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O dispositivo pedagógico moderno e a criança-simulacro: Para pensar diferentemente a infância
RIAEE
– Revista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 17, n. 3, p. 1736-1754, jul./set. 2022. e-ISSN: 1982-5587
DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v17i3.15975
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O DISPOSITIVO PEDAGÓGICO MODERNO E A CRIANÇA-SIMULACRO: PARA
PENSAR DIFERENTEMENTE A INFÂNCIA
EL DISPOSITIVO PEDAGÓGICO MODERNO Y EL NIÑO-SIMULACRO: PARA
PENSAR DISTINTAMENTE LA NIÑEZ
THE MODERN PEDAGOGICAL DEVICE AND THE SIMULACRUM-CHILD: FOR A
DIFFERENT WAY OF THINKING ABOUT CHILDHOOD
Helena Almeida e Silva SAMPAIO
1
Luiz Guilherme AUGSBURGER
2
RESUMO
: Este artigo, explorando a tensão entre a constituição de uma noção de infância
governável e aquela força indômita da criança, que nos escapa, propõe reflexões sobre o
conceito de criança em devir: a criança-simulacro. Para tanto, por um lado, a partir das noções
de biopolítica, neoliberalismo e dispositivo trabalhadas por Michel Foucault, busca-se delinear
como se forma um conceito de infância governável a partir do dispositivo pedagógico moderno,
sobretudo em sua forma neoliberal. Por outro, explora-se a ideia de simulacro, devir e sua
relação com as noções de criança, em Friedrich Nietzsche e Gilles Deleuze, escapando-se aos
conceitos transcendentais e transcendentalizantes, para, por fim, propor reflexões acerca do
conceito de criança como simulacro, sendo a própria noção algo em constante devir e
imanência.
PALAVRAS-CHAVE
: Contemporaneidade. Dispositivo. Infância. Simulacro.
RESUMEN
: Este artículo, explorando la tensión entre la constitución de una noción de niñez
gobernable y aquella fuerza indómita del niño, que se nos escapa, propone reflexiones sobre
el concepto de niño en devenir: el niño-simulacro. Por lo tanto, por una parte, desde las
nociones de biopolítica, neoliberalismo y dispositivo trabajadas por Michel Foucault, se busca
trazar la formación de un concepto de niñez gobernable desde el dispositivo pedagógico
moderno, sobre todo, en su forma neoliberal. Por otra, se explora la idea de simulacro, devenir
y su relación con las nociones de niño, en Friedrich Nietzsche y Gilles Deleuze, huyéndose a
los conceptos trascendentales y transcendentalizantes, para, por último, proponer reflexiones
respecto al concepto de niño como simulacro, siendo la propria noción algo en constante
devenir y inmanencia.
PALABRAS CLAVE
: Contemporaneidad. Dispositivo. Niñez. Simulacro.
1
Pontifícia Universidade Católica (PUC), São Paulo – SP – Brasil. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação
em Filosofia. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6639-8670. E-mail: helenaalmeida@me.com
2
Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), Florianópolis – SC – Brasil. Doutorando do Programa de
Pós-Graduação em Educação. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3136-9890. E-mail: luizg.augs@gmail.com
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Helena Almeida e Silva SAMPAIO e Luiz Guilherme AUGSBURGER
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ABSTRACT
: Exploring the tension between the constitution of a notion of governable
childhood and that child untamed power, this paper proposes reflections on the concept of a
becoming childhood: the simulacra-child. Therefore, on the one hand, from the notions of
biopolitics, neoliberalism, and dispositive studied by M. Foucault, it seeks outline how a
childhood concept is formed as of the modern pedagogic dispositive, mainly on its neoliberal
form. On the other hand, it explores the idea of simulacra, becoming, and their relations with
child notions, from F. Nietzsche, and G. Deleuze, slipping out of transcendental and
transcendentalizing concepts, to be proposed, finally, reflections on the concept of child as
simulacra, being the notion itself in continuous becoming and immanence.
KEYWORDS
: Contemporaneity. Dispositive. Child. Simulacrum.
Nota preambular
Em “O enigma da criança”, Larrosa (2017) aponta uma ambiguidade em torno da
infância em nosso tempo. As crianças são “esses seres estranhos dos quais nada se sabe, esses
seres selvagens, que não entendem nossa língua” e, ao mesmo tempo, “a infância é algo que
nossos saberes, nossas práticas e nossas instituições já capturaram: algo que podemos explicar
e nomear, algo sobre o qual podemos intervir, algo que podemos acolher” (LARROSA, 2017,
p. 229-230). A esse arranjo diverso de práticas, instituições e saberes que permite um governo
da infância e a faz produtiva de acordo com certos critérios de verdade, chamamos de
“dispositivo pedagógico”. Em sua forma contemporânea a nós, esse dispositivo propicia a
gestão neoliberal da vida de uma criança, a capitalizá-la. A explosão de práticas discursivas e
não-discursivas em torno da infância, no entanto, não impede que resida na criança uma
potência indômita, que não se deixa apreender não só no plano material desse saber-poder
infantil, mas num território conceitual e existencial. A criança, nesse sentido, diria respeito,
segundo Larrosa (2017, p. 230), àquilo “que, sempre além de qualquer tentativa de captura,
inquieta a segurança de nossos saberes, questiona o poder de nossas práticas e abre um vazio
em que se abisma o edifício bem construído de nossas instituições de acolhimento”. O que
exploraremos neste artigo, então, é justamente, por um lado, o modo como funciona esse
dispositivo pedagógico moderno – em sua forma contemporânea a nós, produzindo e gestando
uma infância capitalizada – e, por outro, como, diante disto, seria possível liberar, não só o
sujeito-criança, mas também, e sobretudo, o conceito-criança, dos usos neoliberais e
biopolíticos que se faz no interior desse dispositivo pedagógico.
Para tanto, esse artigo estará divido em duas partes. Na primeira, exploramos elementos
e
m torno do dispositivo pedagógico moderno e da infância contemporânea: as noções de poder
e dispositivo, a partir de Michel Foucault; o funcionamento da biopolítica e as questões de
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governo do indivíduo e da população que ela implica, explorados pelo mesmo autor; as
diferenças dessa lógica de governo, em suas variações liberal e neoliberal, bem como suas
reverberações sobre a infância (contemporânea). Na segunda parte, exploramos elementos em
torno do simulacro, do devir e seus desdobramentos no conceito de criança: questões
epistemológicas e ontológicas que envolvem as relações entre modelo, cópia e simulacro,
especialmente em Platão; a reversão do platonismo ou a positivação do simulacro no
pensamento (filosófico) contemporâneo, a partir de Gilles Deleuze e Friedrich Nietzsche; e, por
fim, os desdobramentos disso no conceito de criança-simulacro.
Dispositivo pedagógico e infância contemporânea
Para explorar a ideia de dispositivo pedagógico moderno, antes, parece-nos prudente
traçar aquilo que entendemos por dispositivo e como esse relaciona-se com a ideia de saber e
poder (ou verdade e governo), a partir de Michel Foucault. Nos escritos do pensador francês, o
poder não remete a uma teoria, nem se refere a uma “ideia”, a uma “substância” ou “identidade
teórica” (FOUCAULT, 1975), como algo localizável em algum lugar ou pessoa. Trata-se
sempre de uma “relação de poder” e, como tal, é um exercício, uma prática que se espraia e
forma a trama do tecido social. O que se aplica tanto às relações e práticas educacionais
institucionalizadas, quanto àquelas que, dentro e fora dos espaços educativos, dão forma e
conduzem as crianças de modo menos institucional (
e.g.
, propagandas direcionadas a crianças
ou livros ‘manuais pedagógicos’ aos pais). O “poder”, desde onde o tomamos nesse artigo, “só
existe em sua concretude, multifacetado e cotidiano” (MUCHAIL, 2017, p. 14). Em sua
natureza cotidiana e multifacetada, o poder prescinde de uma unidade suprarrelacional ou
metafísica, tampouco, dada a heterogeneidade das maneiras com que as relações de poder se
dão, elas não podem ser reunidas em um conceito homogêneo ou generalizável, que se poderia
particularizar aqui e ali. Por conta disso, evocamos a noção de “dispositivo”.
