image/svg+xmlO dispositivo pedagógico moderno e a criança-simulacro: Para pensar diferentemente a infânciaRIAEE– Revista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 17, n. 3, p. 1736-1754, jul./set. 2022. e-ISSN: 1982-5587 DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v17i3.15975 1736 O DISPOSITIVO PEDAGÓGICO MODERNO E A CRIANÇA-SIMULACRO: PARA PENSAR DIFERENTEMENTE A INFÂNCIAEL DISPOSITIVO PEDAGÓGICO MODERNO Y EL NIÑO-SIMULACRO: PARA PENSAR DISTINTAMENTE LA NIÑEZ THE MODERN PEDAGOGICAL DEVICE AND THE SIMULACRUM-CHILD: FOR A DIFFERENT WAY OF THINKING ABOUT CHILDHOOD Helena Almeida e Silva SAMPAIO1Luiz Guilherme AUGSBURGER2RESUMO: Este artigo, explorando a tensão entre a constituição de uma noção de infância governável e aquela força indômita da criança, que nos escapa, propõe reflexões sobre o conceito de criança em devir: a criança-simulacro. Para tanto, por um lado, a partir das noções de biopolítica, neoliberalismo e dispositivo trabalhadas por Michel Foucault, busca-se delinear como se forma um conceito de infância governável a partir do dispositivo pedagógico moderno, sobretudo em sua forma neoliberal. Por outro, explora-se a ideia de simulacro, devir e sua relação com as noções de criança, em Friedrich Nietzsche e Gilles Deleuze, escapando-se aos conceitos transcendentais e transcendentalizantes, para, por fim, propor reflexões acerca do conceito de criança como simulacro, sendo a própria noção algo em constante devir e imanência. PALAVRAS-CHAVE: Contemporaneidade. Dispositivo. Infância. Simulacro. RESUMEN: Este artículo, explorando la tensión entre la constitución de una noción de niñez gobernable y aquella fuerza indómita del niño, que se nos escapa, propone reflexiones sobre el concepto de niño en devenir: el niño-simulacro. Por lo tanto, por una parte, desde las nociones de biopolítica, neoliberalismo y dispositivo trabajadas por Michel Foucault, se busca trazar la formación de un concepto de niñez gobernable desde el dispositivo pedagógico moderno, sobre todo, en su forma neoliberal. Por otra, se explora la idea de simulacro, devenir y su relación con las nociones de niño, en Friedrich Nietzsche y Gilles Deleuze, huyéndose a los conceptos trascendentales y transcendentalizantes, para, por último, proponer reflexiones respecto al concepto de niño como simulacro, siendo la propria noción algo en constante devenir y inmanencia. PALABRAS CLAVE: Contemporaneidad. Dispositivo. Niñez. Simulacro.1Pontifícia Universidade Católica (PUC), São Paulo – SP – Brasil. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Filosofia. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6639-8670. E-mail: helenaalmeida@me.com 2Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), Florianópolis – SC – Brasil. Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Educação. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3136-9890. E-mail: luizg.augs@gmail.com
image/svg+xmlHelena Almeida e Silva SAMPAIO e Luiz Guilherme AUGSBURGERRIAEE– Revista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 17, n. 3, p. 1736-1754, jul./set. 2022. e-ISSN: 1982-5587 DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v17i3.15975 1737 ABSTRACT: Exploring the tension between the constitution of a notion of governable childhood and that child untamed power, this paper proposes reflections on the concept of a becoming childhood: the simulacra-child. Therefore, on the one hand, from the notions of biopolitics, neoliberalism, and dispositive studied by M. Foucault, it seeks outline how a childhood concept is formed as of the modern pedagogic dispositive, mainly on its neoliberal form. On the other hand, it explores the idea of simulacra, becoming, and their relations with child notions, from F. Nietzsche, and G. Deleuze, slipping out of transcendental and transcendentalizing concepts, to be proposed, finally, reflections on the concept of child as simulacra, being the notion itself in continuous becoming and immanence.KEYWORDS: Contemporaneity. Dispositive. Child. Simulacrum.Nota preambular Em “O enigma da criança”, Larrosa (2017) aponta uma ambiguidade em torno da infância em nosso tempo. As crianças são “esses seres estranhos dos quais nada se sabe, esses seres selvagens, que não entendem nossa língua” e, ao mesmo tempo, “a infância é algo que nossos saberes, nossas práticas e nossas instituições já capturaram: algo que podemos explicar e nomear, algo sobre o qual podemos intervir, algo que podemos acolher” (LARROSA, 2017, p. 229-230). A esse arranjo diverso de práticas, instituições e saberes que permite um governo da infância e a faz produtiva de acordo com certos critérios de verdade, chamamos de “dispositivo pedagógico”. Em sua forma contemporânea a nós, esse dispositivo propicia a gestão neoliberal da vida de uma criança, a capitalizá-la. A explosão de práticas discursivas e não-discursivas em torno da infância, no entanto, não impede que resida na criança uma potência indômita, que não se deixa apreender não só no plano material desse saber-poder infantil, mas num território conceitual e existencial. A criança, nesse sentido, diria respeito, segundo Larrosa (2017, p. 230), àquilo “que, sempre além de qualquer tentativa de captura, inquieta a segurança de nossos saberes, questiona o poder de nossas práticas e abre um vazio em que se abisma o edifício bem construído de nossas instituições de acolhimento”. O que exploraremos neste artigo, então, é justamente, por um lado, o modo como funciona esse dispositivo pedagógico moderno – em sua forma contemporânea a nós, produzindo e gestando uma infância capitalizada – e, por outro, como, diante disto, seria possível liberar, não só o sujeito-criança, mas também, e sobretudo, o conceito-criança, dos usos neoliberais e biopolíticos que se faz no interior desse dispositivo pedagógico. Para tanto, esse artigo estará divido em duas partes. Na primeira, exploramos elementos em torno do dispositivo pedagógico moderno e da infância contemporânea: as noções de poder e dispositivo, a partir de Michel Foucault; o funcionamento da biopolítica e as questões de
image/svg+xmlO dispositivo pedagógico moderno e a criança-simulacro: Para pensar diferentemente a infânciaRIAEE– Revista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 17, n. 3, p. 1736-1754, jul./set. 2022. e-ISSN: 1982-5587 DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v17i3.15975 1738 governo do indivíduo e da população que ela implica, explorados pelo mesmo autor; as diferenças dessa lógica de governo, em suas variações liberal e neoliberal, bem como suas reverberações sobre a infância (contemporânea). Na segunda parte, exploramos elementos em torno do simulacro, do devir e seus desdobramentos no conceito de criança: questões epistemológicas e ontológicas que envolvem as relações entre modelo, cópia e simulacro, especialmente em Platão; a reversão do platonismo ou a positivação do simulacro no pensamento (filosófico) contemporâneo, a partir de Gilles Deleuze e Friedrich Nietzsche; e, por fim, os desdobramentos disso no conceito de criança-simulacro. Dispositivo pedagógico e infância contemporânea Para explorar a ideia de dispositivo pedagógico moderno, antes, parece-nos prudente traçar aquilo que entendemos por dispositivo e como esse relaciona-se com a ideia de saber e poder (ou verdade e governo), a partir de Michel Foucault. Nos escritos do pensador francês, o poder não remete a uma teoria, nem se refere a uma “ideia”, a uma “substância” ou “identidade teórica” (FOUCAULT, 1975), como algo localizável em algum lugar ou pessoa. Trata-se sempre de uma “relação de poder” e, como tal, é um exercício, uma prática que se espraia e forma a trama do tecido social. O que se aplica tanto às relações e práticas educacionais institucionalizadas, quanto àquelas que, dentro e fora dos espaços educativos, dão forma e conduzem as crianças de modo menos institucional (e.g., propagandas direcionadas a crianças ou livros ‘manuais pedagógicos’ aos pais). O “poder”, desde onde o tomamos nesse artigo, “só existe em sua concretude, multifacetado e cotidiano” (MUCHAIL, 2017, p. 14). Em sua natureza cotidiana e multifacetada, o poder prescinde de uma unidade suprarrelacional ou metafísica, tampouco, dada a heterogeneidade das maneiras com que as relações de poder se dão, elas não podem ser reunidas em um conceito homogêneo ou generalizável, que se poderia particularizar aqui e ali. Por conta disso, evocamos a noção de “dispositivo”. A noção foucaultiana de dispositivo não concerne apenas às relações de poder e/ou a prática não-discursivas, ela também engloba o saber e as práticas discursivas. As práticas, estratégias, tecnologias e instituições de saber e poder é o que um “dispositivo estratégico” vai compreender. No dispositivo, pois, entrecruzam-se elementos heterogêneos desses, permitindo-se articular as práticas discursivas e não-discursivas, sem o intuito de amalgamá-las. Ele vai com isso admitir tanto a presença de efeitos de poder nas práticas discursivas, como também vai perceber os efeitos de verdade nas práticas de poder. Um exemplo disso está em Vigiar e Punir(FOUCAULT, 1975), onde o autor mostra o funcionamento de um dispositivo disciplinar
