partir dos dados empíricos e da pesquisa bibliográfica, em uma perspectiva multidisciplinar entre os estudos de luto e morte na área da saúde, bases da psicologia e da educação, é possível afirmar que a morte de uma criança, nos casos estudados, despertou sentimentos profundos e incertezas no ambiente escolar, e tratou-se, sobretudo, de conseguir equilibrar, ao longo dos dias e meses, o turbilhão de emoções e a vida cotidiana da turma em sala de aula. Nestas situações, competiu às professoras e às equipes pedagógicas coordenar a transição entre luto e vida escolar; estabelecer um ambiente acolhedor e seguro; e propor modos de lidar com os desafios emocionais e cognitivos decorrentes da perda do colega. Os resultados estão organizados, ainda, por meio das práticas realizadas pelas professoras entrevistadas e consideradas por elasfundamentais para o suporte da vida escolar nassituações vividas. Para discorrer sobre o estudo exploratório, este artigo refere-se a fatos de morte por doença de criançasocorridos em escolasdos anos iniciais do ensino fundamental, e àssituaçõesdecorrentesdestes fatos, pela vozdasprofessorasentrevistadas. Apresenta e reflete sobre encaminhamentos e práticas que contribuíram, e podem contribuir, segundo as
image/svg+xmlAusência presente em sala de aula: a morte de um aluno/a e o cotidianoescolar na perspectiva de professorasRIAEERevista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 16, n. 1, p. 320-340, jan./mar. 2021. e-ISSN: 1982-5587DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v16i1.14472322professoras entrevistadas, na lida com a perda e a continuidade da vida escolar cotidiana. Para a discussão revê os conceitos de luto, luto complicado e luto não reconhecido,e toma por base a psicologia histórico-cultural enfocando a ideia de processo para elaboração de tal situação. O processo individual e coletivo de elaboração das crianças é compreendidocom a mediação do professor, e, se possível, da equipe pedagógica e de outros profissionais que possam contribuir. As considerações finais buscam resumir os achados, por um lado, e problematizar o tema, por outro, para dar seguimento à reflexão e aos estudos.Morte, luto, criança e cotidiano escolarElias (2001, p. 17) pontua sobre a dificuldade, em nossos tempos e cultura, de nos aproximar da ideia e da conversa sobre a morte, pela recusa em aceitar nossa finitude. Afirma que este fato inibe os cuidados com os moribundos. Kovacs (2005, p. 486) lembra que, nas imagens da TV, a morte entra em casa, ao mesmo tempo em que é assunto interdito:O tema da morte se tornou interdito no século XX (ARIÈS, 2003), sendo banido da comunicação entre as pessoas. Paradoxalmente, nesse mesmo século, a morte esteve e continua estando, no início do século XXI, cada vez mais próxima das pessoas, em função, principalmente, do desenvolvimento das telecomunicações. A TV introduz diariamente, em milhões de lares, cenas de morte, de violência, de acidentes, de doenças, sem a mínima possibilidade de elaboração, dado o ritmo propositalmente acelerado desse veículo.Neste contexto das contradições culturais em lidar com a morte e em falar sobre ela, diante de sua banalização nos meios de comunicação, e, ao mesmotempo, pela interdição do tema,situa-se a ação pedagógica em sala de aula com crianças, frente a uma situação de luto e perda. Os aspectos culturais defrontam-se com a questão da condição humana (ARENDT, 2000).O professor ou professora que se depare com a morte de um aluno ou aluna terá que lidar com sentimentos e comportamentos individuais, únicos, seus e de seus alunos e familiares, e ao mesmo tempo, sentimentos e comportamentos universais (HELLER, 2013).Afora a família, as crianças têm a escola como lugar privilegiado de viver a infância. Mas como, sendo professor ou professora, apoiar crianças que perderam um colega? Como apoiar o professor ou professora que tem diante de si 25 crianças tentando entender e elaborar seus sentimentos frente à morte de um colega?A morte de uma criança da turma traz ao meio social uma nova situação para a qual os modelos próprios de espelhamento, imitação, exemplos de comportamento esperados e usuais