A noção foucaultiana de dispositivo não concerne apenas às relações de poder e/ou a
p
rática não-discursivas, ela também engloba o saber e as práticas discursivas. As práticas,
estratégias, tecnologias e instituições de saber e poder é o que um “dispositivo estratégico” vai
compreender. No dispositivo, pois, entrecruzam-se elementos heterogêneos desses, permitindo-
se articular as práticas discursivas e não-discursivas, sem o intuito de amalgamá-las. Ele vai
com isso admitir tanto a presença de efeitos de poder nas práticas discursivas, como também
vai perceber os efeitos de verdade nas práticas de poder. Um exemplo disso está em
Vigiar e
Punir
(FOUCAULT, 1975), onde o autor mostra o funcionamento de um dispositivo disciplinar
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e como suas dimensões de saber e de poder se apoiam e tensionam, sem resultar em síntese ou
hierarquização delas. Ademais, Michel Foucault (1975, p. 162-163) explicita a heterogeneidade
e a imanência da “invenção” desse dispositivo:
[...] não deve ser entendida como uma descoberta súbita. Mas uma
multiplicidade de processos muitas vezes mínimos, de origens diferentes, de
localizações esparsas, que se recordam, se repetem, ou se imitam, apoiam-se
uns sobre os outros, distinguem-se segundo seu campo de aplicação, entram
em convergência e esboçam aos poucos a fachada de um método geral.
As noções com que trabalha Foucault não existem de forma abstrata e genérica, mas
sempre em seus usos específicos e plurais, de onde é possível depreendê-los e deslocá-los para
outros contextos e/ou usos, fazendo as devidas adequações. O dispositivo pedagógico, como o
pensamos a partir de Foucault, tem como condição de possibilidade a confluência de duas
práticas ou estratégias de governo, que emergem, em tempo e ritmo distintos, em contraste com
a lógica soberana, do
ancien régime
. É a partir do século XVII que o poder soberano – de fazer
morrer e deixar viver –, cuja política da morte emanava da figura do rei e expressava-se através
do suplício (público), vai dando lugar a um poder sobre a vida. Enquanto ao poder soberano
escapavam-lhe coisas, tanto no nível do indivíduo quanto no nível da população, essa forma
moderna de poder articulava tanto a disciplina dos indivíduos, quanto a estatística e os cálculos
de probabilidade populacionais, permitindo um trato mais minucioso e/ou específico na gestão
desses sujeitos. A essa nova forma de governo Michel Foucault (2004b) deu o nome de
“biopolítica”.
A biopolítica age ativamente sobre a vida – t
anto individual quanto no nível da espécie
humana –, buscando gestar e ampliar as forças dos sujeitos, a partir de um critério de
governamentalidade. Esse critério, também chamado de veridicção, é o que permite definir
quais práticas são
verdadeiramente
adequadas, eficientes, correspondentes a uma lógica ou não;
é o que permite, por exemplo, calcular quais estratégias de poder são desejáveis ou constituem
um bom governo, ou não. Até a primeira metade do século XX, mas, sobretudo, ao longo do
século XIX, esse critério de veridicção foi o mercado e seu sujeito, o
Homo œconomicus
liberal,
sujeito de troca. O mercado, pois, constituía a lógica a partir da qual se podia avaliar a eficiência
das práticas biopolíticas de então: não se tratava de alcançar uma sociedade ideal ou uma
conduta ideal dos indivíduos, mas definir, a partir da realidade “natural” das populações, quais
práticas tinham efeito desejado sobre a vida dos sujeitos, tornando-os produtivos. A partir da
Segunda Guerra Mundial, houve uma alteração nessa lógica e foi a partir de um neoliberalismo
– seja em sua forma alemã (ordoliberalismo), seja em sua forma estadunidense
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(anarcoliberalismo) – que uma governamentalidade específica passou a se organizar. A
veridicção a partir do mercado passou a um cálculo de rentabilidade e de investimento, a um
jogo de produção e administração de liberdades, enquanto o sujeito deixou de ser aquele da
troca e passou a ser aquele que entende a si mesmo como uma empresa.
Quando arrastamos a biopolítica para o campo pedagógico, vemos atuar tanto
tecnologias, cujo objeto é o corpo-indivíduo, quanto aquelas cujo objeto são as populações.
Pelo viés da disciplina, pode-se posicionar o dispositivo pedagógico como o processo de
fabricação de um sujeito dócil politicamente e economicamente útil, em que o corpo deixa de
ser inapto, para tornar-se a máquina de que se precisa e que opera como se quer. Isso é
produzido por meio de uma ação calculada e meticulosa, atenta aos detalhes, que “percorre cada
parte do corpo, assenhora-se dele, dobra o conjunto, torna-o perpetuamente disponível e se
prolonga, em silêncio, no automatismo dos hábitos” (FOUCAULT, 1975, p. 159-160). Assim,
o poder disciplinar, que nasceu no século XVII e se desenvolveu ao longo do século XIX, fez
aparecerem objetos novos: o olhar às insignificâncias, às miudezas, aos detalhes mais ínfimos
e sutis no corpo individual. Tratou-se da invenção de uma anátomo-política em que “a coerção
[...] estabelece no corpo o elo coercitivo entre uma aptidão aumentada e uma dominação
acentuada” (FOUCAULT, 1975, p. 162), através de técnicas de descrição e documentação, de
vigilância, de punição, de organização e disposição no espaço e no tempo. Foucault (1975)
tomou o poder, tanto disciplinar quanto outras de suas formas, em seu caráter mais produtivo
que repressivo. O poder disciplinar, por exemplo, exerce-se por e sobre indivíduos, em diversos
espaços sociais, com o objetivo principal de produzir um corpo, antes de aniquilá-lo, e sempre
com alguma margem de resistência dos sujeitos, caso contrário, a relação de poder converte-se
em pura violência.
O processo de individualização que se desdobra com o poder disciplinar também
representa uma mudança no nível dos saberes, especialmente com a emergência da figura do
Homem e das ciências humanas (FOUCAULT, 1966), mas também dos saberes com o radical
“psico”. Eis aí, nas palavras de Michel Foucault (1975, p. 226-227, grifo do autor),
[o] momento em que passamos de mecanismos histórico-r
ituais de formação
da individualidade a mecanismos científico-disciplinares, em que o normal
tomou o lugar do ancestral, e a medida, o lugar do
estatuto, substituindo assim
a individualidade do homem memorável pela do homem calculável, esse
momento em que as ciências do homem se tornaram possíveis, é aquele em
que foram postas em funcionamento uma nova tecnologia do poder e uma
anatomia política do corpo. E se da Idade Média mais remota até hoje “a
aventura” é o relato da individualidade, a passagem do épico ao romanesco,
do feito importante à singularidade secreta, dos longos exílios à procura
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interior da infância, das justas aos fantasmas, se insere também na formação
de uma sociedade disciplinar.
As tecnologias disciplinares produzem não só um corpo, como também produzem a
“normalidade” à qual um indivíduo poderia ser contrastado e avaliado. Uma vez o retrato da
norma estabelecido, torna-se possível e necessário agir sobre os comportamentos dos
indivíduos, tomados como “normais” ou “anormais” e, nesse segundo caso, sob os quais seria
preciso agir de forma especial – seja para adequá-lo, seja para dele fazer um (mal) exemplo, de
forma a subjetivar o desejo pelo normal. É nesse jogo de (a)normalidade que, sabidamente, os
“saberes psi” tiveram e tem especial importância.
Movidos por uma “vontade de verdade” sobre o Homem e, por conseguinte, sobre a
criança, os saberes psi vão exercer um duplo papel. Por um lado, vão compor as ciências
humanas e serão parte da invenção do homem moderno através de um cálculo de normalidade.