image/svg+xmlHelena Almeida e Silva SAMPAIO e Luiz Guilherme AUGSBURGERRIAEE– Revista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 17, n. 3, p. 1736-1754, jul./set. 2022. e-ISSN: 1982-5587 DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v17i3.15975 1739 e como suas dimensões de saber e de poder se apoiam e tensionam, sem resultar em síntese ou hierarquização delas. Ademais, Michel Foucault (1975, p. 162-163) explicita a heterogeneidade e a imanência da “invenção” desse dispositivo: [...] não deve ser entendida como uma descoberta súbita. Mas uma multiplicidade de processos muitas vezes mínimos, de origens diferentes, de localizações esparsas, que se recordam, se repetem, ou se imitam, apoiam-se uns sobre os outros, distinguem-se segundo seu campo de aplicação, entram em convergência e esboçam aos poucos a fachada de um método geral. As noções com que trabalha Foucault não existem de forma abstrata e genérica, mas sempre em seus usos específicos e plurais, de onde é possível depreendê-los e deslocá-los para outros contextos e/ou usos, fazendo as devidas adequações. O dispositivo pedagógico, como o pensamos a partir de Foucault, tem como condição de possibilidade a confluência de duas práticas ou estratégias de governo, que emergem, em tempo e ritmo distintos, em contraste com a lógica soberana, do ancien régime. É a partir do século XVII que o poder soberano – de fazer morrer e deixar viver –, cuja política da morte emanava da figura do rei e expressava-se através do suplício (público), vai dando lugar a um poder sobre a vida. Enquanto ao poder soberano escapavam-lhe coisas, tanto no nível do indivíduo quanto no nível da população, essa forma moderna de poder articulava tanto a disciplina dos indivíduos, quanto a estatística e os cálculos de probabilidade populacionais, permitindo um trato mais minucioso e/ou específico na gestão desses sujeitos. A essa nova forma de governo Michel Foucault (2004b) deu o nome de “biopolítica”. A biopolítica age ativamente sobre a vida – tanto individual quanto no nível da espécie humana –, buscando gestar e ampliar as forças dos sujeitos, a partir de um critério de governamentalidade. Esse critério, também chamado de veridicção, é o que permite definir quais práticas são verdadeiramenteadequadas, eficientes, correspondentes a uma lógica ou não; é o que permite, por exemplo, calcular quais estratégias de poder são desejáveis ou constituem um bom governo, ou não. Até a primeira metade do século XX, mas, sobretudo, ao longo do século XIX, esse critério de veridicção foi o mercado e seu sujeito, o Homo œconomicusliberal, sujeito de troca. O mercado, pois, constituía a lógica a partir da qual se podia avaliar a eficiência das práticas biopolíticas de então: não se tratava de alcançar uma sociedade ideal ou uma conduta ideal dos indivíduos, mas definir, a partir da realidade “natural” das populações, quais práticas tinham efeito desejado sobre a vida dos sujeitos, tornando-os produtivos. A partir da Segunda Guerra Mundial, houve uma alteração nessa lógica e foi a partir de um neoliberalismo – seja em sua forma alemã (ordoliberalismo), seja em sua forma estadunidense
image/svg+xmlO dispositivo pedagógico moderno e a criança-simulacro: Para pensar diferentemente a infânciaRIAEE– Revista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 17, n. 3, p. 1736-1754, jul./set. 2022. e-ISSN: 1982-5587 DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v17i3.15975 1740 (anarcoliberalismo) – que uma governamentalidade específica passou a se organizar. A veridicção a partir do mercado passou a um cálculo de rentabilidade e de investimento, a um jogo de produção e administração de liberdades, enquanto o sujeito deixou de ser aquele da troca e passou a ser aquele que entende a si mesmo como uma empresa. Quando arrastamos a biopolítica para o campo pedagógico, vemos atuar tanto tecnologias, cujo objeto é o corpo-indivíduo, quanto aquelas cujo objeto são as populações. Pelo viés da disciplina, pode-se posicionar o dispositivo pedagógico como o processo de fabricação de um sujeito dócil politicamente e economicamente útil, em que o corpo deixa de ser inapto, para tornar-se a máquina de que se precisa e que opera como se quer. Isso é produzido por meio de uma ação calculada e meticulosa, atenta aos detalhes, que “percorre cada parte do corpo, assenhora-se dele, dobra o conjunto, torna-o perpetuamente disponível e se prolonga, em silêncio, no automatismo dos hábitos” (FOUCAULT, 1975, p. 159-160). Assim, o poder disciplinar, que nasceu no século XVII e se desenvolveu ao longo do século XIX, fez aparecerem objetos novos: o olhar às insignificâncias, às miudezas, aos detalhes mais ínfimos e sutis no corpo individual. Tratou-se da invenção de uma anátomo-política em que “a coerção [...] estabelece no corpo o elo coercitivo entre uma aptidão aumentada e uma dominação acentuada” (FOUCAULT, 1975, p. 162), através de técnicas de descrição e documentação, de vigilância, de punição, de organização e disposição no espaço e no tempo. Foucault (1975) tomou o poder, tanto disciplinar quanto outras de suas formas, em seu caráter mais produtivo que repressivo. O poder disciplinar, por exemplo, exerce-se por e sobre indivíduos, em diversos espaços sociais, com o objetivo principal de produzir um corpo, antes de aniquilá-lo, e sempre com alguma margem de resistência dos sujeitos, caso contrário, a relação de poder converte-se em pura violência. O processo de individualização que se desdobra com o poder disciplinar também representa uma mudança no nível dos saberes, especialmente com a emergência da figura do Homem e das ciências humanas (FOUCAULT, 1966), mas também dos saberes com o radical “psico”. Eis aí, nas palavras de Michel Foucault (1975, p. 226-227, grifo do autor), [o] momento em que passamos de mecanismos histórico-rituais de formação da individualidade a mecanismos científico-disciplinares, em que o normal tomou o lugar do ancestral, e a medida, o lugar doestatuto, substituindo assim a individualidade do homem memorável pela do homem calculável, esse momento em que as ciências do homem se tornaram possíveis, é aquele em que foram postas em funcionamento uma nova tecnologia do poder e uma anatomia política do corpo. E se da Idade Média mais remota até hoje “a aventura” é o relato da individualidade, a passagem do épico ao romanesco, do feito importante à singularidade secreta, dos longos exílios à procura
image/svg+xmlHelena Almeida e Silva SAMPAIO e Luiz Guilherme AUGSBURGERRIAEE– Revista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 17, n. 3, p. 1736-1754, jul./set. 2022. e-ISSN: 1982-5587 DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v17i3.15975 1741 interior da infância, das justas aos fantasmas, se insere também na formação de uma sociedade disciplinar. As tecnologias disciplinares produzem não só um corpo, como também produzem a “normalidade” à qual um indivíduo poderia ser contrastado e avaliado. Uma vez o retrato da norma estabelecido, torna-se possível e necessário agir sobre os comportamentos dos indivíduos, tomados como “normais” ou “anormais” e, nesse segundo caso, sob os quais seria preciso agir de forma especial – seja para adequá-lo, seja para dele fazer um (mal) exemplo, de forma a subjetivar o desejo pelo normal. É nesse jogo de (a)normalidade que, sabidamente, os “saberes psi” tiveram e tem especial importância. Movidos por uma “vontade de verdade” sobre o Homem e, por conseguinte, sobre a criança, os saberes psi vão exercer um duplo papel. Por um lado, vão compor as ciências humanas e serão parte da invenção do homem moderno através de um cálculo de normalidade. Por outro lado, eles vão instaurar um saber, uma razão e um poder que farão parte da construção de um modo específico de infância: a infância, que num momento permitiu delinear o sujeito adulto, sendo o Outro deste (infância como negativado), agora será objeto e sujeito (positivado) de um poder e de um saber que agem sobre a criança a fim de tornar sua conduta normal(izada). A norma articula-se tanto com a disciplina