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O brincar possível em tempos de isolamento: O desenvolvimento das funções psíquicas superiores da memória e da imaginação
RIAEE
– Revista Ibero-Americana de Estudos em Educação,
Araraquara, v. 17, n. esp. 2, p. 1254-1271, jun. 2022. e-ISSN: 1982-5587
DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v17iesp.2.16055
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O BRINCAR POSSÍVEL EM TEMPOS DE ISOLAMENTO: O
DESENVOLVIMENTO DAS FUNÇÕES PSÍQUICAS SUPERIORES DA MEMÓRIA
E DA IMAGINAÇÃO
LOS JUEGOS POSIBLES EN TIEMPOS DE AISLAMENTO: EL DESARROLLO DE
LAS FUNCIONES PSÍQUICAS SUPERIORES DE LA MEMORIA Y LA
IMAGINACIÓN
POSSIBLE PLAY IN TIMES OF ISOLATION: THE DEVELOPMENT OF SUPERIOR
PSYCHOLOGICAL FUNCTIONS OF MEMORY AND IMAGINATION
Aline Patricia Campos Tolentino de LIMA
1
Joana de Jesus de ANDRADE
2
RESUMO
: Este estudo busca investigar o desenvolvimento das funções psíquicas superiores
da memória e da imaginação no momento da brincadeira de faz de conta. A pesquisa está
fundamentada na Psicologia Histórico-Cultural que contempla o desenvolvimento das funções
psíquicas superiores, considerando que o processo de desenvolvimento cultural da criança é o
alicerce para a constituição das funções psíquicas. Partindo desse referencial teórico, a pesquisa,
de cunho qualitativo, foi realizada com os seguintes recursos metodológicos: investigação
participativa e a observação. Com este estudo, foi possível ampliar a discussão teórica sobre
como se constituiu a brincadeira de faz de conta mesmo em um momento de isolamento e
distanciamento social no cotidiano da Educação Infantil, contribuindo para o desenvolvimento
da memória e da imaginação.
PALAVRAS-CHAVE
: Funções psíquicas superiores. Memória. Imaginação. Brincadeira de
faz de conta.
RESUMEN
: Este estudio busca investigar el desarrollo de las funciones psíquicas superiores
de la memoria y la imaginación durante los juegos de fantasía. El objetivo general de esta
investigación fue analizar a partir de la investigación participativa el desarrollo de las
funciones psíquicas superiores de la memoria y la imaginación. La investigación se basa en la
psicología Histórico-Cultural que aborda un estudio amplio sobre el desarrollo de las
funciones psíquicas superiores, considerando que el proceso de desarrollo cultural del niño es
la base para la constitución de las funciones psíquicas. A partir de este marco teórico la
investigación cualitativa se realizó con los siguientes recursos metodológicos: la investigación
participativa y la observación. Con este estudio, fue posible ampliar la discusión teórica sobre
cómo se constituyeron los juegos de fantasía incluso en un momento de aislamiento y
1
Universidade de São Paulo (USP), Ribeirão Preto – SP – Brasil. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em
Educação. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6834-7209. E-mail: alinetolentino@usp.br
2
Universidade de São Paulo (USP), Ribeirão Preto – SP – Brasil. Docente do Departamento de Química e
Educação. Doutorado em Educação (UNICAMP). ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6161-2209. E-mail:
joanaj@ffclrp.usp.br
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Aline Patricia Campos Tolentino de LIMA e Joana de Jesus de ANDRADE
RIAEE
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Araraquara, v. 17, n. esp. 2, p. 1221-1238, jun. 2022. e-ISSN: 1982-5587
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distanciamiento social en la vida cotidiana de la Educación Infantil, contribuyendo al
desarrollo de la memoria y la imaginación.
PALABRAS CLAVE
: Funciones psíquicas superiores. Memoria. Imaginación. Juego de
fantasía.