Por outro lado, eles vão instaurar um saber, uma razão e um poder que farão parte da construção
de um modo específico de infância: a infância, que num momento permitiu delinear o sujeito
adulto, sendo o Outro deste (infância como negativado), agora será objeto e sujeito (positivado)
de um poder e de um saber que agem sobre a criança a fim de tornar sua conduta normal(izada).
A norma articula-se tanto com a disciplina quanto com os dispositivos de segurança. A norma,
enquanto disciplina, não se regula pela lei.
Por outro lado, a biopolítica, pelo viés da segurança, também fez outro uso da ideia
“norma”. Diferentemente da noção disciplinar de norma, mais jurídica e individual, há uma
concepção de norma mais voltada às práticas de governo e de segurança, cujo sujeito (e objeto)
é a população. No texto “Políticas sociais, capital humano e infância em tempos neoliberais”,
Bujes (2015, p. 267) escreve:
Historicamente, a definição da população como um novo alvo do exercício do
poder articulou-se à percepção de que as regras jurídicas que até aí permitiam
governar não mais satisfaziam, o que implicou que a racionalidade política
que marcava o biopoder fizesse aparecer um novo tipo de regra, uma regra
natural: as normas.
No século XVIII, a norma atrela-se à população. O conceito de população passou a
designar um conjunto de viventes com fenômenos e problemas próprios (
e.g.
, saúde,
mortalidade, natalidade, longevidade, raça) e em relação ao meio (
e.g.
, urbanismo e ecologia),
o que implicou em práticas governamentais perpassadas por mecanismos de previsão, de
estimativa estatística e de noções globais de governo (FOUCAULT, 2004a, 2004b). Nesse outro
nível, o poder e o saber não agem para alcançar um estado perfeito ou um corpo ideal, mas,
dentro de certa margem de fluxo e variação, alcançar o equilíbrio populacional (homeostase) e
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uma gestão dos comportamentos que os torne rentáveis. Distinto da lógica puramente
disciplinar, em que os corpos são produzidos de forma a comportarem-se, individualmente, de
uma determinada maneira produtiva, a biopolítica sobre a população vai tomar os fenômenos e
comportamentos próprios à população e convertê-los em produtivos, em um nível coletivo
(FOUCAULT, 2004a).
Essas tecnologias asseguraram, no desenvolvimento do modo de produção capitalista, a
gestão da população e seus fenômenos próprios em consonância com um controle dos corpos
dentro da lógica produtiva e social liberal e, depois, neoliberal. Para Foucault (2004a) seria
impossível dissociar (neo)liberalismo de biopolítica, ao menos se entendermos aquelas noções
para além da esfera meramente econômica e a pensarmos no campo do governo (
i.e.
, da
condução das condutas). Isso posto, liberalismo e neoliberalismo,
mutatis mutandis
, deram ao
sujeito econômico um lugar de destaque, ao fazer do
Homo œconomicus
uma categoria que
extrapolasse o âmbito,
stricto sensu
, econômico. Esse sujeito (neo)liberal foi transposto a um
patamar mais amplo de análise, sobretudo aquele da governamentalidade, o que permitiu a
Foucault (2004a, 2004b) também tomar liberalismo e neoliberalismo como noções
concernentes ao âmbito do governo.
Entretanto, vale notar que, se no liberalismo (clássico) do século XVIII e XIX, o
Homo
œconomicus
fora tomado, coletivamente, como população e objeto da estatística e,
individualmente, como sujeito de troca; a partir da segunda metade do século XX, no
neoliberalismo – seja ordo ou anarcoliberal –, o
Homo œconomicus
ganhou outros contornos,
dando-se-lhe o lugar de sujeito econômico ativo. Doravante, com a passagem de uma sociedade
pensada como “supermercado” a uma entendida como “empresa”, “o
Homo œconomicus
[...]
não é o homem de troca, não é o homem consumidor, é o homem da empresa e da produção”
(FOUCAULT, 2004a, p. 152).
Desse deslocamento econômico-
social deriva-se um redobramento da ação
governamental. Se o sujeito biopolítico liberal fora fundamentalmente passivo e coletivo, por
demanda do próprio jogo de trocas do mercado e seus mecanismos econômicos, o sujeito
neoliberal foi pensado como ativo e hiperindividualizado, ainda que, evidentemente, inserido
em relações com outros indivíduos. As práticas do sujeito já não teriam mais alicerce em algo
externo a suas próprios práticas, havendo o esvaziamento de uma moral (estrita e do dever) e
sua substituição por uma ética e uma veridicção empresarial, “que permite analisar todos esses
comportamentos em termos de empresa individual, de empresa de si com investimentos e
rendas” (FOUCAULT, 2004a, p. 237). Em seu ensaio sobre a sociedade neoliberal, P. Dardot
e C. Laval (DARDOT; LAVAL, 2010, p. 413, grifo do autor) ironizam tal ética: “pode-se dizer
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que o primeiro mandamento da ética do empreendedor é ‘ajuda-te a ti mesmo’ e que essa ética
é uma ética do ‘
self-help
’.” Nessa ética da autoajuda, que, de um preceito moral no século
XVIII, convertera-se em lógica de governo, a “autoavaliação” estabeleceu-se como elemento
estratégico dessa codificação do mundo através do
ethos
da “empresa de si” e da ascese do
desempenho performático e do desenvolvimento de habilidades. Essa codificação, por sua vez,
ganhou espaço não só na vida adulta, mas começa em um precoce exercício de educação
empresarial, empreendedora ou voltada ao “mercado de trabalho” sobre as crianças (LAVAL,
2019).
Outro aspecto importante da biopolítica no governo neoliberal, é:
[...] que no horizonte de uma análise como essa, o que aparece não é de forma
alguma o ideal ou o projeto de uma sociedade exaustivamente disciplinar na
qual a rede legal, encerrando os indivíduos, seria substituída e prolongada do
interior por mecanismos, digamos, normativos. Tampouco é uma sociedade
na qual o mecanismo de normalização geral e da exclusão do não-
normalizável será requirido. Ao contrário, nesse horizonte, a imagem ou ideia
ou tema-programa de uma sociedade na qual haveria otimização dos sistemas
de diferença, na qual o campo seria deixado livre aos processos oscilatórios,
na qual haveria uma tolerância acordada aos indivíduos e às práticas
minoritárias, na qual haveria uma ação não sobre os jogadores do jogo, mas
sobre as regras do jogo, e, enfim, na qual haveria uma intervenção que não
seria do tipo de assujeitamento interno dos indivíduos, mas uma intervenção
de tipo ambiental (FOUCAULT, 2004a, p. 265).
No lugar do foco em uma normatividade sobre o indivíduo, uma ação sobre a oscilação
da população; agir sobre as regras, não sobre os jogadores diretamente. Desse modo, o ponto
nodal da ação governamental neoliberal é atuar sobre o meio, em vez de algum tipo de ação (de
assujeitamento) direta sobre os corpos. E nesse ínterim, os saberes psi passaram a atuar de forma
a intensificar os efeitos e prolongar o alcance da subjetivação do
ethos
empresarial, permitindo
aos indivíduos serem sujeitos desse tipo de governo –
Homo œconomicus
governáveis nessa
lógica biopolítica neoliberal. Essa espécie de mergulho na psiquê, no entanto, não representa
um assenhorar-se de um sujeito doravante passivo. O que está em jogo aí é uma espécie de
empoderamento de si, a partir da verdade de um sujeito que é agente em um jogo econômico
de produção e consumo de liberdades (ROSE, 1998).
É sob o signo dessa lógica de governo neoliberal que o dispositivo pedagógico e a gestão
d
a infância dão-se em nossa contemporaneidade, como exploraremos mais especificamente a
seguir. No entanto, vale ressaltar que as tecnologias de população e indivíduo, de segurança e
disciplinar, são mecanismos que não atuam no mesmo nível, muito embora se articulem, sem
se excluir – corpo e população, funcionando como uma espécie de polos de um governo que se
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exerce sobre a infância.