image/svg+xmlIlana LATERMAN e Regina SZYLITRIAEERevista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 16, n. 1, p. 320-340, jan./mar. 2021. e-ISSN: 1982-5587DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v16i1.14472323parecem não sustentar respostas suficientes. Vigotski (2018) explica o preponderante papel do meio social e cultural no desenvolvimento infantil. Explica que, quando no meio está presente a forma final da conduta em questão, com exemplos de como se faz naquela situação, a criança, aos poucos e por meio das interações sociais, modifica a conduta inicial, elaborando, até que, transformando o sentido do ocorrido, integra o modo de fazer para aquela situação. Escreve o autor: “[…] o meio é a fonte de todas as características especificamente humanas da criança. Se a forma ideal estiver ausente, não se desenvolverá a atividade, a característica, a qualidade correspondente na criança.” (VIGOTSKI, 2018, p. 87).No caso da morte de uma criança, que respostas nossa cultura tem a oferecer? Que modelos serão disponibilizados às crianças?A pesquisaA pesquisa cujos resultados são aqui apresentados e discutidos teve por objetivo investigar sobre os desafios na sala de aula e as ações pedagógicas diante da morte por doença de criança do Fundamental I,na perspectiva deprofessorasque viveram esta situação.Metodologia da pesquisaPesquisa do tipo qualitativo, exploratório (GIL, 2008), uma vez que há poucas referências nacionais, e mesmo internacionais, sobre a turma e seu professor/a de anos iniciais diante da morte de umcolega.Neste artigo são apresentados dados, análises, resultados e discussão obtidos por meio de estudo bibliográfico e de entrevistas com professoras de três escolas que passaram pela morte de um de seus alunos dos anos iniciais do ensino fundamental entre três e sete anos atrás. O critério de tempo estabeleceu-se para que houvesse um certo distanciamento emocional do ocorrido, mas sem recair no esquecimento dos detalhes.As professoras, no caso desta pesquisa,são professoras mulheres, generalistas em sua prática, referênciapara seus alunos e alunas,e responsáveis pela turma. Durante o ano letivo, a professora e a turma convivem diariamente, por quatro a cinco horas por dia, o que as leva a estabelecer vínculos significativos com seus alunos e a conhecer as respectivas famílias. Este fator, metodologicamente, é relevante, pois, em situações de perda e luto, o vínculo e as condições prévias de convivência são variáveis significativas (FRANCO, 2002).
image/svg+xmlAusência presente em sala de aula: a morte de um aluno/a e o cotidianoescolar na perspectiva de professorasRIAEERevista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 16, n. 1, p. 320-340, jan./mar. 2021. e-ISSN: 1982-5587DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v16i1.14472324Os dados obtidos nas entrevistas são analisados pela perspectiva de Bardin (2010) e discutidos a partir de autores da área de estudos de luto e morte, saúde, psicologia e educação, em uma perspectiva multidisciplinar para pensar sobre o cotidiano escolar. Entre os autores sobre luto e morte destacamos Shear, FrancoeKovacs.A criança e a escola são compreendidos a partir dos seguintes aportes: a) perspectiva histórico-cultural de Vigotski; b) entendimento de morte na condição humana como experiência universal e ao mesmo tempo particular e subjetiva (HELLER, 2013); c) compreensão da escola como um espaço em que as crianças vivem sua infância e inseparável das profundas experiências de vida (FREINET, 1996).As escolas escolhidas pelo sistema bola de neve (snowball sampling) tem por intenção possibilitar uma aproximação com o fenômeno. As escolas pesquisadas apresentam certa diversidade:uma escola pública, uma escola particular laica e uma escola particular de administração religiosa. Própria para a pesquisa qualitativa, adotamos a entrevista aberta, como propõe Minayo (2012),para obter informações sobre o tema segundo a visão dosentrevistadosnes.Análises e discussãoQuestões interdisciplinares sobre o luto surgiram a partir das análises dos conteúdos. O referencial construiu-se na inter-relação das áreas da educação, da psicologia e dos estudos do luto.A primeira questão que se apresenta neste diálogo interdisciplinar é: Caracteriza-se como situação de luto das professoras e/ou das crianças o que ocorre após a morte de criança da turma? Segundo Franco (2010),o luto é uma experiência subjetiva, porque dotada de significado, inserida em uma cultura e de determinações múltiplas. De acordo com a literatura na área (FRANCO, 2002; BARBOSA, 2010; entre outros), o luto depende do tipo de relação e vínculo estabelecido; da idade e do tipo de morte, da vivência durante o processo, dos recursos (afetivos, espirituais e rituais), entre outros aspectos próprios de cada situação de perda por morte. Estas variáveis influem na vivência da perda e do luto, e na percepção da situação, de si mesmo e dos outros envolvidos.A partir desta abordagem, decorrem outras questões sobre eventual existência de condições para que se torne um luto complicado. De acordo com Franco (2010), luto complicado caracteriza-se quando a pessoa experimenta uma desorganização prolongada que a impede de retomar suas atividadescom a qualidade anterior à perda. Luto complicado é um