quanto com os dispositivos de segurança. A norma, enquanto disciplina, não se regula pela lei. Por outro lado, a biopolítica, pelo viés da segurança, também fez outro uso da ideia “norma”. Diferentemente da noção disciplinar de norma, mais jurídica e individual, há uma concepção de norma mais voltada às práticas de governo e de segurança, cujo sujeito (e objeto) é a população. No texto “Políticas sociais, capital humano e infância em tempos neoliberais”, Bujes (2015, p. 267) escreve: Historicamente, a definição da população como um novo alvo do exercício do poder articulou-se à percepção de que as regras jurídicas que até aí permitiam governar não mais satisfaziam, o que implicou que a racionalidade política que marcava o biopoder fizesse aparecer um novo tipo de regra, uma regra natural: as normas. No século XVIII, a norma atrela-se à população. O conceito de população passou a designar um conjunto de viventes com fenômenos e problemas próprios (e.g., saúde, mortalidade, natalidade, longevidade, raça) e em relação ao meio (e.g., urbanismo e ecologia), o que implicou em práticas governamentais perpassadas por mecanismos de previsão, de estimativa estatística e de noções globais de governo (FOUCAULT, 2004a, 2004b). Nesse outro nível, o poder e o saber não agem para alcançar um estado perfeito ou um corpo ideal, mas, dentro de certa margem de fluxo e variação, alcançar o equilíbrio populacional (homeostase) e
image/svg+xmlO dispositivo pedagógico moderno e a criança-simulacro: Para pensar diferentemente a infânciaRIAEE– Revista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 17, n. 3, p. 1736-1754, jul./set. 2022. e-ISSN: 1982-5587 DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v17i3.15975 1742 uma gestão dos comportamentos que os torne rentáveis. Distinto da lógica puramente disciplinar, em que os corpos são produzidos de forma a comportarem-se, individualmente, de uma determinada maneira produtiva, a biopolítica sobre a população vai tomar os fenômenos e comportamentos próprios à população e convertê-los em produtivos, em um nível coletivo (FOUCAULT, 2004a). Essas tecnologias asseguraram, no desenvolvimento do modo de produção capitalista, a gestão da população e seus fenômenos próprios em consonância com um controle dos corpos dentro da lógica produtiva e social liberal e, depois, neoliberal. Para Foucault (2004a) seria impossível dissociar (neo)liberalismo de biopolítica, ao menos se entendermos aquelas noções para além da esfera meramente econômica e a pensarmos no campo do governo (i.e., da condução das condutas). Isso posto, liberalismo e neoliberalismo, mutatis mutandis, deram ao sujeito econômico um lugar de destaque, ao fazer do Homo œconomicusuma categoria que extrapolasse o âmbito, stricto sensu, econômico. Esse sujeito (neo)liberal foi transposto a um patamar mais amplo de análise, sobretudo aquele da governamentalidade, o que permitiu a Foucault (2004a, 2004b) também tomar liberalismo e neoliberalismo como noções concernentes ao âmbito do governo. Entretanto, vale notar que, se no liberalismo (clássico) do século XVIII e XIX, o Homo œconomicusfora tomado, coletivamente, como população e objeto da estatística e, individualmente, como sujeito de troca; a partir da segunda metade do século XX, no neoliberalismo – seja ordo ou anarcoliberal –, o Homo œconomicusganhou outros contornos, dando-se-lhe o lugar de sujeito econômico ativo. Doravante, com a passagem de uma sociedade pensada como “supermercado” a uma entendida como “empresa”, “o Homo œconomicus[...] não é o homem de troca, não é o homem consumidor, é o homem da empresa e da produção” (FOUCAULT, 2004a, p. 152). Desse deslocamento econômico-social deriva-se um redobramento da ação governamental. Se o sujeito biopolítico liberal fora fundamentalmente passivo e coletivo, por demanda do próprio jogo de trocas do mercado e seus mecanismos econômicos, o sujeito neoliberal foi pensado como ativo e hiperindividualizado, ainda que, evidentemente, inserido em relações com outros indivíduos. As práticas do sujeito já não teriam mais alicerce em algo externo a suas próprios práticas, havendo o esvaziamento de uma moral (estrita e do dever) e sua substituição por uma ética e uma veridicção empresarial, “que permite analisar todos esses comportamentos em termos de empresa individual, de empresa de si com investimentos e rendas” (FOUCAULT, 2004a, p. 237). Em seu ensaio sobre a sociedade neoliberal, P. Dardot e C. Laval (DARDOT; LAVAL, 2010, p. 413, grifo do autor) ironizam tal ética: “pode-se dizer
image/svg+xmlHelena Almeida e Silva SAMPAIO e Luiz Guilherme AUGSBURGERRIAEE– Revista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 17, n. 3, p. 1736-1754, jul./set. 2022. e-ISSN: 1982-5587 DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v17i3.15975 1743 que o primeiro mandamento da ética do empreendedor é ‘ajuda-te a ti mesmo’ e que essa ética é uma ética do ‘self-help’.” Nessa ética da autoajuda, que, de um preceito moral no século XVIII, convertera-se em lógica de governo, a “autoavaliação” estabeleceu-se como elemento estratégico dessa codificação do mundo através do ethos da “empresa de si” e da ascese do desempenho performático e do desenvolvimento de habilidades. Essa codificação, por sua vez, ganhou espaço não só na vida adulta, mas começa em um precoce exercício de educação empresarial, empreendedora ou voltada ao “mercado de trabalho” sobre as crianças (LAVAL, 2019). Outro aspecto importante da biopolítica no governo neoliberal, é: [...] que no horizonte de uma análise como essa, o que aparece não é de forma alguma o ideal ou o projeto de uma sociedade exaustivamente disciplinar na qual a rede legal, encerrando os indivíduos, seria substituída e prolongada do interior por mecanismos, digamos, normativos. Tampouco é uma sociedade na qual o mecanismo de normalização geral e da exclusão do não-normalizável será requirido. Ao contrário, nesse horizonte, a imagem ou ideia ou tema-programa de uma sociedade na qual haveria otimização dos sistemas de diferença, na qual o campo seria deixado livre aos processos oscilatórios, na qual haveria uma tolerância acordada aos indivíduos e às práticas minoritárias, na qual haveria uma ação não sobre os jogadores do jogo, mas sobre as regras do jogo, e, enfim, na qual haveria uma intervenção que não seria do tipo de assujeitamento interno dos indivíduos, mas uma intervenção de tipo ambiental (FOUCAULT, 2004a, p. 265). No lugar do foco em uma normatividade sobre o indivíduo, uma ação sobre a oscilação da população; agir sobre as regras, não sobre os jogadores diretamente. Desse modo, o ponto nodal da ação governamental neoliberal é atuar sobre o meio, em vez de algum tipo de ação (de assujeitamento) direta sobre os corpos. E nesse ínterim, os saberes psi passaram a atuar de forma a intensificar os efeitos e prolongar o alcance da subjetivação do ethos empresarial, permitindo aos indivíduos serem sujeitos desse tipo de governo – Homo œconomicusgovernáveis nessa lógica biopolítica neoliberal. Essa espécie de mergulho na psiquê, no entanto, não representa um assenhorar-se de um sujeito doravante passivo. O que está em jogo aí é uma espécie de empoderamento de si, a partir da verdade de um sujeito que é agente em um jogo econômico de produção e consumo de liberdades (ROSE, 1998). É sob o signo dessa lógica de governo neoliberal que o dispositivo pedagógico e a gestão da infância dão-se em nossa contemporaneidade, como exploraremos mais especificamente a seguir. No entanto, vale ressaltar que as tecnologias de população e indivíduo, de segurança e disciplinar, são mecanismos que não atuam no mesmo nível, muito embora se articulem, sem se excluir – corpo e população, funcionando como uma espécie de polos de um governo que se