Àquilo que chamamos de “dispositivo”, Márcio Danelon (2015) chama “máquina de
guerra”. É essa máquina de guerra/dispositivo que o neoliberalismo evoca quando se lhe põe o
problema (do governo) da infância:
O que fazer com esse problema chamado infância? É isso que a educação tem
que resolver [...]. A cada infância que surge com o nascimento é preciso usar
a máquina de guerra para apreendê-la, para construir um saber sobre a infância
– e definir o que ela é –, determinar as suas necessidades – definir o que ela
será. A cada nascimento usamos a máquina de guerra para torná-la um igual a
nós, uma identidade, eliminando assim, sua estrangeiridade e sua novidade
(DANELON, 2015, p. 218).
Frente a estrangeiridade da criança, o dispositivo pedagógico: um arranjo de
tecnologias, estratégias, práticas (discursivas e não-discursivas) posto em ação para domesticar
essa força. Em seu aspecto disciplinar, ele implica uma dimensão dizível ou das práticas
discursivas (Pedagogia) e uma dimensão visível ou das práticas não-discursivas (escola).
Beltrão (2000, p. 70, grifo da autora), nesse sentido, diz que:
[n]o que se refere à Pedagogia e à escola [...], apesar da junção das duas
formas, a “encontros forçados” entre ambas, “encontros” que possibilitam
produzir a verdade sobre educação. Esses “encontros forçados” é que
permitem que uma retire segmentos da outra: a Pedagogia utiliza os quadros,
os programas, os exercícios, as forças taticamente compostas, a vigilância, a
punição e o exame que a escola vai construindo para extrair deles seu saber-
discurso. Por sua vez, a escola utiliza os enunciados pedagógicos para, em
nome deles, sofisticar aperfeiçoar e dar cientificidade a todas essas técnicas
de sujeição e objetivação que o seu saber- máquina realiza.
Desse encontro, heterogêneo e nem sempre harmônico, entre discursivo e não-
discursivo emergem os contornos modernos da educação e, por conseguinte, de seu disposto
(ou máquina de guerra). Um discurso da infância associado à imagem da criança frequentadora
de uma
escola e que tanto disciplina-a, vigia-a e a avalia em prol de um vir-a-ser aluno e, depois,
adulto; quanto as permite gerível em um nível macro, em que elas formam um corpo coletivo,
passível de estatísticas e cálculos de probabilidade. Uma maquinaria que ordena multiplicidades
difusas (e confusas) em individualidades personalizadas, para formar, finalmente, um quadro
vivo de sujeitos únicos (ainda que multifuncionais) e, ao mesmo tempo, organizável em arranjos
de
performances
e habilidades – dos sujeitos e das tecnologias educacionais.
Contudo, se em dado momento essa domesticaçã
o tinha um sentido mais estrito e direto
– o disciplinamento dos corpos individuais aparece nitidamente no surgimento da escola
moderna e no saber pedagógico –, em nossa contemporaneidade, ela adquire um tom mais sutil,
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– Revista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 17, n. 3, p. 1736-1754, jul./set. 2022. e-ISSN: 1982-5587
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insidioso e indireto. O que vemos apresentar-se com a pedagogia – a condução da infância –
mais atual e inovadora são aquelas em que a criança ganha autonomia, o tempo deve tornar-se
lúdico e o espaço motivador do desenvolvimento de suas habilidades, inclusive aquelas
socioemocionais. Ora, o que mostram Silva e Souza (2009), por exemplo, é que a “autonomia”
que se imputa às crianças é muito próxima àquela da “responsabilidade empresarial” do
Homo
œconomicus
neoliberal – ativo, hiperindividualizado, empresa de si. No mesmo escopo, M.
Bujes (2008) vai indicar que a ação das pedagogias sobre o espaço-tempo da educação infantil
diz respeito a um cuidado com o meio símil, para não dizer o igual, àquele das estratégias
neoliberais de controle indireto ambiental.
A individualização da criança (MARCHI, 2007), sob o regime neoliberal, atinge outras
dimensões. Seu governo, então, vai refinando-se mais e mais: as punições físicas vão sendo
substituídas pela medicalização dos corpos, as almas vão sendo psicologizadas e os desejos
mercantilizados. Esses sujeitos-crianças-adultos-pacientes-clientes vão sendo atravessados por
discursos que prometem a cura e/ou ganho performático. E assim, pouco a pouco, as diferenças
em vez de homogeneizadas para tornarem-se úteis, são utilizadas em sua diversidade, por meio
da customização da vida. A normalidade já não é do campo moral, mas econômico – se
produtivo, normal.
Nesse jogo de (a)normalidade que, sabidamente, os saberes psi tiveram e têm especial
importância, e onde, também, a criança passa a ter um lugar especial na constatação da patologia
ou desvio:
A infância como fase histórica do desenvolvimento, como forma geral de
comportamento, torna-se o instrumento maior da psiquiatrização. E direi que
é pela infância que a psiquiatria veio a apropriar-se do adulto e da totalidade
do adulto. A infância foi o princípio da generalização da psiquiatria; a infância
foi, na psiquiatria como em outros domínios, a armadilha para adultos
(FOUCAULT, 1999, p. 286-287).
Ser portador de um vestígio qualquer de infantilidade significava ser compreendido
como patológico. Ao mesmo tempo em que, doravante, com o advento do
self-made man
,
desdobra-se toda uma literatura em que a saúde (leia-se, saúde para uma boa
performance
)
advém da reconexão com a criança interior. A criança, então, fica capturada nos dois polos do
dispositivo: é signo de doença e parte da tecnologia de uma saúde para o bom desempenho. A
criança é tomada na articulação entre saberes “psi” e saberes pedagógicos, tanto em um nível
individual quanto populacional. Atua, aí, tanto a norma e a exclusão do anormal em função de
um modelo de criança (e de adulto) a ser subjetivado em cada um; quanto nos cálculos
estatísticos e de investimento (estatal e privado), por meio da inclusão da anormalidade nos
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fenômenos populacionais, tornando as condutas infantis desviantes, parte do jogo do mercado
e das políticas públicas.
Embora o dispositivo pedagógico seja evidente na escola, sua atuação a extrapola, assim
como sua composição excede o campo dos saberes estritamente escolares. O “pedagógico” do
dispositivo, inclusive, é muito mais amplo que o estritamente pedagógico e cada vez mais
composto por coisas externas ao campo da Educação. Alguns autores apontam o que seria uma
espécie de colonização do pedagógico pelo discurso empreendedor e pelo
modus operandi
do
mercado: aprendizagem, eficácia, flexibilidade, informação, inovação, interatividade,
motivação, problema-solução, profissionalismo, qualidade, rede, utilidade etc. (BIESTA, 2017;
LARROSA, 2019; LAVAL, 2019). O
ethos
empresarial adentra a instituição escolar e o saber
pedagógico, expressando-se fortemente sobre a dinâmica da
performance
, sobre o que
Masschelein e Simons (2014, p. 114) escrevem:
Com o advento da performatividade, o impulso competitivo converte-se em
um fim em si mesmo e se cria uma cultura da prova e do espetáculo e,
evidentemente, uma corrida em tudo e para tudo. As palavras-chave de uma
sociedade baseada no rendimento são bem conhecidas: mais rápido é melhor;
mais é melhor; parar é retroceder. Pensemos na mentalidade de rendimento
que permeia o mundo dos carros, dos computadores e, também, dos
pesquisadores [...]. A obsessão com resultados de aprendizagem e com os
ganhos na aprendizagem se poderia considerar como equivalente educativo de
tudo isso. Assim como o chicote da eficiência e da eficácia deriva na
instrumentalização [...], o chicote da performatividade conduz ao controle.