image/svg+xmlIlana LATERMAN e Regina SZYLITRIAEERevista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 16, n. 1, p. 320-340, jan./mar. 2021. e-ISSN: 1982-5587DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v16i1.14472325conceito que contribui para as reflexões sobre as descrições das entrevistas. Outro conceito dos estudos é o de luto não reconhecido ou não autorizado (CASELLATO, 2013), que se caracteriza por não serreconhecido socialmente como tal. Ou seja, a dor da pessoa que o vivencia, e que, por exemplo, não é da família, pode não ser percebida, nem qualificada pelos que estão à sua volta. A professora que perde um aluno/a tem sua dor reconhecida e respeitada? Nesta pesquisaencontramos dados que nos fazem pensar sobre possibilidades de não reconhecimento do luto da professora,bem como napossibilidade de o luto tornar-se complicado nas turmas.Estas possibilidades indicam a importância de compreender o fenômenoa partir também dos estudos de luto.Prosseguimos a discussão buscando os desafios, os encaminhamentos e práticas reconhecidas pelas professoras como base de apoio para a vida cotidiana na sala de aula após o fato da morte.Contexto dos fatosNas escolas pesquisadas existem semelhanças e diferenças nos acontecimentos sobre o conhecimento da doença (pelas professoras), o momento da morte, a relação das professoras com a família, o recebimento da notícia pelas professoras, o envolvimento da equipe pedagógica. A partir daí as professoras e a equipe pedagógica se veem diante de dar a notícia para seus alunos e para a comunidade escolar, e mediar e orientar a sequência de eventos envolvendo seus alunos e as famílias na vida escolar.Ainda que em contextos diferentes, defrontar-se com o fato da morte concretamente parece ter impactado as professorasentrevistadaspelo inesperado da situação. Mesmo nos casos em que as informações seriam suficientes para considerar tal possibilidade, as professoras dizem da dificuldade em pensar na morte de uma criança. Este “evitar pensar”sobre a morte de criança, pode significartambém desafios naexpressaçãosobre ela. Como falar da morte? Com quem falar de morte?Helleret al.(2013) fizeram pesquisa com professores que tinham em suas salas de aula alunos em estado terminal, ou casos em que já havia ocorrido a morte, para compreender quais o conhecimento e o suporte que estes professores tinham. A pesquisatipo survey,feita nos EUA, contou com 190 sujeitos. A principal fontede suporte dos professores identificada dentro da escola foi a do enfermeiro da escola. Em segundo lugar, a dos colegas e, em terceiro, a do psicólogo escolar. Fora da escola, a rede de suporte foi, em primeiro lugar, a família; em segundo lugar, leiturase pesquisas na internet; em terceiro, outros amigos. Com
image/svg+xmlAusência presente em sala de aula: a morte de um aluno/a e o cotidianoescolar na perspectiva de professorasRIAEERevista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 16, n. 1, p. 320-340, jan./mar. 2021. e-ISSN: 1982-5587DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v16i1.14472326relação às crianças, o primeiro suporte na escola foi o orientador escolar, juntamente com a professora de sala de aula.No Brasil não encontramos estudos semelhantes, mas é possível afirmar que as escolas, com raras exceções, não têm a figura do enfermeiro escolar (BRASIL, 2019). As escolas estudadas nãocontavamcom serviço de enfermagem próprioou ações decooperação com a enfermagem do hospital que atendia às crianças. Ainda que seja comum haver postos de saúde públicos próximos a escolas públicas e particulares, tambémnão ocorreu trabalho cooperativo entre os postos de saúde e as escolas pesquisadas.Permanece a questão: com quem falar sobre a morte?Oprincipal sistema de apoio entre os professores pesquisados nos EUA é o da enfermageme, no Brasil, há a hipótese de que não temos este trabalho conjunto na maioria dos casos.Tem ficado clarocom este estudoque, lidar com a doença e morte de uma criança na escolase trata de buscar um