image/svg+xmlO dispositivo pedagógico moderno e a criança-simulacro: Para pensar diferentemente a infânciaRIAEE– Revista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 17, n. 3, p. 1736-1754, jul./set. 2022. e-ISSN: 1982-5587 DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v17i3.15975 1744 exerce sobre a infância. Àquilo que chamamos de “dispositivo”, Márcio Danelon (2015) chama “máquina de guerra”. É essa máquina de guerra/dispositivo que o neoliberalismo evoca quando se lhe põe o problema (do governo) da infância: O que fazer com esse problema chamado infância? É isso que a educação tem que resolver [...]. A cada infância que surge com o nascimento é preciso usar a máquina de guerra para apreendê-la, para construir um saber sobre a infância – e definir o que ela é –, determinar as suas necessidades – definir o que ela será. A cada nascimento usamos a máquina de guerra para torná-la um igual a nós, uma identidade, eliminando assim, sua estrangeiridade e sua novidade (DANELON, 2015, p. 218). Frente a estrangeiridade da criança, o dispositivo pedagógico: um arranjo de tecnologias, estratégias, práticas (discursivas e não-discursivas) posto em ação para domesticar essa força. Em seu aspecto disciplinar, ele implica uma dimensão dizível ou das práticas discursivas (Pedagogia) e uma dimensão visível ou das práticas não-discursivas (escola). Beltrão (2000, p. 70, grifo da autora), nesse sentido, diz que: [n]o que se refere à Pedagogia e à escola [...], apesar da junção das duas formas, a “encontros forçados” entre ambas, “encontros” que possibilitam produzir a verdade sobre educação. Esses “encontros forçados” é que permitem que uma retire segmentos da outra: a Pedagogia utiliza os quadros, os programas, os exercícios, as forças taticamente compostas, a vigilância, a punição e o exame que a escola vai construindo para extrair deles seu saber- discurso. Por sua vez, a escola utiliza os enunciados pedagógicos para, em nome deles, sofisticar aperfeiçoar e dar cientificidade a todas essas técnicas de sujeição e objetivação que o seu saber- máquina realiza. Desse encontro, heterogêneo e nem sempre harmônico, entre discursivo e não-discursivo emergem os contornos modernos da educação e, por conseguinte, de seu disposto (ou máquina de guerra). Um discurso da infância associado à imagem da criança frequentadora de umaescola e que tanto disciplina-a, vigia-a e a avalia em prol de um vir-a-ser aluno e, depois, adulto; quanto as permite gerível em um nível macro, em que elas formam um corpo coletivo, passível de estatísticas e cálculos de probabilidade. Uma maquinaria que ordena multiplicidades difusas (e confusas) em individualidades personalizadas, para formar, finalmente, um quadro vivo de sujeitos únicos (ainda que multifuncionais) e, ao mesmo tempo, organizável em arranjos de performancese habilidades – dos sujeitos e das tecnologias educacionais. Contudo, se em dado momento essa domesticação tinha um sentido mais estrito e direto – o disciplinamento dos corpos individuais aparece nitidamente no surgimento da escola moderna e no saber pedagógico –, em nossa contemporaneidade, ela adquire um tom mais sutil,
image/svg+xmlHelena Almeida e Silva SAMPAIO e Luiz Guilherme AUGSBURGERRIAEE– Revista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 17, n. 3, p. 1736-1754, jul./set. 2022. e-ISSN: 1982-5587 DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v17i3.15975 1745 insidioso e indireto. O que vemos apresentar-se com a pedagogia – a condução da infância – mais atual e inovadora são aquelas em que a criança ganha autonomia, o tempo deve tornar-se lúdico e o espaço motivador do desenvolvimento de suas habilidades, inclusive aquelas socioemocionais. Ora, o que mostram Silva e Souza (2009), por exemplo, é que a “autonomia” que se imputa às crianças é muito próxima àquela da “responsabilidade empresarial” do Homo œconomicus neoliberal – ativo, hiperindividualizado, empresa de si. No mesmo escopo, M. Bujes (2008) vai indicar que a ação das pedagogias sobre o espaço-tempo da educação infantil diz respeito a um cuidado com o meio símil, para não dizer o igual, àquele das estratégias neoliberais de controle indireto ambiental. A individualização da criança (MARCHI, 2007), sob o regime neoliberal, atinge outras dimensões. Seu governo, então, vai refinando-se mais e mais: as punições físicas vão sendo substituídas pela medicalização dos corpos, as almas vão sendo psicologizadas e os desejos mercantilizados. Esses sujeitos-crianças-adultos-pacientes-clientes vão sendo atravessados por discursos que prometem a cura e/ou ganho performático. E assim, pouco a pouco, as diferenças em vez de homogeneizadas para tornarem-se úteis, são utilizadas em sua diversidade, por meio da customização da vida. A normalidade já não é do campo moral, mas econômico – se produtivo, normal. Nesse jogo de (a)normalidade que, sabidamente, os saberes psi tiveram e têm especial importância, e onde, também, a criança passa a ter um lugar especial na constatação da patologia ou desvio: A infância como fase histórica do desenvolvimento, como forma geral de comportamento, torna-se o instrumento maior da psiquiatrização. E direi que é pela infância que a psiquiatria veio a apropriar-se do adulto e da totalidade do adulto. A infância foi o princípio da generalização da psiquiatria; a infância foi, na psiquiatria como em outros domínios, a armadilha para adultos (FOUCAULT, 1999, p. 286-287). Ser portador de um vestígio qualquer de infantilidade significava ser compreendido como patológico. Ao mesmo tempo em que, doravante, com o advento do self-made man, desdobra-se toda uma literatura em que a saúde (leia-se, saúde para uma boa performance) advém da reconexão com a criança interior. A criança, então, fica capturada nos dois polos do dispositivo: é signo de doença e parte da tecnologia de uma saúde para o bom desempenho. A criança é tomada na articulação entre saberes “psi” e saberes pedagógicos, tanto em um nível individual quanto populacional. Atua, aí, tanto a norma e a exclusão do anormal em função de um modelo de criança (e de adulto) a ser subjetivado em cada um; quanto nos cálculos estatísticos e de investimento (estatal e privado), por meio da inclusão da anormalidade nos
image/svg+xmlO dispositivo pedagógico moderno e a criança-simulacro: Para pensar diferentemente a infânciaRIAEE– Revista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 17, n. 3, p. 1736-1754, jul./set. 2022. e-ISSN: 1982-5587 DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v17i3.15975 1746 fenômenos populacionais, tornando as condutas infantis desviantes, parte do jogo do mercado e das políticas públicas. Embora o dispositivo pedagógico seja evidente na escola, sua atuação a extrapola, assim como sua composição excede o campo dos saberes estritamente escolares. O “pedagógico” do dispositivo, inclusive, é muito mais amplo que o estritamente pedagógico e cada vez mais composto por coisas externas ao campo da Educação. Alguns autores apontam o que seria uma espécie de colonização do pedagógico pelo discurso empreendedor e pelo modus operandi do mercado: aprendizagem, eficácia, flexibilidade, informação, inovação, interatividade, motivação, problema-solução, profissionalismo, qualidade, rede, utilidade etc. (BIESTA, 2017; LARROSA, 2019; LAVAL, 2019). O ethos empresarial adentra a instituição escolar e o saber pedagógico, expressando-se fortemente sobre a dinâmica da performance, sobre o que Masschelein e Simons (2014, p. 114) escrevem: Com o advento da performatividade, o impulso competitivo converte-se em um fim em si mesmo e se cria uma cultura da prova e do espetáculo e, evidentemente, uma corrida em tudo e para tudo. As palavras-chave de uma sociedade baseada no rendimento são bem conhecidas: mais rápido é melhor; mais é melhor; parar é retroceder. Pensemos na mentalidade de rendimento que permeia o mundo dos carros, dos computadores e, também, dos pesquisadores [...]. A obsessão com resultados de aprendizagem e com os ganhos na aprendizagem se poderia considerar como equivalente educativo de tudo isso. Assim como o chicote da eficiência e da eficácia deriva na instrumentalização [...], o chicote da performatividade conduz ao controle. O dispositivo pedagógico moderno não é um aparelho restrito ao interior da instituição escolar, ele faz parte da frenética e multilateral atualização dos aparatos de Estado e outras instâncias de gestão social e econômica. Ele abarca uma variada gama de estratégias e hábeis máquinas de captura que buscam governar a infância. Em suma, ante à força desconcertante da infância, a modernidade inventou um dispositivo – pedagógico, chamamos aqui – complexo e multifacetado para capturá-la. Assim o descreve J. Larrosa (2017, p. 230): A infância é algo que nossos saberes, nossas práticas e nossas instituições já capturaram: algo que podemos explicar e nomear, algo sobre o qual podemos intervir, algo que podemos acolher. A infância, desse ponto de vista, não é outra coisa senão objeto de estudo de um conjunto de saberes mais ou menos científicos, a coisa apreendida por um conjunto de ações mais ou menos tecnicamente controladas e eficazes, ou a usuária de um conjunto de instituições mais ou menos adaptadas às suas necessidades, às suas características ou às suas demandas. Nós sabemos o que são as crianças, ou tentamos saber, e procuramos falar uma língua que as crianças possam entender enquanto tratamos como elas, nos lugares que organizamos para abrigá-las.