O dispositivo pedagógico moderno não é um aparelho restrito ao interior da instituição
escolar, ele faz parte da frenética e multilateral atualização dos aparatos de Estado e outras
instâncias de gestão social e econômica. Ele abarca uma variada gama de estratégias e hábeis
máquinas de captura que buscam governar a infância. Em suma, ante à força desconcertante da
infância, a modernidade inventou um dispositivo – pedagógico, chamamos aqui – complexo e
multifacetado para capturá-la. Assim o descreve J. Larrosa (2017, p. 230):
A infância é algo que nossos saberes, nossas práticas e nossas instituições já
capturaram: algo que podemos explicar e nomear, algo sobre o qual podemos
intervir, algo que podemos acolher. A infância, desse ponto de vista, não é
outra coisa senão objeto de estudo de um conjunto de saberes mais ou menos
científicos, a coisa apreendida por um conjunto de ações mais ou menos
tecnicamente controladas e eficazes, ou a usuária de um conjunto de
instituições mais ou menos adaptadas às suas necessidades, às suas
características ou às suas demandas. Nós sabemos o que são as crianças, ou
tentamos saber, e procuramos falar uma língua que as crianças possam
entender enquanto tratamos como elas, nos lugares que organizamos para
abrigá-las.
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Ainda que se disponha de um largo rol de refinados saberes, práticas e instituições para
a infância, as crianças não são meros efeitos desse dispositivo. Ao mesmo tempo em que a
infância captura a criança e faz dela um sujeito neoliberal, governável, a criança é um “outro”,
ou seja, “aquilo que, sempre além de qualquer tentativa de captura, inquieta a segurança de
nossos saberes, questiona o poder de nossas práticas e abre um vazio em que se abisma o
edifício bem construído nossa instituição.” (LARROSA, 2017, p. 230).
Simulacro, devir e criança
A ideia de norma passa epistemologicamente e ontologicamente, inescapavelmente,
pela figura do modelo e pela questão da semelhança, que podemos chamar de jogo da
representação. Nesse jogo os corpos materiais são submetidos a assemelhar-se a um modelo
que eles reapresentam. Ainda que se reconheça que o modelo tenha variações históricas, ele
produz uma intrusão de maior ou menor grau num plano de transcendentalidade, em que o que
o corpo precisa corresponder a algo fora de seu próprio plano de existência, seja esse fora do
âmbito mais das ideias, dos conceitos ou, ainda, das palavras. Uma das filosofias fundantes,
senão
a
filosofia fundante, do jogo da representação e do modelo foi a platônica.
N’
A República
de Platão (2018) está uma das alegorias mais célebres da filosofia: a
alegoria da caverna. É nesse diálogo em que o filósofo ateniense expõe elementos fundamentais
de sua epistemologia e ontologia. Analisando o jogo feito na alegoria entre as figuras do Sol,
da caverna e das sombras, Paulo Ghiraldelli (2009, p. 79) afirma:
O que está em jogo são as distinções entre o mundo inteligível, que no limite
é banhado pelo Sol, que faz o papel do bem, e o mundo sensível e ilusório,
que é o mundo representado, na alegoria, pelas sombras. Todos os homens
estão, é claro, no mundo sensível. Andam, comem, dormem – assim vivem no
mundo que é continuamente mutável, do fluxo de alternância, que Heráclito
viu como sendo o mundo real. Ora, é um mundo existente, porém imperfeito.
O mundo imutável, o que se pode chamar de real, não é uma realidade perfeita;
no entanto, neste mundo, com o os pés no chão, pode-se captar a que está na
realidade não sensível, no mundo real daquilo que não muda: o lugar das
formas. Todas as formas estão ali, reais, e o ambiente é alimentado e mantido
por uma das formas, a forma do bem — que, na alegoria da Caverna, é o Sol.
A tensão ontológica que se expõe aqui, segundo o intérprete, é aquela clássica entre o
mundo sensível e o inteligível, entre o que é a realidade perfeita, do mundo das Ideias, e aquela
imperfeito, do mundo das cópias. Já o aspecto epistemológico é aquele em que o ser humano
caminha entre esses dois mundos. Ao sair da caverna, o indivíduo saía da condição de sombra,
que antes tomava como realidade, e, vendo as coisas iluminadas pela luz do Sol, ascendia a um
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novo plano, o inteligível. Assim, Platão mostraria um caminho a ser percorrido até se chegar ao
conhecimento da verdade, pela contemplação da ideia de Bem.
Essa divisão (sensível/inteligível, ideias perfeitas/cópias imperfeitas,
essência/aparência) é onde se costuma colocar a tônica da leitura do livro VI d’
A República
(PLATÃO, 2018), desde onde a questão ontológica – essência do ser – costuma dar lugar à
questão (ascética) da epistemologia – acesso à verdade do ser. Na perspectiva platônica, são os
objetos do mundo inteligível, por sua ordem e estabilidade, que permitem o conhecimento
verdadeiro, enquanto os objetos do mundo sensível, por sua vez, fazem o conhecimento
inviável, dada sua imersão na instabilidade, misturas e transformações constantes. Os objetos
inteligíveis (modelos), então, coordenariam os objetos sensíveis (cópias), tornando possível um
conhecimento da essência das coisas – em sua ordem e limites – a partir do contato com o
sensível. Contudo, as cópias que para Platão (2018) seriam válidas para esse acesso à verdade
seriam aquelas que, ainda que imperfeitas, manteriam um mínimo de semelhança com o
modelo, permitindo assim, extraí-la (ou abstraí-la) de sua imperfeição, submetendo-a ao jogo
da identidade e do ser e, assim, remetendo-a a uma essência única, verdadeira e estável. Aos
objetos que escapam à representação, ou seja, à possibilidade de serem remetidos a um modelo,
Platão (2018) chamou de “simulacro”. Quando essa cópia sem modelo, justamente pela
ausência de modelo, não se deixa subjugar à estabilidade do ser e não interioriza um nível
mínimo necessário de semelhança, ela deve ser desprezada (ou esconjurada) no caminho de
ascese à verdade, em favor das boas cópias.
Comumente o centro de gravidade do platonismo é posto na relação entre modelo e
cópia, por conseguinte, sua reversão dar-se-ia pela sujeição do mundo inteligível ao mundo
sensível. Porém, em
Diferença e repetição
, Gilles Deleuze (2011, p. 166) propõe um
deslocamento no cerne da “verdadeira distinção platônica”, dizendo que “ela não está entre o
original e a imagem, mas entre dois tipos de imagens. Ela não está entre o modelo e a cópia,
mas entre dois tipos de imagens (
ídolos
), cujas cópias (
ícones
) não são senão o primeiro tipo,
sendo a outra constituída pelos simulacros (
fantasmas
).” Assim, o ponto de reversão estaria, de
fato, na relação entre representação e simulacro, ou seja, na impossibilidade de ele funcionar
adequadamente no interior do esquema em que o modelo sujeita a cópia (imperfeita) pela
identidade e estabilidade (de sentido).
Em “Platão e o simulacro”, Deleuze (1969) expõe o efeito da lógica dialética na qual
s
eria possível prolongar o esquema da representação, do modelo à cópia mais imperfeita e vice-
versa, salvo quando essa “cópia” não carregasse um grau mínimo de semelhança, ou seja,
quando sua degradação ou imperfeição alcançasse o grau de “simulacro”. A função maior do
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método de divisão platônico não seria, pois, estreitar a distância entre o mundo inteligível e
sensível, mas apartar o pensamento de seu risco maior: as más cópias, os simulacros. A divisão,
latente, entre cópia e simulacro, instalaria um ponto crucial para a filosofia platônica, qual seja,
aquele da condição de possibilidade de um conhecimento verdadeiro. Tamanha a força do
simulacro que Platão (2018) não encontra outra saída para lidar com ele senão sua exclusão,
como exposto acima. Daí que a tarefa da filosofia contemporânea passaria, para Deleuze,
necessariamente pelo simulacro, pelo corte que ele produz no mundo sensível e na relação com
a verdade:
[...] o simulacro implica grandes dimensões, profundidades e distâncias que o
observador não pode dominar. É porque ele não as domina que experimenta
uma impressão de semelhança. O simulacro inclui em si o ponto de vista
diferencial; o observador faz parte do próprio simulacro, que se transforma e
se deforma com seu ponto de vista (DELEUZE, 1969, p. 298).