ABSTRACT
:
This study aims to investigate the development of superior psychological
functions of memory and imagination during role-play. The general aim of this research was
to analyze the development of superior psychological functions of memory and imagination
through participatory investigation. The research is based on historical-cultural psychology
which encompasses a broad study on the development of superior psychological functions,
considering that the process of cultural of the child is the foundation for the constitution of
psychic functions. Based on this theoretical background, this qualitative research was
conducted with the following methodological resources: participatory investigation and
observation. Through the study, it was possible to broaden the theoretical discussion of how
role-play was set up, even in moments of isolation and social distancing in the routine of
Children’s Education, contributing to the development of memory and imagination.
KEYWORDS
:
Superior psychological functions. Memory. Imagination. Role-play.
Introdução
A brincadeira é a atividade pela qual a criança se apropria do mundo ao seu redor
(ELKONIN, 2009; VIGOTSKI, 2010)
3
. E, ao adentrar neste mundo, a criança tem em seu corpo
a possibilidade primeira de contato e, ao mesmo tempo em que ultrapassa os limites do corpo,
delimita, organiza e cria seu mundo psíquico, seu eu. A imbricada relação entre corpo, mundo
e o outro é uma tríade que não se define em descrições isoladas, senão pela imensidão de
possibilidades de inter-relação que constrói agora um novo mundo.
Mas as ações naturais e naturalizadas do brincar infantil, assim como das interações
sociais de maneira geral, foram completamente alteradas pelo advento da pandemia do Sars-
Cov2. A pandemia da doença Covid-19 impactou o mundo, as relações e, especialmente, as
crianças, que, sem ver o vírus, sem entender como ou porque um toque poderia ser perigoso,
foram (re)significando uma série de informações/ações/relações. Nas escolas, o retorno parcial
às aulas, a partir do segundo semestre de 2021, foi marcado pela emergência de “novos
normais” nessas relações. Para um retorno seguro foi necessário que as unidades escolares
seguissem os protocolos de segurança estabelecidos no Guia elaborado pelo Ministério da
3
A grafia do nome de Lev Semionovich Vigotski neste texto será feita utilizando as traduções mais atuais
diretamente da língua russa, que utilizam apenas a letra ‘i’ e não mais a letra ‘y’, como acontece nas traduções do
inglês ou do espanhol. Nas referências do texto, serão utilizadas as grafias originais de cada publicação.
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Saúde em nosso país, que contempla, por exemplo, o distanciamento social de um metro entre
as pessoas (crianças e adultos), o uso de máscaras, higienização periódica das mãos, não
utilização de objetos e restrição de uso de espaços coletivos. Nesse contexto, as interações entre
as crianças se constituíram de uma forma completamente diferente. E, se por mais de um ano
elas não puderam se tocar ou trocar objetos entre si, agora o “quase normal” vai sendo refeito
num misto de olhares desconfiados, ansiosos, mas ainda sob uma fiscalização adulta que as
crianças nem sempre entendem muito bem.
Assim, a imensidão de possibilidades de inter-relação que construiria um novo mundo
vai se moldando a situações menos diversificadas. E os questionamentos que surgem a partir
deste cenário são muitos: será que as crianças brincaram menos? Como e com quem brincaram?
Com que linguagens, objetos e brincadeiras? Por quais transformações passaram suas
percepções e conceitualizações? Enfim, como se desenvolveram e como tem sido o retorno às
atividades presenciais nas escolas?
Tais questionamentos, que têm a função aqui de suscitar reflexões, apontam para uma
das principais premissas da abordagem Histórico-cultural, que é a inter-relação entre biologia
e cultura. Ao afirmar que os processos mentais, que incluem sensações, percepções, linguagem,
memória, imaginação e raciocínio lógico, não devem ser considerados aspectos isolados da
psique ou do cérebro humano, Luria (1976/2017), com base em Vigotski (1932/1996), destaca
a complexidade da relação entre o biológico, o psicológico e o cultural. E, a partir da
consideração do funcionamento cerebral como um conjunto de sistemas funcionais complexos,
os autores colocam em foco que o estudo do desenvolvimento humano deve contemplar a
dinamicidade e a interfuncionalidade como premissas para qualquer interpretação.