image/svg+xmlHelena Almeida e Silva SAMPAIO e Luiz Guilherme AUGSBURGERRIAEE– Revista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 17, n. 3, p. 1736-1754, jul./set. 2022. e-ISSN: 1982-5587 DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v17i3.15975 1747 Ainda que se disponha de um largo rol de refinados saberes, práticas e instituições para a infância, as crianças não são meros efeitos desse dispositivo. Ao mesmo tempo em que a infância captura a criança e faz dela um sujeito neoliberal, governável, a criança é um “outro”, ou seja, “aquilo que, sempre além de qualquer tentativa de captura, inquieta a segurança de nossos saberes, questiona o poder de nossas práticas e abre um vazio em que se abisma o edifício bem construído nossa instituição.” (LARROSA, 2017, p. 230). Simulacro, devir e criança A ideia de norma passa epistemologicamente e ontologicamente, inescapavelmente, pela figura do modelo e pela questão da semelhança, que podemos chamar de jogo da representação. Nesse jogo os corpos materiais são submetidos a assemelhar-se a um modelo que eles reapresentam. Ainda que se reconheça que o modelo tenha variações históricas, ele produz uma intrusão de maior ou menor grau num plano de transcendentalidade, em que o que o corpo precisa corresponder a algo fora de seu próprio plano de existência, seja esse fora do âmbito mais das ideias, dos conceitos ou, ainda, das palavras. Uma das filosofias fundantes, senão afilosofia fundante, do jogo da representação e do modelo foi a platônica. N’A República de Platão (2018) está uma das alegorias mais célebres da filosofia: a alegoria da caverna. É nesse diálogo em que o filósofo ateniense expõe elementos fundamentais de sua epistemologia e ontologia. Analisando o jogo feito na alegoria entre as figuras do Sol, da caverna e das sombras, Paulo Ghiraldelli (2009, p. 79) afirma: O que está em jogo são as distinções entre o mundo inteligível, que no limite é banhado pelo Sol, que faz o papel do bem, e o mundo sensível e ilusório, que é o mundo representado, na alegoria, pelas sombras. Todos os homens estão, é claro, no mundo sensível. Andam, comem, dormem – assim vivem no mundo que é continuamente mutável, do fluxo de alternância, que Heráclito viu como sendo o mundo real. Ora, é um mundo existente, porém imperfeito. O mundo imutável, o que se pode chamar de real, não é uma realidade perfeita; no entanto, neste mundo, com o os pés no chão, pode-se captar a que está na realidade não sensível, no mundo real daquilo que não muda: o lugar das formas. Todas as formas estão ali, reais, e o ambiente é alimentado e mantido por uma das formas, a forma do bem — que, na alegoria da Caverna, é o Sol. A tensão ontológica que se expõe aqui, segundo o intérprete, é aquela clássica entre o mundo sensível e o inteligível, entre o que é a realidade perfeita, do mundo das Ideias, e aquela imperfeito, do mundo das cópias. Já o aspecto epistemológico é aquele em que o ser humano caminha entre esses dois mundos. Ao sair da caverna, o indivíduo saía da condição de sombra, que antes tomava como realidade, e, vendo as coisas iluminadas pela luz do Sol, ascendia a um
image/svg+xmlO dispositivo pedagógico moderno e a criança-simulacro: Para pensar diferentemente a infânciaRIAEE– Revista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 17, n. 3, p. 1736-1754, jul./set. 2022. e-ISSN: 1982-5587 DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v17i3.15975 1748 novo plano, o inteligível. Assim, Platão mostraria um caminho a ser percorrido até se chegar ao conhecimento da verdade, pela contemplação da ideia de Bem. Essa divisão (sensível/inteligível, ideias perfeitas/cópias imperfeitas, essência/aparência) é onde se costuma colocar a tônica da leitura do livro VI d’A República (PLATÃO, 2018), desde onde a questão ontológica – essência do ser – costuma dar lugar à questão (ascética) da epistemologia – acesso à verdade do ser. Na perspectiva platônica, são os objetos do mundo inteligível, por sua ordem e estabilidade, que permitem o conhecimento verdadeiro, enquanto os objetos do mundo sensível, por sua vez, fazem o conhecimento inviável, dada sua imersão na instabilidade, misturas e transformações constantes. Os objetos inteligíveis (modelos), então, coordenariam os objetos sensíveis (cópias), tornando possível um conhecimento da essência das coisas – em sua ordem e limites – a partir do contato com o sensível. Contudo, as cópias que para Platão (2018) seriam válidas para esse acesso à verdade seriam aquelas que, ainda que imperfeitas, manteriam um mínimo de semelhança com o modelo, permitindo assim, extraí-la (ou abstraí-la) de sua imperfeição, submetendo-a ao jogo da identidade e do ser e, assim, remetendo-a a uma essência única, verdadeira e estável. Aos objetos que escapam à representação, ou seja, à possibilidade de serem remetidos a um modelo, Platão (2018) chamou de “simulacro”. Quando essa cópia sem modelo, justamente pela ausência de modelo, não se deixa subjugar à estabilidade do ser e não interioriza um nível mínimo necessário de semelhança, ela deve ser desprezada (ou esconjurada) no caminho de ascese à verdade, em favor das boas cópias. Comumente o centro de gravidade do platonismo é posto na relação entre modelo e cópia, por conseguinte, sua reversão dar-se-ia pela sujeição do mundo inteligível ao mundo sensível. Porém, em Diferença e repetição, Gilles Deleuze (2011, p. 166) propõe um deslocamento no cerne da “verdadeira distinção platônica”, dizendo que “ela não está entre o original e a imagem, mas entre dois tipos de imagens. Ela não está entre o modelo e a cópia, mas entre dois tipos de imagens (ídolos), cujas cópias (ícones) não são senão o primeiro tipo, sendo a outra constituída pelos simulacros (fantasmas).” Assim, o ponto de reversão estaria, de fato, na relação entre representação e simulacro, ou seja, na impossibilidade de ele funcionar adequadamente no interior do esquema em que o modelo sujeita a cópia (imperfeita) pela identidade e estabilidade (de sentido). Em “Platão e o simulacro”, Deleuze (1969) expõe o efeito da lógica dialética na qual seria possível prolongar o esquema da representação, do modelo à cópia mais imperfeita e vice-versa, salvo quando essa “cópia” não carregasse um grau mínimo de semelhança, ou seja, quando sua degradação ou imperfeição alcançasse o grau de “simulacro”. A função maior do
image/svg+xmlHelena Almeida e Silva SAMPAIO e Luiz Guilherme AUGSBURGERRIAEE– Revista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 17, n. 3, p. 1736-1754, jul./set. 2022. e-ISSN: 1982-5587 DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v17i3.15975 1749 método de divisão platônico não seria, pois, estreitar a distância entre o mundo inteligível e sensível, mas apartar o pensamento de seu risco maior: as más cópias, os simulacros. A divisão, latente, entre cópia e simulacro, instalaria um ponto crucial para a filosofia platônica, qual seja, aquele da condição de possibilidade de um conhecimento verdadeiro. Tamanha a força do simulacro que Platão (2018) não encontra outra saída para lidar com ele senão sua exclusão, como exposto acima. Daí que a tarefa da filosofia contemporânea passaria, para Deleuze, necessariamente pelo simulacro, pelo corte que ele produz no mundo sensível e na relação com a verdade: [...] o simulacro implica grandes dimensões, profundidades e distâncias que o observador não pode dominar. É porque ele não as domina que experimenta uma impressão de semelhança. O simulacro inclui em si o ponto de vista diferencial; o observador faz parte do próprio simulacro, que se transforma e se deforma com seu ponto de vista (DELEUZE, 1969, p. 298). O vão que o simulacro abre na epistemologia platônica implica, ao mesmo tempo, um estreitamento – e mesmo uma eliminação – da distância entre sujeito e simulacro, que se transforma e deforma juntamente ao ponto de vista. Essa transformação e instabilidade indomável colocada pelo simulacro faz com que todo o platonismo (e seus herdeiros) seja dominado por uma espécie de obsessão contra o simulacro, precisando sempre de uma distinção entre esse e “a coisa mesma”. No entanto, a proposto de uma filosofia da diferença deleuziana vai noutro sentido, propondo, assim, a “reversão do platonismo”, ou seja, “recusar o primado de um original sobre a cópia, de um modelo sobre a imagem. Glorificar o reino dos simulacros e dos reflexos” (DELEUZE, 2011, p. 92). O simulacro assim é algo que existe a despeito ou independentemente da existência de um plano de transcendência – mundo inteligível, no caso de Platão – que coordenaria o plano da matéria ou do sensível. Os simulacros são os indóceis, a margem ilimitada e mutante que não se deixa efetivamente conformar e fixar contornos. A existência do simulacro, assim, dá-se num “plano de imanência” – plano cujas regras, ordens e fundamentos residem em si mesmo (e não em um plano exterior e transcendente). Sem esse plano de transcendência, o simulacro não possui vínculo ou dependência de um ser (essência estável), ainda que “virtual” (e.g., o ser da árvore que virtualmente coordenaria o vir-a-ser da semente). No plano de imanência, em que sujeito e objeto se misturam, o simulacro existe enquanto devir (i.e., num perpétuo entre-ser, quase-ser ou “?-ser”) (DELEUZE, 2011). Por fim, na reversão do platonismo, há uma reversão do estatuto do próprio (conceito de) simulacro. Para Platão (2018), o simulacro constitui o avesso da filosofia: uma cópia