O vão que o simulacro abre na epistemologia platônica implica, ao mesmo tempo, um
estreitamento – e mesmo uma eliminação – da distância entre sujeito e simulacro, que se
transforma e deforma juntamente ao ponto de vista. Essa transformação e instabilidade
indomável colocada pelo simulacro faz com que todo o platonismo (e seus herdeiros) seja
dominado por uma espécie de obsessão contra o simulacro, precisando sempre de uma distinção
entre esse e “a coisa mesma”. No entanto, a proposto de uma filosofia da diferença deleuziana
vai noutro sentido, propondo, assim, a “reversão do platonismo”, ou seja, “recusar o primado
de um original sobre a cópia, de um modelo sobre a imagem. Glorificar o reino dos simulacros
e dos reflexos” (DELEUZE, 2011, p. 92).
O simulacro assim é algo que existe a despeito ou independentemente da existência de
um plano de transcendência – mundo inteligível, no caso de Platão – que coordenaria o plano
da matéria ou do sensível. Os simulacros são os indóceis, a margem ilimitada e mutante que
não se deixa efetivamente conformar e fixar contornos. A existência do simulacro, assim, dá-
se num “plano de imanência” – plano cujas regras, ordens e fundamentos residem em si mesmo
(e não em um plano exterior e transcendente). Sem esse plano de transcendência, o simulacro
não possui vínculo ou dependência de um ser (essência estável), ainda que “virtual” (
e.g.
, o ser
da árvore que virtualmente coordenaria o vir-a-ser da semente). No plano de imanência, em que
sujeito e objeto se misturam, o simulacro existe enquanto devir (
i.e.
, num perpétuo entre-ser,
quase-ser ou “?-ser”) (DELEUZE, 2011).
Por fim, na reversão do platonismo, há uma reversão do estatuto do próprio (conceito
de
) simulacro. Para Platão (2018), o simulacro constitui o avesso da filosofia: uma cópia
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malfeita, e mesmo uma má cópia, que se furta a qualquer modelo real, ludibriando o sujeito do
conhecimento e inviabilizando a ascese à verdade. Em Deleuze (2011, 1969), o simulacro ganha
um estatuto novo e passa a ser um conceito impulsionador do pensamento filosófico, como o
explica Favreto (2012, p. 161): “O simulacro não corresponde nem à Cópia, como reprodução,
e nem à Ideia, como modelo, j
á́
que não traz vinculado em seu âmago a representação”.
Portanto, a reversão do platonismo não é apenas a “transvaloração dos valores”, mas a abertura
da filosofia ao pensamento “sem imagem”, ao pensar sem modelo(s) e onde a criação sobrepõe-
se à representação.
Valendo-se do pensamento do filósofo alemão Friedrich Nietzsche, Gilles Deleuze vai
aproximar simulacro e eterno retorno (do mesmo), o que parece paradoxal: como poderia o
simulacro, esse conceito selvagem e arredio a todo modelo, ligar-se ao Eterno Retorno do
Mesmo?
A ideia de “eterno retorno” consiste em uma repetição eterna do mesmo, como
em Nietzsche; mas, o que seria este mesmo? Retornamos aqui à Diferença.
Poderíamos, assim, dizer que o que há é um “eterno retorno da Diferença”, já
que é a Diferença que sempre retorna como multiplicidade, que sempre se
repete singularmente. O simulacro pode ser, assim, concebido como a própria
Diferença, pois se reconhece nele uma potência capaz de se manifestar como
acontecimento. O Acontecimento se compreende como a manifestação da
singularidade, já que nenhum acontecimento é igual ou semelhante ao outro,
tudo o que acontece é novo e único (FAVRETO, 2012, p. 161, grifo do autor).
Ainda que o tema desse texto não coincida com aquele central de
Diferença e Repetição
,
o pensamento deleuziano parece ajudar-nos na medida em que o processo de “diferenciação” –
esse acontecimento em que a diferença repete como único mesmo possível – é,
fundamentalmente, um processo de
criação
.
Assim, o simulacro é a dissimilitude, singularidade, a própria diferença e, portanto,
aquilo que nos permitiria um pensamento criador. O que Deleuze (2011) faz é apenas um dos
modos possíveis de seguir o que indica F. Nietzsche (2011, p. 29): “achar delírio e arbítrio até
no mais sagrado.” Ainda que nos afastemos do uso deleuziano do eterno retorno do mesmo
nietzscheano, esse conceito ainda nos seria de grande valor. Afinal, para Nietzsche (2011),
apenas aquilo que é forte o suficiente é capaz de retornar, somente aquilo que há de mais nobre
volta a ser eternamente. E o que mais seria nobre e forte para o pensamento nietzscheano que a
criação? O Mesmo em Nietzsche (2011), parece-nos, não poderia deixar de passar pela questão
do novo, ainda que essencialmente o mesmo. Ora, o simulacro é esse conceito que dá vazão ao
eterno retorno, que permite a não cristalização do sensível por subordinação ao inteligível.
Qual a figura, em Nietzsche, então, carregará a potência criativa em último grau? A
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criança! Afinal, a criança, em Nietzsche (2011), pode fazer aquilo que o leão e o camelo jamais
poderiam. Ela pode a criação – jogando com o mundo e com um esquecimento ativo, abrir
espaço no já dado ou instituído, para que outra coisa possa ganhar lugar.
Seja a partir de um conceito biológico de criança, ou seja, a partir de práticas atreladas
à criança psicopedagogizada, medicalizada, mercantilizada, culturalizada etc., instituiu-se com
isso
a
criança (
i.e.
, um indivíduo que é efeito de um modelo de criança e que se assujeita aos
ditames que a tratam como um sujeito/objeto da infância). Contrariando essa infância-modelo,
propomos abdicar dos ideais e as mais variadas categorizações infantis e seus efeitos, para
então, ao invés de se tentar definir
a
criança e enunciar
o que ela é
, abrir espaço àquilo
que ela
pode
. A contraposição d’
a
criança
a
uma
criança, entanto que potência – criança-potência e
devir criança – já foi explorada por vários autores e autoras (CORAZZA, 2008; DELEUZE;
GUATTARI, 1980; KOHAN, 2010; ORLANDI, 2018). Nessa perspectiva, pode-se enunciar
uma criança-potência (ou potência de criança) capaz de brincar e de suspender o tempo
cronológico, o tempo funcional, suspender “o que é” e “o que deve ser” e ainda, aquela que
pode acessar o tempo aiônico (HERÁCLITO, 2017), o tempo do jogo e, por que não, o tempo
do simulacro. Eis então, a possibilidade de
uma
criança-potência tornar-se parte da ordem do
simulacro, do devir (ou do entre-ser).
Uma vez que o “simulacro não é uma cópia degradada, ele contém uma potência positiva
que nega o original e a cópia, e o modelo e a reprodução” (DELEUZE, 1969, p. 303), a criança
pensada a partir do simulacro, no entanto, ademais de não existir como
a
criança e como
potência para o pensamento, seria uma derradeira abertura para a imanência. Em vez de estar
sujeitado a um modelo, a ser cópia, a criança-simulacro é sempre um conceito em devir. A
questão aqui, no entanto, não seria tanto a de um devir-criança que, arrastando para aquém/além
da territorialidade maior do adulto, levar-nos-ia a pensar, existir, experimentar diferentemente,
independentemente da idade daquele que entraria em devir (DELEUZE; GUATTARI, 1980).