Como pano de fundo, a investigação busca entender a construção de significados como
u
m “lugar”/“espaço-tempo” de expressão deste desenvolvimento, considerando que os sentidos
dos instrumentos e signos de sua cultura vão sendo ressignificados no ato de brincar. Ou seja,
a centralidade da cultura construída previamente ao nascimento da criança é fundamental para
definir o desenvolvimento das próximas gerações. Sobre isso, com base em Vigotski, Duarte
(2000) afirma que a relação adulto-criança é a fonte que impulsiona o desenvolvimento cultural
da criança e seria este o diferencial com o desenvolvimento orgânico. Isso porque, em termos
filogenéticos, diferentemente dos ontogenéticos, não havia alguém “mais evoluído” para que a
espécie humana se relacionasse e aprendesse, mas isso ocorre em termos ontogenéticos, ou seja,
a criança interage com pessoas que vivenciam uma cultura, hábitos e linguagens que vão então
balizando seu desenvolvimento cultural. Segundo Duarte (2000), “Isso torna extremamente
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Araraquara, v. 17, n. esp. 2, p. 1221-1238, jun. 2022. e-ISSN: 1982-5587
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complexa a análise do desenvolvimento infantil e põe no centro dessa análise a questão da
educação, pois tal desenvolvimento é fruto do processo educativo” (p. 106).
Isto posto, destaca-se que o fundamento do presente artigo é o estudo do
desenvolvimento humano de crianças em fase pré-escolar, portanto, entre quatro e cinco anos
de idade, no cotidiano de instituições de Educação Infantil, considerando um corpo em inter-
relação com o outro e com os objetos do mundo, num momento pós isolamento social. E, como
forma de circunscrever a investigação, apresentam-se aqui os resultados do estudo dos
processos de significação que abarcam o desenvolvimento das funções psíquicas superiores,
especificamente da memória e da imaginação em situações do cotidiano escolar. Para a
elaboração deste artigo foi realizado um recorte de uma pesquisa de campo tendo como
objetivos principais: analisar como as crianças se apropriam das funções psíquicas superiores
da memória e da imaginação no momento das brincadeiras de faz de conta.
O desenvolvimento das funções psíquicas da memória e da imaginação
O bebê humano é o mais frágil dos mamíferos e é totalmente dependente da
solidariedade e do cuidado de seus semelhantes, pois não consegue sobreviver por conta própria
(PINO, 2005). Desde o início ele precisa do outro para se desenvolver e se constituir como ser
(cultural) humano. Linhares e Facci (2021) destacam que “[...] as pesquisas sobre o
desenvolvimento do cérebro nos animais permitem afirmar que, geralmente, as novas
edificações acontecem a partir dos níveis do estágio anterior, e que para cada desenvolvimento
decisivo biológico existe uma mudança na estrutura e nas funções do sistema nervoso.” (p. 33).
No caso dos outros animais as mudanças evolutivas são estudadas a partir dos dados
filogenéticos, no plano biológico, enquanto nos seres humanos as mudanças extrapolam o plano
biológico e ocorrem de forma evidente no plano cultural, espaço no qual a evolução parece não
ter limites, e que é descrita por Vigotski (1932/1996) como sendo o lugar das revoluções.
Assim:
O curso da evolução biológica do homem termina antes de começar o
desenvolvimento histórico. As tentativas de explicar a forma de pensar do
homem não se fixam mais nas particularidades morfofisiológicas transmitidas
por hereditariedade, mas no trabalho que inaugura um novo dinamismo de
transmissão das conquistas às novas gerações (LINHARES; FACCI, 2021, p.
33).