image/svg+xmlO dispositivo pedagógico moderno e a criança-simulacro: Para pensar diferentemente a infânciaRIAEE– Revista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 17, n. 3, p. 1736-1754, jul./set. 2022. e-ISSN: 1982-5587 DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v17i3.15975 1750 malfeita, e mesmo uma má cópia, que se furta a qualquer modelo real, ludibriando o sujeito do conhecimento e inviabilizando a ascese à verdade. Em Deleuze (2011, 1969), o simulacro ganha um estatuto novo e passa a ser um conceito impulsionador do pensamento filosófico, como o explica Favreto (2012, p. 161): “O simulacro não corresponde nem à Cópia, como reprodução, e nem à Ideia, como modelo, já́que não traz vinculado em seu âmago a representação”. Portanto, a reversão do platonismo não é apenas a “transvaloração dos valores”, mas a abertura da filosofia ao pensamento “sem imagem”, ao pensar sem modelo(s) e onde a criação sobrepõe-se à representação. Valendo-se do pensamento do filósofo alemão Friedrich Nietzsche, Gilles Deleuze vai aproximar simulacro e eterno retorno (do mesmo), o que parece paradoxal: como poderia o simulacro, esse conceito selvagem e arredio a todo modelo, ligar-se ao Eterno Retorno do Mesmo? A ideia de “eterno retorno” consiste em uma repetição eterna do mesmo, como em Nietzsche; mas, o que seria este mesmo? Retornamos aqui à Diferença. Poderíamos, assim, dizer que o que há é um “eterno retorno da Diferença”, já que é a Diferença que sempre retorna como multiplicidade, que sempre se repete singularmente. O simulacro pode ser, assim, concebido como a própria Diferença, pois se reconhece nele uma potência capaz de se manifestar como acontecimento. O Acontecimento se compreende como a manifestação da singularidade, já que nenhum acontecimento é igual ou semelhante ao outro, tudo o que acontece é novo e único (FAVRETO, 2012, p. 161, grifo do autor). Ainda que o tema desse texto não coincida com aquele central de Diferença e Repetição, o pensamento deleuziano parece ajudar-nos na medida em que o processo de “diferenciação” – esse acontecimento em que a diferença repete como único mesmo possível – é, fundamentalmente, um processo de criação. Assim, o simulacro é a dissimilitude, singularidade, a própria diferença e, portanto, aquilo que nos permitiria um pensamento criador. O que Deleuze (2011) faz é apenas um dos modos possíveis de seguir o que indica F. Nietzsche (2011, p. 29): “achar delírio e arbítrio até no mais sagrado.” Ainda que nos afastemos do uso deleuziano do eterno retorno do mesmo nietzscheano, esse conceito ainda nos seria de grande valor. Afinal, para Nietzsche (2011), apenas aquilo que é forte o suficiente é capaz de retornar, somente aquilo que há de mais nobre volta a ser eternamente. E o que mais seria nobre e forte para o pensamento nietzscheano que a criação? O Mesmo em Nietzsche (2011), parece-nos, não poderia deixar de passar pela questão do novo, ainda que essencialmente o mesmo. Ora, o simulacro é esse conceito que dá vazão ao eterno retorno, que permite a não cristalização do sensível por subordinação ao inteligível. Qual a figura, em Nietzsche, então, carregará a potência criativa em último grau? A
image/svg+xmlHelena Almeida e Silva SAMPAIO e Luiz Guilherme AUGSBURGERRIAEE– Revista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 17, n. 3, p. 1736-1754, jul./set. 2022. e-ISSN: 1982-5587 DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v17i3.15975 1751 criança! Afinal, a criança, em Nietzsche (2011), pode fazer aquilo que o leão e o camelo jamais poderiam. Ela pode a criação – jogando com o mundo e com um esquecimento ativo, abrir espaço no já dado ou instituído, para que outra coisa possa ganhar lugar. Seja a partir de um conceito biológico de criança, ou seja, a partir de práticas atreladas à criança psicopedagogizada, medicalizada, mercantilizada, culturalizada etc., instituiu-se com isso a criança (i.e., um indivíduo que é efeito de um modelo de criança e que se assujeita aos ditames que a tratam como um sujeito/objeto da infância). Contrariando essa infância-modelo, propomos abdicar dos ideais e as mais variadas categorizações infantis e seus efeitos, para então, ao invés de se tentar definir acriança e enunciar o que ela é, abrir espaço àquilo que ela pode. A contraposição d’acriançaa umacriança, entanto que potência – criança-potência e devir criança – já foi explorada por vários autores e autoras (CORAZZA, 2008; DELEUZE; GUATTARI, 1980; KOHAN, 2010; ORLANDI, 2018). Nessa perspectiva, pode-se enunciar uma criança-potência (ou potência de criança) capaz de brincar e de suspender o tempo cronológico, o tempo funcional, suspender “o que é” e “o que deve ser” e ainda, aquela que pode acessar o tempo aiônico (HERÁCLITO, 2017), o tempo do jogo e, por que não, o tempo do simulacro. Eis então, a possibilidade de umacriança-potência tornar-se parte da ordem do simulacro, do devir (ou do entre-ser). Uma vez que o “simulacro não é uma cópia degradada, ele contém uma potência positiva que nega o original e a cópia, e o modelo e a reprodução” (DELEUZE, 1969, p. 303), a criança pensada a partir do simulacro, no entanto, ademais de não existir como a criança e como potência para o pensamento, seria uma derradeira abertura para a imanência. Em vez de estar sujeitado a um modelo, a ser cópia, a criança-simulacro é sempre um conceito em devir. A questão aqui, no entanto, não seria tanto a de um devir-criança que, arrastando para aquém/além da territorialidade maior do adulto, levar-nos-ia a pensar, existir, experimentar diferentemente, independentemente da idade daquele que entraria em devir (DELEUZE; GUATTARI, 1980). Se positivamos o simulacro, e não o entendemos como falta (de um modelo), mas como existência plena e aberta ao devir, é o próprio conceito de criança aí que se abre a um eterno retorno da diferença. A criança nietzscheana redobra-se sobre si mesma e permite-nos pensar a si mesma como um conceito em devir, como um conceito lançado nos territórios da invenção, do esquecimento (ativo) e da imanência. Intentamos arrancar, com isso, o conceito de criança desse lugar em que ela é concebida como estágio (biológico, psicológico, jurídico etc.) do humano, especialmente marcado pela incompletude ou pela falta, mas também, e sobretudo, do liberá-la do subjugo (permanente) do modelo, lançada à experiência (eterna) da diferenciação. A criança, desse modo, poderia ser arrastada para outros lugares do pensamento, reabrindo-a
image/svg+xmlO dispositivo pedagógico moderno e a criança-simulacro: Para pensar diferentemente a infânciaRIAEE– Revista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 17, n. 3, p. 1736-1754, jul./set. 2022. e-ISSN: 1982-5587 DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v17i3.15975 1752 para uma existência sem modelos – para além de deuses e demônios (ou querubins e diabretes): criança-simulacro. Uma criança, extrapolando a ideia de L. Orlandi (2018), como heroína do próprio conceito de criança. REFERÊNCIAS BELTRÃO, I. R. Corpos dóceis, mentes vazias, corações frios: Didática - o discurso científico do disciplinamento. São Paulo: Imaginário, 2000. BIESTA, G. Para além da aprendizagem: Educação democrática para um futuro humano. Belo Horizonte: Autêntica, 2017. BUJES, M. I. E. Artes de governar a infância: Linguagem e naturalização da criança na abordagem de educação infantil da Reggio Emília. Educação em revista, Belo Horizonte, n. 48, p. 101-123, dez. 2008. Disponível em: https://www.scielo.br/j/edur/a/GM8PnGnmgm8ZQGQPXw8b5jk/?lang=pt. Acesso em: 15 mar. 2018. BUJES, M. I. E. Políticas sociais, capital humano e infância em tempos neoliberais. In: RESENDE, H. Michel Foucault: O governo das infâncias. Belo Horizonte: Autêntica, 2015. CORAZZA, S. M. História da infância sem fim. Ijuí: Unijuí, 2008. DANELON, M. A infância capturada: Escola, governo e disciplina. In:RESENDE, H. Michel Foucault:O governo da infância. Belo Horizonte: Autêntica, 2015. DARDOT, P.; LAVAL, C. La nouvelle raison du monde: Essai sur la société néoliberale. Paris: La Découverte, 2010. DELEUZE, G. Platon et le simulacre. In:DELEUZE, G. Logique du sense. Paris: Minuit, 1969. DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mille Plateux:Capitalisme et schizophrénie 2. Paris: Minuit, 1980. DELEUZE, G. Différence et répétition. 12. ed. Paris: PUF, 2011. FAVRETO, E. K. Modelo, cópia e simulacro: Uma perspectiva deleuziana ao problema platônico. In: SEMINÁRIO DOS ESTUDANTES DA PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA DA UFSCar, 8., 2012, São Carlos. Anais[...]. São Carlos, SP: UFSCar, 2012. Disponível em: https://docplayer.com.br/15959170-Modelo-copia-e-simulacro-uma-perspectiva-deleuziana-ao-problema-platonico.html. Acesso em: 12 out. 2021. FOUCAULT, M. Les mots et les choses: Une archéologie des sciences humaines. Paris: Gallimard, 1966. FOUCAULT, M. Surveiller et punir: Naissance de la prison. Paris: Gallimard, 1975.