conjunto depossibilidadesde apoio, de interlocutoresao professor e, talvez, programas e projetos de integração de áreas seja uma das possibilidades.Nas escolas pesquisadas, a notícia da morte docolegafoi dada às crianças pela professora e pela coordenadora ou aequipe pedagógica, juntas. A fala da profa. Anamostra a dificuldade em noticiar. Nesta fala, refere-se a esta dificuldade, que persistiu nas semanas seguintes, como uma notícia ainda não inteiramente absorvida:E aí chegou acho que em agosto, acho que foi 11 ou 12 de agosto ele veio a falecer. E daí foi muito complicado. Primeiramente para dizer para estas crianças o que tinha acontecido. Mas eu tentei fazer o mais simbólico possível. Que agora a gente não precisaria mais fazer cartinhas, que agora a gente poderia colocar o “Arno” em nosso pensamento, foi tudo desta forma, pra não chegar “ah o coleguinha de vocês morreu...” acho que eu não tinha nem condições de falar isso na época porque foi bem complicado. Então foi todo um trabalho assim de conversa mesmo, mas, eu sentia que não rolava. Eles estavam muito sentidos, muito, muito, muito, eu não conseguia atingir ... talvez até porque eu também não estava conformada, não conseguia passar essa segurança pra eles né. Então foi quando a Alda (nome fictício, professora da universidade cuja turma faria estágio docente na escola) veio aqui(Profa. Ana).Aldachegou à escola depois de três semanas do ocorrido. Psicóloga de formação, professora no curso de Pedagogia, tinha a escola A como campo de estágio docente.Afirma não ter sido chamada em função da situação; pelo contrário, tomou ciência quando chegou na escola. Mas, segundo a profa. Ana, foi sua intervenção junto à turma que permitiu a elaboração dos fatos e o acolhimento dos sentimentos presentes na turma. Disse ainda a profa. Ana que o fato de ter alguém lidando com as crianças, fazendo dinâmicas de expressão,
image/svg+xmlIlana LATERMAN e Regina SZYLITRIAEERevista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 16, n. 1, p. 320-340, jan./mar. 2021. e-ISSN: 1982-5587DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v16i1.14472327conversa e acolhimento, para o que ela mesma, naquele momento, não conseguia nem tranquilidade nem discernimento, a deixou mais tranquila, apaziguando seu sentimento de culpa, principalmente por ter envolvido afetivamente toda a turma na situação de doença do colega, com vídeos e cartas enquanto durou a internação, com rifa para o caixa da cirurgia, com a união através da qual a turma passou a incluir Arno(nome fictício da criança doente e que veio a falecer)em todos os momentos.Na Escola B, a notícia foi dada pela professora de Filosofia, também coordenadora, a profa. Bruna. Tratando-se, porém, de uma comunidade em que muitas famílias se conhecem o apenas da escola, mas de convivência social em outros espaços, sendo Beta(nome fictício da criança doente e que veio a falecer) irmã gêmea de um menino da turma e, ainda, filha de uma pessoa da equipe de gestão da escola, o envolvimento da escola inteira ocorreu. A notícia foi dada às crianças já em um outro espaço de sala, e imediatamente foram propostas e realizadas conversas e dinâmicas expressivas, como o desenho. O professor da aula de Religião também conversou com as crianças sobredúvidas na perspectiva da religião. A escola fez algum ritual em memória deBeta. Passado um ano de sua morte, deu seu nome à biblioteca.Vale aqui reproduzir a fala da professora da escola C:A coordenação subiu e aí contou que ela tinha ficado muito doente, que não resistiu... Aí teve aluno que chorou, aluno que ficou muito emocionado, e aí a orientação da coordenação pra mim é “leva eles pra uma sala, a gente tem uma sala de piso de madeira, que é a sala de balé com espelho, e vamos fazer desenhos. Vamos ver como reagem, conversar, fazer desenhos”.Daí teve alunos que choraram compulsivamente porque lembraram da morte do avô, da morte do cachorro, mas assim não mortes recentes... esse do avô tinha sido há 2 anos. Como isso desencadeia, né, a perda, sei lá, vai desencadeando coisas antigas ou a dor atual e ele precisa ter uma justificativa. Os desenhos encantadores. Desenhos frequentes, foi neste dia e a cada momento, a gente falava, a gente tocava no assunto(Profa. Celi).As professorasentrevistadasnos apresentam um contexto intenso, que causa uma interrupção na vida escolar tal como se dava até então. Para pensar sobre esta nova situação, o retrato inicial será abordado como início de um processo.