O nascimento de um bebê humano não é, deste modo, apenas um acontecimento
bi
ológico, mas também um acontecimento social. De acordo com Vigotski (1932/1996), o
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desenvolvimento acontece a partir dos chamados planos genéticos: a
filogênese
define
características de nossa espécie como viver em grupo, a bipedia, sermos mamíferos etc. A
ontogênese
descreve a história do desenvolvimento do indivíduo em sua espécie, e um exemplo
deste plano genético seria o fato da criança, após certo período de tempo (de meses a um ou
dois anos) provavelmente se sentar para depois aprender a engatinhar e andar. Ambos os planos
genéticos estariam relacionados aos aspectos biológicos do desenvolvimento. O terceiro plano
seria a
sociogênese
,
que diz respeito ao desenvolvimento do ser humano a partir do seu meio
social e cultural – os costumes da sociedade em que o sujeito está inserido. E o quarto plano
seria a
microgênese
,
que é “[...] a história do desenvolvimento de processos psíquicos
particulares de dada pessoa junto a outras num intervalo de tempo relativamente curto”
(DELARI, 2009, p. 29). De acordo com Linhares e Facci (2021, p. 32):
A história real do desenvolvimento do psiquismo humano reflete a história da
complexificação da vida em sociedade, sendo que o psiquismo humano só
pode ser explicado na qualidade de construção social. A historicidade do ser
humano relacionado às funções psíquicas superiores, expressa características
que distinguem o homem como pertencente ao gênero humano.
Ao considerar o “nascimento” humano a partir dos diferentes planos genéticos, podemos
pensar que os elementos da cultura acabam, de fato, delineando o modo como estes nascimentos
vão acontecendo. Neste sentido, o domínio da natureza (enquanto aspecto “externo”) e da
própria conduta (enquanto aspecto “interno”) estão estritamente relacionados, pois a alteração
da natureza por parte do homem altera, por sua vez, a própria natureza do homem (VIGOTSKI,
1932/1996). Esta é a base marxista do pressuposto dialético de toda a Psicologia Histórico-
Cultural (SOUZA, 2016).
A relação mediada com o mundo, marcada pelo instrumento e pelo trabalho,
materializa-se nas ações propositadas, conferindo assim a instrumentalidade semiótica também
da atividade humana sobre si e o mundo. Na ação instrumental, entre o objeto e a operação
psicológica dirigida, de acordo com a psicologia Histórico-Cultural, surge um novo
componente: o instrumento psicológico, que provoca o desenvolvimento de uma série de
funções novas, as chamadas Funções Psíquicas Superiores (FPS). A sequência ou quantidade
das FPS aparecem na obra de Vigotski de forma espraiada
4
. Aqui, convencionamos delimitar
em: atenção, percepção, linguagem, memória, emoções, raciocínio-lógico e imaginação. De
4
Informações sobre as diferentes nomeações são sumarizadas no diagrama elaborado por Achilles Delari e
disponível em site próprio do autor: http://www.estmir.net/diagrama-para-funcao-psiquica-superior.html. Acesso
em: dez. 2021.
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Aline Patricia Campos Tolentino de LIMA e Joana de Jesus de ANDRADE
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Araraquara, v. 17, n. esp. 2, p. 1221-1238, jun. 2022. e-ISSN: 1982-5587
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acordo com Delari (2011, p. 24), a origem social é “[...] a força motriz e o princípio explicativo
da gênese das funções psíquicas propriamente humanas”.
Como forma de organização do estudo dos termos, que não deve se confundir com a
compreensão do fenômeno em si, serão abordadas as FPS da memória e da imaginação como
pressupostos para a discussão de situações reais, complexas e multifacetadas.
De acordo com a Psicologia Histórico-Cultural, a memória, enquanto fenômeno de
apropriação e rememoração de informações, existe desde muito cedo no desenvolvimento da
criança e se desenvolve com o tempo, de uma forma “oculta” relativamente às outras funções.
O desenvolvimento da memória é tão complexo que não podemos representá-la de forma linear,
pois ela subsidia todas as outras funções, sustentando sempre novas formas de experienciar o
mundo.
Os estudos comparativos da memória humana, realizados pela Psicologia Histórico-
Cultural, revelam que mesmo em estágios mais primitivos do desenvolvimento social existem
dois tipos fundamentalmente diferentes de memória. Uma delas, dominante no comportamento
de povos primitivos, se caracteriza pela retenção das experiências reais como base dos traços
de memória: esse tipo de memória está muito próximo da percepção, pois surge como
consequência da influência direta dos estímulos externos (LURIA, 1976/2017). A memória
como produto do desenvolvimento social é uma organização nova, que evolui a partir da cultura
elaborada do comportamento humano. Um exemplo de operações simples como fazer um nó
ou marcar em um pedaço de madeira com a finalidade de ajudar na memorização modificam a
estrutura psicológica do processo de memória (VIGOTSKI, 2007).