image/svg+xmlHelena Almeida e Silva SAMPAIO e Luiz Guilherme AUGSBURGERRIAEE– Revista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 17, n. 3, p. 1736-1754, jul./set. 2022. e-ISSN: 1982-5587 DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v17i3.15975 1753 FOUCAULT, M. Les anormaux: Cours au Collège de France (1974-1975). Paris: Gallimard, 1999. FOUCAULT, M. Naissance de la biopolitique: Cours au Collège de France (1978-1979). Paris: Gallimard, 2004a. FOUCAULT, M. Sécurite, territoire, population: Cours au Collège de France (1977-1978). Paris: Gallimard, 2004b. GHIRALDELLI, P. Filosofia e história da educação brasileira. Barueri, SP: Monole, 2009. HERÁCLITO. Os pensadores originários. Tradução: Emmanuel Carneiro Leão e Sérgio Wrublewski. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017. KOHAN, W. O. Devir-criança da filosofia: Infância da educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. LARROSA, J. O enigma da infância ou o que vai do impossível ao verdadeiro. In:LARROSA, J. Pedagogia profana: Danças, piruetas e mascaradas. 6. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2017. LARROSA, J. Esperando no se sabe qué:Sobre el oficio de profesor. Barcelona: Candaya, 2019. LAVAL, C. A Escola não é uma empressa:O neoliberalismo em ataque ao ensino público. São Paulo: Boitempo, 2019. MARCHI, R. C. Os sentidos (paradoxais) da infância nas ciências sociais:Um estudo de sociologia da infância crítica sobre a "não-criança" no Brasil. 2007. Tese (Doutorado em Sociologia Política) – Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, 2007. MASSCHELEIN, J.; SIMONS, M. Defensa de la escuela:Una cuestión pública. Buenos Aires: Miño y Dávila, 2014. MUCHAIL, S. T. Insurreições Espirituais. Doispontos, Curitiba, v. 14, n. 1, p. 89-98, abr. 2017. Disponível em: https://revistas.ufpr.br/doispontos/article/view/56539/34023. Acesso em: 20 ago. 2021. NIETZSCHE, F. W. Assim falou Zaratustra: Um livro para todos e para ninguém. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. ORLANDI, L. B. L. Arrastões na imanência. Campinas, SP: Phi, 2018. PLATÃO. A República. Tradução: J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2018. ROSE, N. Inventing our selves: Psychology, power, and personhood. Cambridge: Cambridge University, 1998.
image/svg+xmlO dispositivo pedagógico moderno e a criança-simulacro: Para pensar diferentemente a infânciaRIAEE– Revista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 17, n. 3, p. 1736-1754, jul./set. 2022. e-ISSN: 1982-5587 DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v17i3.15975 1754 SILVA, M. V.; SOUZA, S. A. Educação e responsabilidade empresarial: “Novas” modalidades de atuação da esfera privada na oferta educacional. Educação & Sociedade, Campinas, v. 30, n. 108, p. 779-798, out. 2009. Disponível em: https://www.scielo.br/j/es/a/ZhPRpPMfNLPJPznfWLczLwv/?lang=pt. Acesso em: 06 dez. 2018. Como referenciar este artigo SAMPAIO, H. A. S.; AUGSBURGERL. G. O dispositivo pedagógico moderno e a criança-simulacro: Para pensar diferentemente a infância. Revista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 17, n. 3, p. 1736-1754, jul./set. 2022. e-ISSN: 1982-5587. DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v17i3.15975 Submetido em: 07/12/2021 Revisões requeridas em: 15/02/2022 Aprovado em: 22/05/2022 Publicado em: 01/07/2022 Processamento e editoração: Editora Ibero-Americana de Educação.Revisão, formatação, normalização e tradução.
image/svg+xmlEl dispositivo pedagógico moderno y el niño-simulacro: Para pensar distintamente la niñez RIAEE– Revista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 17, n. 3, p. 1743-1761, jul./sept. 2022 e-ISSN: 1982-5587 DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v17i3.15975 1743 EL DISPOSITIVO PEDAGÓGICO MODERNO Y EL NIÑO-SIMULACRO: PARA PENSAR DISTINTAMENTE LA NIÑEZ O DISPOSITIVO PEDAGÓGICO MODERNO E A CRIANÇA-SIMULACRO: PARA PENSAR DIFERENTEMENTE A INFÂNCIATHE MODERN PEDAGOGICAL DEVICE AND THE SIMULACRUM-CHILD: FOR A DIFFERENT WAY OF THINKING ABOUT CHILDHOOD Helena Almeida e Silva SAMPAIO1Luiz Guilherme AUGSBURGER2RESUMEN: Este artículo, explorando la tensión entre la constitución de una noción de niñez gobernable y aquella fuerza indómita del niño, que se nos escapa, propone reflexiones sobre el concepto de niño en devenir: el niño-simulacro. Por lo tanto, por una parte, desde las nociones de biopolítica, neoliberalismo y dispositivo trabajadas por Michel Foucault, se busca trazar la formación de un concepto de niñez gobernable desde el dispositivo pedagógico moderno, sobre todo, en su forma neoliberal. Por otra, se explora la idea de simulacro, devenir y su relación con las nociones de niño, en Friedrich Nietzsche y Gilles Deleuze, huyéndose a los conceptos trascendentales y transcendentalizantes, para, por último, proponer reflexiones respecto al concepto de niño como simulacro, siendo la propria noción algo en constante devenir y inmanencia. PALABRAS CLAVE: Contemporaneidad. Dispositivo. Niñez. Simulacro. RESUMO: Este artigo, explorando a tensão entre a constituição de uma noção de infância governável e aquela força indômita da criança, que nos escapa, propõe reflexões sobre o conceito de criança em devir: a criança-simulacro. Para tanto, por um lado, a partir das noções de biopolítica, neoliberalismo e dispositivo trabalhadas por Michel Foucault, busca-se delinear como se forma um conceito de infância governável a partir do dispositivo pedagógico moderno, sobretudo em sua forma neoliberal. Por outro, explora-se a ideia de simulacro, devir e sua relação com as noções de criança, em Friedrich Nietzsche e Gilles Deleuze, escapando-se aos conceitos transcendentais e transcendentalizantes, para, por fim, propor reflexões acerca do conceito de criança como simulacro, sendo a própria noção algo em constante devir e imanência. PALAVRAS-CHAVE: Contemporaneidade. Dispositivo. Infância. Simulacro. 1Pontificia Universidad Católica (PUC), São Paulo – SP – Brasil. Estudiante de doctorado del Programa de Posgrado en Filosofía. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6639-8670. E-mail: helenaalmeida@me.com 2Universidad Estatal de Santa Catarina (UDESC), Florianópolis – SC – Brasil. Estudiante de doctorado del Programa de Posgrado en Educación. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3136-9890. E-mail: luizg.augs@gmail.com
image/svg+xmlHelena Almeida e Silva SAMPAIO y Luiz Guilherme AUGSBURGERRIAEE– Revista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 17, n. 3, p. 1743-1761, jul./sept. 2022. e-ISSN: 1982-5587 DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v17i3.15975 1744 ABSTRACT: Exploring the tension between the constitution of a notion of governable childhood and that child untamed power, this paper proposes reflections on the concept of a becoming childhood: the simulacra-child. Therefore, on the one hand, from the notions of biopolitics, neoliberalism, and dispositive studied by M. Foucault, it seeks outline how a childhood concept is formed as of the modern pedagogic dispositive, mainly on its neoliberal form. On the other hand, it explores the idea of simulacra, becoming, and their relations with child notions, from F. Nietzsche, and G. Deleuze, slipping out of transcendental and transcendentalizing concepts, to be proposed, finally, reflections on the concept of child as simulacra, being the notion itself in continuous becoming and immanence.KEYWORDS: Contemporaneity. Dispositive. Child. Simulacrum.Nota del preámbulo En "El rompecabezas del niño", Larrosa (2017) señala una ambigüedad en torno a la infancia en nuestro tiempo. Los niños son "estos seres extraños de los que no se sabe nada, estos seres salvajes, que no entienden nuestro idioma" y, al mismo tiempo, "la infancia es algo que nuestro conocimiento, nuestras prácticas y nuestras instituciones ya han capturado: algo que podemos explicar y nombrar, algo en lo que podemos intervenir, algo que podemos acoger" (LARROSA, 2017, p. 229-230). A esta disposición diversa de prácticas, instituciones y conocimientos que permite un gobierno de la infancia y lo hace productivo según ciertos criterios de verdad, lo llamamos el "dispositivo pedagógico". En su forma contemporánea para nosotros, este dispositivo proporciona la gestión neoliberal de la vida de un niño, para capitalizarla. La explosión de prácticas discursivas y no discursivas en torno a la infancia, sin embargo, no impide que el niño resida en un poder indómita, que no solo está aprehendiendo no solo en el plano material de este niño conocimiento-poder, sino en un territorio conceptual y existencial. El niño, en este sentido, se relacionaría, según Larrosa (2017, p. 230), con lo que,” que, siempre más allá de cualquier intento de captura, inquieta la seguridad de nuestro conocimiento, cuestiona el poder de nuestras prácticas y abre un vacío en el que se asombra el edificio bien construido de nuestras instituciones de acogida". Lo que exploraremos en este artículo, entonces, es precisamente, por un lado, la forma en que funciona este moderno dispositivo pedagógico –en su forma contemporánea para nosotros, produciendo y gestionando mucho una infancia en mayúsculas– y, por otro lado, cómo, en vista de esto, sería posible liberar no solo al sujeto-niño, sino también, y sobre todo, al concepto-niño, de los usos neoliberales y biopolíticos que se hacen dentro de este dispositivo pedagógico. Para ello, este artículo se dividirá en dos partes. En el primero, exploramos elementos en torno al dispositivo pedagógico moderno y la infancia contemporánea: los significados de