Se positivamos o simulacro, e não o entendemos como falta (de um modelo), mas como
e
xistência plena e aberta ao devir, é o próprio conceito de criança aí que se abre a um eterno
retorno da diferença. A criança nietzscheana redobra-se sobre si mesma e permite-nos pensar a
si mesma como um conceito em devir, como um conceito lançado nos territórios da invenção,
do esquecimento (ativo) e da imanência. Intentamos arrancar, com isso, o conceito de criança
desse lugar em que ela é concebida como estágio (biológico, psicológico, jurídico etc.) do
humano, especialmente marcado pela incompletude ou pela falta, mas também, e sobretudo, do
liberá-la do subjugo (permanente) do modelo, lançada à experiência (eterna) da diferenciação.
A criança, desse modo, poderia ser arrastada para outros lugares do pensamento, reabrindo-a
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para uma existência sem modelos – para além de deuses e demônios (ou querubins e diabretes):
criança-simulacro
. Uma criança, extrapolando a ideia de L. Orlandi (2018), como heroína do
próprio conceito de criança.
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O dispositivo pedagógico moderno e a criança-simulacro: Para pensar diferentemente a infância
RIAEE
– Revista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 17, n. 3, p. 1736-1754, jul./set. 2022. e-ISSN: 1982-5587
DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v17i3.15975
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2018.
Como referenciar este artigo
SAMPAIO, H. A. S.; AUGSBURGERL. G. O dispositivo pedagógico moderno e a criança-
simulacro: Para pensar diferentemente a infância.
Revista Ibero-Americana de Estudos em
Educação
, Araraquara, v. 17, n. 3, p. 1736-1754, jul./set. 2022. e-ISSN: 1982-5587. DOI:
https://doi.org/10.21723/riaee.v17i3.15975
Submetido em
: 07/12/2021
Revisões requeridas em
: 15/02/2022
Aprovado em
: 22/05/2022
Publicado em
: 01/07/2022
Processamento e editoração: Editora Ibero-Americana de Educação.
Revisão, formatação, normalização e tradução.
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El dispositivo pedagógico moderno y el niño-simulacro: Para pensar distintamente la niñez
RIAEE
– Revista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 17, n. 3, p. 1743-1761, jul./sept. 2022 e-ISSN: 1982-5587
DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v17i3.15975
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EL DISPOSITIVO PEDAGÓGICO MODERNO Y EL NIÑO-SIMULACRO: PARA
PENSAR DISTINTAMENTE LA NIÑEZ
O DISPOSITIVO PEDAGÓGICO MODERNO E A CRIANÇA-SIMULACRO: PARA
PENSAR DIFERENTEMENTE A INFÂNCIA
THE MODERN PEDAGOGICAL DEVICE AND THE SIMULACRUM-CHILD: FOR A
DIFFERENT WAY OF THINKING ABOUT CHILDHOOD
Helena Almeida e Silva SAMPAIO
1
Luiz Guilherme AUGSBURGER
2
RESUMEN
: Este artículo, explorando la tensión entre la constitución de una noción de niñez
gobernable y aquella fuerza indómita del niño, que se nos escapa, propone reflexiones sobre el
concepto de niño en devenir: el niño-simulacro. Por lo tanto, por una parte, desde las nociones
de biopolítica, neoliberalismo y dispositivo trabajadas por Michel Foucault, se busca trazar la
formación de un concepto de niñez gobernable desde el dispositivo pedagógico moderno, sobre
todo, en su forma neoliberal. Por otra, se explora la idea de simulacro, devenir y su relación con
las nociones de niño, en Friedrich Nietzsche y Gilles Deleuze, huyéndose a los conceptos
trascendentales y transcendentalizantes, para, por último, proponer reflexiones respecto al
concepto de niño como simulacro, siendo la propria noción algo en constante devenir y
inmanencia.
PALABRAS CLAVE
: Contemporaneidad. Dispositivo. Niñez. Simulacro.
RESUMO
: Este artigo, explorando a tensão entre a constituição de uma noção de infância
governável e aquela força indômita da criança, que nos escapa, propõe reflexões sobre o
conceito de criança em devir: a criança-simulacro. Para tanto, por um lado, a partir das
noções de biopolítica, neoliberalismo e dispositivo trabalhadas por Michel Foucault, busca-se
delinear como se forma um conceito de infância governável a partir do dispositivo pedagógico
moderno, sobretudo em sua forma neoliberal. Por outro, explora-se a ideia de simulacro, devir
e sua relação com as noções de criança, em Friedrich Nietzsche e Gilles Deleuze, escapando-
se aos conceitos transcendentais e transcendentalizantes, para, por fim, propor reflexões
acerca do conceito de criança como simulacro, sendo a própria noção algo em constante devir
e imanência.
PALAVRAS-CHAVE
: Contemporaneidade. Dispositivo. Infância. Simulacro.
1
Pontificia Universidad Católica (PUC), São Paulo – SP – Brasil. Estudiante de doctorado del Programa de
Posgrado en Filosofía. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6639-8670. E-mail: helenaalmeida@me.com
2
Universidad Estatal de Santa Catarina (UDESC), Florianópolis – SC – Brasil. Estudiante de doctorado del
Programa de Posgrado en Educación. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3136-9890. E-mail:
luizg.augs@gmail.com
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Helena Almeida e Silva SAMPAIO
y
Luiz Guilherme AUGSBURGER
RIAEE
– Revista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 17, n. 3, p. 1743-1761, jul./sept. 2022. e-ISSN: 1982-5587
DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v17i3.15975
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ABSTRACT
: Exploring the tension between the constitution of a notion of governable
childhood and that child untamed power, this paper proposes reflections on the concept of a
becoming childhood: the simulacra-child. Therefore, on the one hand, from the notions of
biopolitics, neoliberalism, and dispositive studied by M. Foucault, it seeks outline how a
childhood concept is formed as of the modern pedagogic dispositive, mainly on its neoliberal
form. On the other hand, it explores the idea of simulacra, becoming, and their relations with
child notions, from F. Nietzsche, and G. Deleuze, slipping out of transcendental and
transcendentalizing concepts, to be proposed, finally, reflections on the concept of child as
simulacra, being the notion itself in continuous becoming and immanence.
KEYWORDS
: Contemporaneity. Dispositive. Child. Simulacrum.
Nota del preámbulo
En "El rompecabezas del niño", Larrosa (2017) señala una ambigüedad en torno a la
infancia en nuestro tiempo. Los niños son "estos seres extraños de los que no se sabe nada, estos
seres salvajes, que no entienden nuestro idioma" y, al mismo tiempo, "la infancia es algo que
nuestro conocimiento, nuestras prácticas y nuestras instituciones ya han capturado: algo que
podemos explicar y nombrar, algo en lo que podemos intervenir, algo que podemos acoger"
(LARROSA, 2017, p. 229-230). A esta disposición diversa de prácticas, instituciones y
conocimientos que permite un gobierno de la infancia y lo hace productivo según ciertos
criterios de verdad, lo llamamos el "dispositivo pedagógico". En su forma contemporánea para
nosotros, este dispositivo proporciona la gestión neoliberal de la vida de un niño, para
capitalizarla. La explosión de prácticas discursivas y no discursivas en torno a la infancia, sin
embargo, no impide que el niño resida en un poder indómita, que no solo está aprehendiendo
no solo en el plano material de este niño conocimiento-poder, sino en un territorio conceptual
y existencial. El niño, en este sentido, se relacionaría, según Larrosa (2017, p. 230), con lo que,”
que, siempre más allá de cualquier intento de captura, inquieta la seguridad de nuestro
conocimiento, cuestiona el poder de nuestras prácticas y abre un vacío en el que se asombra el
edificio bien construido de nuestras instituciones de acogida". Lo que exploraremos en este
artículo, entonces, es precisamente, por un lado, la forma en que funciona este moderno
dispositivo pedagógico –en su forma contemporánea para nosotros, produciendo y gestionando
mucho una infancia en mayúsculas– y, por otro lado, cómo, en vista de esto, sería posible liberar
no solo al sujeto-niño, sino también, y sobre todo, al concepto-niño, de los usos neoliberales y
biopolíticos que se hacen dentro de este dispositivo pedagógico.