image/svg+xmlAusência presente em sala de aula: a morte de um aluno/a e o cotidianoescolar na perspectiva de professorasRIAEERevista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 16, n. 1, p. 320-340, jan./mar. 2021. e-ISSN: 1982-5587DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v16i1.14472328O processo de elaboraçãoA notícia da morte da criança para os colegas da sala de aula dá início a um novo momento na vida da turma e da professora. O que vem a seguir é um processo simultaneamente individual e coletivo. Ou seja, para cada criança e para a professora, a depender de seu vínculo com a criança falecida, a depender de sua amizade, além de cada história de vida e de perdas já vividas, das crenças da família sobre a morte e de sua atitude face a ela. Ademais, cada criança tem uma possibilidade cognitiva em lidar com esta informação e um modo de ser diante dos desafios emocionais. No entanto, além das questões individuais, o grupo de crianças junto com a professora formam uma unidade funcional. Com o objetivo comum de aprender, convivem diariamente, tendo já contraído vínculos, ocupando espaços e performances próprias no grupo. As mediações para o aprendizado, das ações pedagógicas, e dos cuidados, adquirem em situações de morte uma dimensão do humano explicitada. Se a educação assim mediada ensina às crianças o humano em nós (VIGOTSKY, 2001), diante de uma situação de morte a mediação é fundamental, é parte da atribuição de sentidos de vida.Este novo momento, que começa a partir da morte da criança e da notícia de sua morte, se apresenta como um processo. O modo como é passada a notícia da morte é importante; porém, o entendimento desta notícia, sua elaboração pelas crianças e, na verdade, pelos adultos, também é processual. Estetempoprocessual foi explicado pelas professoras nas entrevistas,ao reverem os acontecimentos. Aquilo que, por qualquer razão, não foi bem explicado num primeiro momento, foiretomado nos dias, nas semanas seguintes. As perguntas que forem respondidas no momento da notícia também virão à tona outras vezes nas semanas seguintes. Dias, semanas, meses. Ao que parece, o ano letivo fica marcado e a ausência torna-se presente por objetos, lembranças, por um ou outro colega que, em dado momento, comenta. Metzgar (1995) dá algumas indicações para informar a notícia na sala de aula de crianças. Sugere que o professor, ou quem dê a notícia, respire, se acalme. Pode ser que chore; neste caso, poderá mostrar que choramos e nos recuperamos. Considera ainda importante que se pense antes o que será dito e como será dito, para que isso ajude na difícil tarefa de dar a notícia da morte de uma criança. Quando falar sobre morte, continua Metzgar(1995), que se explique com clareza. As metáforas atrapalham, ensinaainda a autora,pois confundem a criança, que poderá associar, em sua fantasia, fatores da vida, como o sono,com a morte. É importante, afirma ainda, usar um vocabulário e compreensão próprios à idade das crianças,
image/svg+xmlIlana LATERMAN e Regina SZYLITRIAEERevista Ibero-Americana de Estudos em Educação,