As funções elementares têm como característica fundamental o fato de serem
total e diretamente determinadas pela estimulação ambiental. No caso das
funções superiores, a característica essencial é a estimulação autogerada, isto
é, a criação e o uso de estímulos artificiais que se tornam a causa imediata do
comportamento (VIGOTSKI, 2007, p. 33).
Esse fato, por si só, é suficiente para demonstrar a característica fundamental das formas
superiores de comportamento. Na forma elementar alguma coisa é lembrada; na forma superior
os seres humanos lembram alguma coisa (VIGOTSKI, 2007, p. 50).
De modo também diferenciado, Vigotski e Luria destacam a complexidade da chamada
função psíquica da imaginação. Ela é definida como uma função de natureza aglutinadora, e
sobre ela Vigotski afirma:
[...] é errado considerar a imaginação como uma função especial entre outras
funções, como uma forma de atividade cerebral do mesmo tipo, que se repete
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regularmente. A imaginação deve ser considerada como uma forma mais
complexa de atividade psíquica, como a união real de várias funções e suas
peculiares relações (VIGOTSKI, 1983, p. 436).
O autor destaca que a imaginação é uma função psíquica superior que está relacionada
diretamente com todas as outras funções psíquicas superiores, como a memória, a linguagem
oral, a percepção e as emoções, mas que não se assemelha ou equivale às suas “somas”, mas se
aproxima da conceituação de síntese nos termos hegelianos ou de mônada em termos
espinozianos.
A função psíquica da imaginação representa um potencial da atividade criadora que
possibilita ao homem planejar, projetar e construir suas próprias condições de existência
(SMOLKA; NOGUEIRA, 2011). Assim sendo, com exceção da natureza, tudo que nos cerca
foi feito pelo homem, sendo produto da sua imaginação e da criação como produto da
capacidade plástica do cérebro, que não apenas conserva e reproduz as experiências, mas
combina e o reelabora de forma criadora.
A imaginação, apesar de seu caráter de aparente repetição, não pode ser confundida com
a função psíquica superior da memória. Como Vigotski (1983) afirma, existe uma diferença
importante entre o restante das formas de atividade psíquica humana e a imaginação, que é seu
caráter de novidade. Ou seja, a imaginação não é apenas uma repetição de combinações e
formas de impressões isoladas, acumuladas anteriormente, mas sim um fenômeno que
reconstitui novas séries, a partir das impressões acumuladas anteriormente.
A atividade da memória consiste na aparição, na consciência humana, de cenas vividas
anteriormente e que nem sempre têm relação com um motivo novo para a sua reprodução. Já
na atividade da imaginação, que está estritamente relacionada com a atividade da memória,
quando opera com as imagens anteriores se diferencia por ser uma atividade criativa, fazendo
surgir novas combinações. A imaginação é a base da atividade que permite representar de forma
totalmente nova as imagens e impressões registradas pela atividade da memória, em uma nova
combinação de todas as impressões acumuladas anteriormente (VIGOTSKI, 1995/1983). Nesse
sentido, imaginar pode ser entendido como uma transformação da atividade da memória que
abarca tanto a lembrança, a reprodução, a presentificação, quanto a criação do novo.
As capacidades de reprodução e criação, bem descritas por Vigotski
(2009) em
Imaginação e criação na infância, consideram ainda os aspectos biológicos destes processos. E,
apesar dos incipientes trabalhos do início do século XX, vividos por Vigotski e Luria, havia em
seus escritos o apontamento fundamental para a os estudos do funcionamento do cérebro neste
processo. Para além da contribuição aos campos da Psicologia e da Educação, o autor contribui
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significativamente para o campo das Neurociências, embrionárias à época, mas que atualmente
têm tido papel cada vez mais contundente nos estudos sobre desenvolvimento humano em seu
sentido mais amplo. Para Vigotski (2009, p. 14) “O cérebro não é apenas o órgão que conserva
e reproduz nossa experiência anterior, mas também o que combina e reelabora, de forma
criadora, elementos da experiência anterior, erigindo novas situações e novo comportamento”.