Para ello, este artículo se dividirá en dos partes. En el primero, exploramos elementos
en torno al dispositivo pedagógico moderno y la infancia contemporánea: los significados de
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El dispositivo pedagógico moderno y el niño-simulacro: Para pensar distintamente la niñez
RIAEE
– Revista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 17, n. 3, p. 1743-1761, jul./sept. 2022 e-ISSN: 1982-5587
DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v17i3.15975
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poder y dispositivo, de Michel Foucault; el funcionamiento de la biopolítica y las cuestiones de
gobierno del individuo y la población que implica, explotadas por el mismo autor; las
diferencias de esta lógica de gobierno, en sus variaciones liberales y neoliberales, así como sus
reverberaciones sobre la infancia (contemporánea). En la segunda parte, exploramos elementos
en torno al simulacro, el devenir y sus consecuencias en el concepto de niño: cuestiones
epistemológicas y ontológicas que involucran las relaciones entre modelo, copia y simulacro,
especialmente en Platón; la inversión del platonismo o la positivación del simulacro en el
pensamiento contemporáneo (filosófico), de Gilles Deleuze y Friedrich Nietzsche; y, por
último, las consecuencias de esto en el concepto de niño-simulacro.
Dispositivo pedagógico e infancia contemporánea
Para explorar la idea de un dispositivo pedagógico moderno, más bien, parece prudente
rastrear lo que entendemos por dispositivo y cómo se relaciona con la idea de conocimiento y
poder (o verdad y gobierno), de Michel Foucault. En los escritos del pensador francés, el poder
no se refiere a una teoría, ni se refiere a una "idea", a una "sustancia" o "identidad teórica"
(FOUCAULT, 1975), como algo rastreable en algún lugar o persona. Siempre es una "relación
de poder" y, como tal, es un ejercicio, una práctica que se facilita y forma el tejido del tejido
social. Esto se aplica tanto a las relaciones y prácticas educativas institucionalizadas, como a
aquellas que, dentro y fuera de los espacios educativos, forman y conducen a los niños de una
manera menos institucional (
por ejemplo
, anuncios dirigidos a los niños o libros "manuales
pedagógicos" para los padres). El "poder", de donde lo tomamos en este artículo, "existe solo
en su concreto, multifacético y cotidiano" (MUCHAIL, 2017, p. 14). En su naturaleza cotidiana
y multifacética, el poder prescinde de una unidad supra relacional o metafísica, ni, dada la
heterogeneidad de las formas en que tienen lugar las relaciones de poder, no pueden agruparse
en un concepto homogéneo o generalizable, que podría individualizarse aquí y allá. Debido a
esto, evocamos la noción de "dispositivo".
La noción de dispositivo de Foucault no solo se refiere a las relaciones de poder y / o
prácticas no discursivas, sino que también abarca el conocimiento y las prácticas discursivas.
Las prácticas, estrategias, tecnologías e instituciones de conocimiento y poder es lo que un
"dispositivo estratégico" entenderá. En el dispositivo, por lo tanto, se entrelazan elementos
heterogéneos de estos, lo que permite articular prácticas discursivas y no discursivas, sin la
intención de amalgamarlas. Admitirá tanto la presencia de efectos de poder en las prácticas
discursivas, y también se dará cuenta de los efectos de la verdad en las prácticas de poder. Un
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Helena Almeida e Silva SAMPAIO
y
Luiz Guilherme AUGSBURGER
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– Revista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 17, n. 3, p. 1743-1761, jul./sept. 2022. e-ISSN: 1982-5587
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ejemplo de ello es
en Vigilar y
Castigar (FOUCAULT, 1975), donde el autor muestra el
funcionamiento de un dispositivo disciplinario y cómo sus dimensiones de conocimiento y
poder son apoyadas y tensadas, sin que ello resulte en la síntesis o jerarquización de los mismos.
Además, Michel Foucault (1975, p. 162-163) explica la heterogeneidad e inmanencia de la
"invención" de este dispositivo:
[...] no debe entenderse como un descubrimiento repentino. Pero una
multiplicidad de procesos que a menudo son mínimos, de diferentes orígenes,
de ubicaciones dispersas, que se recuerdan, se repiten o se imitan entre sí, se
apoyan entre sí, se distinguen según su campo de aplicación, entran en
convergencia y esbozan gradualmente la fachada de un método general.
Las nociones con las que trabaja Foucault no existen de manera abstracta y genérica,
sino siempre en sus usos específicos y plurales, a partir de los cuales es posible encerrarlas y
trasladarlas a otros contextos y/o usos, realizando los ajustes adecuados. El dispositivo
pedagógico, como pensamos desde Foucault, tiene como condición de posibilidad la
confluencia de dos prácticas o estrategias de gobierno, que emergen, en distinto tiempo y ritmo,
en contraste con la lógica soberana,
del antiguo régimen
. Es a partir del siglo 17 que el poder
soberano – para hacer morir y dejar vivir – cuya política de la muerte emanó de la figura del
rey y se expresó a través del tormento (público), está dando paso a un poder sobre la vida.
Mientras que el poder soberano escapaba a las cosas, tanto a nivel del individuo como a nivel
de la población, esta forma moderna de poder articulaba tanto la disciplina de los individuos,
como la estadística y los cálculos de probabilidad de la población, permitiendo un tratamiento
más exhaustivo y/o específico en el manejo de estos sujetos. A esta nueva forma de gobierno
Michel Foucault (2004b) le dio el nombre de "biopolítica".
La biopolítica actúa activamente sobre la vida, tanto individual como a nivel de la
especie humana, buscando gestar y expandir las fuerzas de los sujetos, basándose en un criterio
de gubernamentalidad. Este criterio, también llamado veridicción, es el que nos permite definir
qué prácticas son verdaderamente apropiadas, eficientes, correspondientes a una lógica o no; es
lo que permite, por ejemplo, calcular qué estrategias de poder son deseables o constituyen un
buen gobierno, o no.
Hasta la primera mitad del siglo 20, pero, sobre todo, a lo largo del siglo
19, este criterio de veridicción era el mercado y su sujeto, el
Homo œconomicus
liberal, sujeto
de intercambio. El mercado, por lo tanto, constituía la lógica desde la cual se podía evaluar la
eficiencia de las prácticas biopolíticas de la época: no se trataba de lograr una sociedad o una
conducta ideales de los individuos, sino de definir, a partir de la realidad "natural" de las
poblaciones, qué prácticas tenían un efecto deseado en la vida de los sujetos, haciéndolos
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El dispositivo pedagógico moderno y el niño-simulacro: Para pensar distintamente la niñez
RIAEE
– Revista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 17, n. 3, p. 1743-1761, jul./sept. 2022 e-ISSN: 1982-5587
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productivos. A partir de la Segunda Guerra Mundial, hubo un cambio en esta lógica y fue a
partir de un neoliberalismo, ya sea en su forma alemana (ordoliberalismo), o en su forma
estadounidense (anarcolipberalismo) - que una gubernamentalidad específica comenzó a
organizarse. La veridicción del mercado se ha convertido en un cálculo de rentabilidad e
inversión, un juego de producción y administración de libertades, mientras que el sujeto dejó
de ser el de intercambio y se convirtió en el que se entiende a sí mismo como una empresa.
Cuando arrastramos la biopolítica al campo pedagógico, vemos la acción de ambas
tecnologías, cuyo objeto es el cuerpo-individuo, y aquellas cuyo objeto son las poblaciones. A
través del sesgo de la disciplina, se puede posicionar el dispositivo pedagógico como el proceso
de fabricación de un sujeto dócil política y económicamente útil, en el que el cuerpo deja de ser
incapaz, para convertirse en la máquina que se necesita y que funciona como quiere. Esto se
produce a través de una acción calculada y meticulosa, atenta a los detalles, que "recorre cada
parte del cuerpo, se apodera de él, dobla el conjunto, lo hace perpetuamente disponible y