image/svg+xmlEl dispositivo pedagógico moderno y el niño-simulacro: Para pensar distintamente la niñez RIAEE– Revista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 17, n. 3, p. 1743-1761, jul./sept. 2022 e-ISSN: 1982-5587 DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v17i3.15975 1745 poder y dispositivo, de Michel Foucault; el funcionamiento de la biopolítica y las cuestiones de gobierno del individuo y la población que implica, explotadas por el mismo autor; las diferencias de esta lógica de gobierno, en sus variaciones liberales y neoliberales, así como sus reverberaciones sobre la infancia (contemporánea). En la segunda parte, exploramos elementos en torno al simulacro, el devenir y sus consecuencias en el concepto de niño: cuestiones epistemológicas y ontológicas que involucran las relaciones entre modelo, copia y simulacro, especialmente en Platón; la inversión del platonismo o la positivación del simulacro en el pensamiento contemporáneo (filosófico), de Gilles Deleuze y Friedrich Nietzsche; y, por último, las consecuencias de esto en el concepto de niño-simulacro. Dispositivo pedagógico e infancia contemporánea Para explorar la idea de un dispositivo pedagógico moderno, más bien, parece prudente rastrear lo que entendemos por dispositivo y cómo se relaciona con la idea de conocimiento y poder (o verdad y gobierno), de Michel Foucault. En los escritos del pensador francés, el poder no se refiere a una teoría, ni se refiere a una "idea", a una "sustancia" o "identidad teórica" (FOUCAULT, 1975), como algo rastreable en algún lugar o persona. Siempre es una "relación de poder" y, como tal, es un ejercicio, una práctica que se facilita y forma el tejido del tejido social. Esto se aplica tanto a las relaciones y prácticas educativas institucionalizadas, como a aquellas que, dentro y fuera de los espacios educativos, forman y conducen a los niños de una manera menos institucional (por ejemplo, anuncios dirigidos a los niños o libros "manuales pedagógicos" para los padres). El "poder", de donde lo tomamos en este artículo, "existe solo en su concreto, multifacético y cotidiano" (MUCHAIL, 2017, p. 14). En su naturaleza cotidiana y multifacética, el poder prescinde de una unidad supra relacional o metafísica, ni, dada la heterogeneidad de las formas en que tienen lugar las relaciones de poder, no pueden agruparse en un concepto homogéneo o generalizable, que podría individualizarse aquí y allá. Debido a esto, evocamos la noción de "dispositivo". La noción de dispositivo de Foucault no solo se refiere a las relaciones de poder y / o prácticas no discursivas, sino que también abarca el conocimiento y las prácticas discursivas. Las prácticas, estrategias, tecnologías e instituciones de conocimiento y poder es lo que un "dispositivo estratégico" entenderá. En el dispositivo, por lo tanto, se entrelazan elementos heterogéneos de estos, lo que permite articular prácticas discursivas y no discursivas, sin la intención de amalgamarlas. Admitirá tanto la presencia de efectos de poder en las prácticas discursivas, y también se dará cuenta de los efectos de la verdad en las prácticas de poder. Un
image/svg+xmlHelena Almeida e Silva SAMPAIO y Luiz Guilherme AUGSBURGERRIAEE– Revista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 17, n. 3, p. 1743-1761, jul./sept. 2022. e-ISSN: 1982-5587 DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v17i3.15975 1746 ejemplo de ello es en Vigilar yCastigar (FOUCAULT, 1975), donde el autor muestra el funcionamiento de un dispositivo disciplinario y cómo sus dimensiones de conocimiento y poder son apoyadas y tensadas, sin que ello resulte en la síntesis o jerarquización de los mismos. Además, Michel Foucault (1975, p. 162-163) explica la heterogeneidad e inmanencia de la "invención" de este dispositivo: [...] no debe entenderse como un descubrimiento repentino. Pero una multiplicidad de procesos que a menudo son mínimos, de diferentes orígenes, de ubicaciones dispersas, que se recuerdan, se repiten o se imitan entre sí, se apoyan entre sí, se distinguen según su campo de aplicación, entran en convergencia y esbozan gradualmente la fachada de un método general. Las nociones con las que trabaja Foucault no existen de manera abstracta y genérica, sino siempre en sus usos específicos y plurales, a partir de los cuales es posible encerrarlas y trasladarlas a otros contextos y/o usos, realizando los ajustes adecuados. El dispositivo pedagógico, como pensamos desde Foucault, tiene como condición de posibilidad la confluencia de dos prácticas o estrategias de gobierno, que emergen, en distinto tiempo y ritmo, en contraste con la lógica soberana, del antiguo régimen. Es a partir del siglo 17 que el poder soberano – para hacer morir y dejar vivir – cuya política de la muerte emanó de la figura del rey y se expresó a través del tormento (público), está dando paso a un poder sobre la vida. Mientras que el poder soberano escapaba a las cosas, tanto a nivel del individuo como a nivel de la población, esta forma moderna de poder articulaba tanto la disciplina de los individuos, como la estadística y los cálculos de probabilidad de la población, permitiendo un tratamiento más exhaustivo y/o específico en el manejo de estos sujetos. A esta nueva forma de gobierno Michel Foucault (2004b) le dio el nombre de "biopolítica". La biopolítica actúa activamente sobre la vida, tanto individual como a nivel de la especie humana, buscando gestar y expandir las fuerzas de los sujetos, basándose en un criterio de gubernamentalidad. Este criterio, también llamado veridicción, es el que nos permite definir qué prácticas son verdaderamente apropiadas, eficientes, correspondientes a una lógica o no; es lo que permite, por ejemplo, calcular qué estrategias de poder son deseables o constituyen un buen gobierno, o no.Hasta la primera mitad del siglo 20, pero, sobre todo, a lo largo del siglo 19, este criterio de veridicción era el mercado y su sujeto, el Homo œconomicusliberal, sujeto de intercambio. El mercado, por lo tanto, constituía la lógica desde la cual se podía evaluar la eficiencia de las prácticas biopolíticas de la época: no se trataba de lograr una sociedad o una conducta ideales de los individuos, sino de definir, a partir de la realidad "natural" de las poblaciones, qué prácticas tenían un efecto deseado en la vida de los sujetos, haciéndolos
image/svg+xmlEl dispositivo pedagógico moderno y el niño-simulacro: Para pensar distintamente la niñez RIAEE– Revista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 17, n. 3, p. 1743-1761, jul./sept. 2022 e-ISSN: 1982-5587 DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v17i3.15975 1747 productivos. A partir de la Segunda Guerra Mundial, hubo un cambio en esta lógica y fue a partir de un neoliberalismo, ya sea en su forma alemana (ordoliberalismo), o en su forma estadounidense (anarcolipberalismo) - que una gubernamentalidad específica comenzó a organizarse. La veridicción del mercado se ha convertido en un cálculo de rentabilidad e inversión, un juego de producción y administración de libertades, mientras que el sujeto dejó de ser el de intercambio y se convirtió en el que se entiende a sí mismo como una empresa. Cuando arrastramos la biopolítica al campo pedagógico, vemos la acción de ambas tecnologías, cuyo objeto es el cuerpo-individuo, y aquellas cuyo objeto son las poblaciones. A través del sesgo de la disciplina, se puede posicionar el dispositivo pedagógico como el proceso de fabricación de un sujeto dócil política y económicamente útil, en el que el cuerpo deja de ser incapaz, para convertirse en la máquina que se necesita y que funciona como quiere. Esto se produce a través de una acción calculada y meticulosa, atenta a los detalles, que "recorre cada parte del cuerpo, se apodera de él, dobla el conjunto, lo hace perpetuamente disponible y