Em um período em que o conceito de plasticidade cerebral ainda era bastante singelo, tal
afirmação lançava luz e mostrava caminhos futuros que estão sendo trilhados até hoje.
A brincadeira de faz de conta como fonte do desenvolvimento infantil
O desenvolvimento infantil, desde o seu início, é marcado pelas relações estabelecidas
com o outro e com o mundo, marcadas por um complexo processo de construção de significados
e sentidos. A criança é apresentada ao mundo pelo outro, que vai possibilitando a exploração
via palavras/gestos e objetos, construindo novas vontades e necessidades. Por meio das
mediações que a interação proporciona, a criança irá se constituir e colocar-se no mundo
(ARCE; DUARTE, 2006). A brincadeira surge como fruto desses processos de interação
mediados pelo outro e proporciona à criança agir sobre o mundo e, assim, atribuir sentidos
tentando compreender/classificar/nomear/organizar o que a cerca.
Para Leontiev (2010), a brincadeira não é instintiva, é uma atividade objetiva porque
constitui a base da percepção que a criança tem do mundo, dos objetos e das relações humanas
que determinam o conteúdo de suas brincadeiras de faz de conta. Essas percepções suscitaram
na criança uma necessidade de agir como o adulto, de agir da maneira que ela vê os outros
agirem, da maneira que lhe disseram, e assim por diante (LEONTIEV, 2010). Segundo o autor,
a criança quer, ela mesma, dirigir o carro, remar um barco sozinha, realizar as atividades que
ela sabe que são possíveis, mas que, de todo modo, ela ainda não consegue. Porém, na atividade
lúdica, por meio da imaginação e da brincadeira de faz de conta, ela consegue satisfazer suas
vontades e necessidades.
A brincadeira pode criar a impressão, para quem está “de fora”, de que a criança “perdeu
a noção” da realidade. Porém, é exatamente o contrário, pois na brincadeira a criança já é capaz
de se comparar ao adulto e por meio da representação dos papéis se perceber criança
(BATISTA; SILVA; PASQUALINI, 2021, p. 87).
Para Elkonin (2009), qua
ndo a criança adota um nome próprio, prepara-se para o
aparecimento do papel no jogo, ou seja, o exercício de estar no lugar de outro, fazendo ou
imitando ações de um outro mais “competente” que ela, é um passo fundamental para o
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desenvolvimento do psiquismo, pois representa o exercício da vida adulta, com as nuances de
regras e hábitos diferentes daquela que ela conhece e vivencia.
Apenas entre dois anos e meio e os três anos de idade que a criança começa a representar
um papel e assumir-se como outro. Elkonin (2009) caracteriza esse comportamento a partir de
duas séries de fatores, as quais observou por meio de seus experimentos em relação ao jogo de
papéis. A primeira seria quando a criança coloca no brinquedo o nome de uma personagem,
representando-o de modo diferente. A segunda característica seria quando a criança começa a
falar em nome do brinquedo. Essas ações podem se repetir muitas vezes com o mesmo objeto,
sem mudar o conteúdo.
A criança, a partir do jogo de papéis, conhece o mundo ao seu redor e as regras de
convivência social, formando uma atividade orientadora. O jogo de papéis faz com que a
criança aprenda o significado dos objetos e ao mesmo tempo as suas funções sociais
(ELKONIN, 2009). Vigotski (2008) afirma que a criança aprende a agir em função do que tem
em mente, ou seja, do que está pensando, mas não está visível, apoiando-se nas tendências e
nos motivos internos. A situação lúdica permite, assim, que as representações deem espaço para
o aparecimento de regras externas (coletivas) e regras internas (individuais) de comportamento.
Assim, quanto mais elaborado for o jogo de papéis, maior a possibilidade de criação, interação,
imaginação e argumentação. Assim,
A brincadeira é fonte do desenvolvimento e cria a zona de desenvolvimento
iminente
5
. A ação num campo imaginário, numa situação imaginária, a
criação de uma intenção voluntária, a formação de um plano de vida, de
motivos volitivos – tudo isso surge na brincadeira, colocando-a num nível
superior de desenvolvimento, elevando-a para a crista da onda e fazendo dela
a onda decúmana do desenvolvimento na idade pré-escolar, que se eleva das
águas mais profundas, porém relativamente calmas (VIGOTSKI, 2008, p. 35).
A brincadeira cria uma zona de desenvolvimento iminente, ou seja, no momento do
brincar a criança pode assumir ações de uma criança de maior idade (VIGOTSKI, 2008). A
brincadeira, como uma lente de aumento, permite que haja um salto no desenvolvimento da
criança.
5
Em algumas traduções para o português também é utilizado o termo zona de desenvolvimento proximal, zona de
desenvolvimento próximo e zona de desenvolvimento iminente, que foi escolhido para este estudo por trazer a
ideia de proximidade e possibilidade ao mesmo tempo.
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Aspectos metodológicos
O principal instrumento metodológico da pesquisa de campo é a investigação
participativa e observação. Ao pesquisador cabe observar a criança observando, cabe analisar
os diferentes modos de participação e reconstruir o processo, analisando os detalhes de
significação e de apropriação vivenciados pela criança. Tal pressuposto sustenta que a criança
assume um papel ativo na observação, na descrição, na interpretação, agindo, assumindo-se
como um sujeito, com um papel ativo e transformador no processo de pesquisa, sendo sua voz
e a sua ação social aspectos centrais para o processo de desenvolvimento das dinâmicas da
investigação (FERNANDES; MARCHI, 2020).
Com relação ao percurso metodológico, gostaríamos de destacar dois aspectos: o
primeiro é a centralidade e respeito às crianças enquanto sujeitos ativos e participativos do
processo, e o segundo refere-se à constatação da limitação das interpretações aqui apresentadas.
O inacabamento das análises é tido, portanto, como parte integrante do processo mesmo de
investigar e entender ou pressupor como o outro atribui significados, considerando que a
imaginação e memória têm sido um exercício constante.
Para Qvortrup (2011), a infância deve ser entendida como uma categoria social
permanente, uma categoria social em que todas as crianças ocupam este lugar (de diferentes
grupos étnicos, econômicos, gênero entre outros), e que sempre será ocupada por crianças, pois
as crianças crescem e se transformam em adultos, mas logo outras crianças virão. É um processo
permanente da sociedade humana. Um conceito importante para a discussão da metodologia do
estudo com crianças, discutido tanto por Qvortrup (2011) quanto por Castro (2001), refere-se à
invisibilidade da infância que, historicamente, é “encoberta” pelas famílias ou pela instituição
escolar; e isso implica no fato de que geralmente não nos colocamos no lugar da criança para
falar sobre seu mundo. Mas, do nosso mundo de adultos, falamos como a criança deve estar
pensando, como agiu, como representou etc. Este apontamento faz com que repensemos o lugar
da criança na pesquisa, para que se possa priorizar justamente a participação e escuta das
crianças em pesquisas de campo.
Tendo como aporte teórico a Psicologia Histórico-C
ultural, a pesquisa, além de
promover um estudo sobre o desenvolvimento das funções psicológicas superiores no momento
do jogo de papéis, também se preocupa em trazer a opinião das crianças sobre suas brincadeiras
preferidas. Por isso a discussão abrange conceitos teóricos da sociologia da infância, justamente
para fundamentar e elucidar as escolhas metodológicas da pesquisa.
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O brincar possível em tempos de isolamento: O desenvolvimento das funções psíquicas superiores da memória e da imaginação
RIAEE
– Revista Ibero-Americana de Estudos em Educação,
Araraquara, v. 17, n. esp. 2, p. 1254-1271, jun. 2022. e-ISSN: 1982-5587
DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v17iesp.2.16055
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Como é colocado por Corsaro (2005), as crianças se desenvolvem individualmente, mas
ao longo deste desenvolvimento o processo coletivo do qual fazem parte também está em
mudança. Entendemos como mudanças justamente considerar a criança como capaz e
participativa nas suas próprias escolhas, ressignificando ativamente a prática social. Ferreira
(2005) também destaca a importância de considerarmos as crianças como atores sociais, pois
elas reconstroem e ressignificam através de múltiplas e complexas interações com os pares,
com interesses e modos de pensar, agir e sentir capazes de gerar relações diferenciadas como
um grupo social. Demartini (2009) ressalta ainda a importância de que cada vez mais, em
tempos atuais, pesquisadores e professores aprendam a ouvir as crianças e jovens. Cabe ao
pesquisador ter esse olhar atento às diferentes formas de manifestação e especificidades da
criança, considerando suas histórias de vida e seu contexto.
Para que isso possa acontecer efetivamente, o estudo foi realizado com atenção às
formas participativas das crianças no cotidiano da Educação Infantil, tendo o momento do
brincar de faz de conta como objeto de estudo central. A pesquisa de campo foi autorizada pelo
Comitê de Ética com número de parecer 4.235.627, e teve início em março de 2021. Os sujeitos
que participaram desta pesquisa de campo foram trinta e cinco crianças com faixa etária de
cinco a seis anos, em duas instituições de Educação Infantil de uma cidade do interior do estado
de São Paulo. A pesquisa de campo foi realizada durante duas horas por dia e as visitas
aconteceram duas vezes por semana, durante o primeiro semestre de 2021.
A pesquisadora produziu um vídeo informativo sobre a pesquisa de campo, que foi
encaminhado aos pais e responsáveis pelo grupo de interação da escola com as famílias no
aplicativo
Telegram
. As crianças que foram autorizadas pelos responsáveis a participar da
pesquisa de campo foram convidadas a conversar com a pesquisadora, que apresentou a elas o
termo de assentimento. Durante a conversa entre as crianças e a pesquisadora foi perguntado se
elas gostariam de participar da pesquisa, respeitando todos os critérios éticos da realização de
pesquisa com crianças.
Durante todo o processo de pesquisa de campo a pesquisadora registrou, por meio de
fotografias, vídeos e diário de campo, o cotidiano da volta à escola após um período de
isolamento social (devido à pandemia da Covid-19).
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Aline Patricia Campos Tolentino de LIMA e Joana de Jesus de ANDRADE
RIAEE
– Revista Ibero-Americana de Estudos em Educação,
Araraquara, v. 17, n. esp. 2, p. 1221-1238, jun. 2022. e-ISSN: 1982-5587
DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v17iesp.2.16055
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Apresentação e análise dos dados
Neste artigo será apresentado um recorte da pesquisa de campo, com foco em uma
reflexão sobre os aspectos de aparente “não interação” entre as crianças. O registro aconteceu
no dia 14 de março de 2021: havia oito crianças presentes na sala de aula e cada criança estava
em sua mesinha com blocos coloridos de montar. O contexto foi registrado pela pesquisadora
por vídeo e no diário de campo.
A professora organizou as mesas das crianças respeitando as normas de distanciamento
social de 1,5m de distância de forma individual. As crianças manuseavam individualmente seus
blocos quando uma das crianças se levantou e começou a utilizar um bloco como se fosse um
telefone.
Figura 1
– Registro fotográfico “
Brincadeira do telefone
”
Fonte: Elaborado pelas autoras
Segue abaixo a transcrição do vídeo, que tem duração de um minuto e três segundos. Os
nomes utilizados para apresentação dos dados são fictícios, para garantir o sigilo e o anonimato
dos participantes desta pesquisa.
EPISÓDIO 1-
“Brincadeira de telefone”
(6. dia, 14/03/2018, gravador de vídeo)
(1)
Beatriz: Bi, bi, bi, bi, bi, bi [...] (
imitando o som de um telefone tocando
).
(2)
Bruno: Oi Beatriz, tudo bem? Beatriz? Beatriz? [...] (
Bruno estava do outro
lado da sala e tentou se comunicar com a Beatriz, mas não teve resposta
).
(3)
Beatriz: Bi, bi, bi, bi, bi, bi [...] (
continua imitando o som do telefone
chamando
).
(4)
Maria Cecília: Alô, quem é?
(5)
Beatriz: Oi, tudo bem? É a Beatriz, o que você está fazendo?
(6)
Maria Cecília: Eu estou ligando para você, uai.
(7)
Bruno: Eu estou trabalhando.