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Política de educação em gênero e diversidade sexual:
Histórico e presente da experiência brasileira
RIAEE
–
Revista Ibero
-
Americana de Estudos em Educação,
Araraquara,
v. 17, n. esp. 3, p.
2215
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2234
, nov. 2022
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ISSN: 1982
-
5587
DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v17iesp.3.16691
2215
POLÍTICA DE EDUCAÇÃO EM GÊNERO E DIVERSIDADE SEXUAL:
HISTÓRICO E PRESENTE
DA EXPERIÊNCIA BRASILEIRA
POLÍTICA EDUCATIVA SOBRE GÉNERO Y DIVERSIDAD SEXUAL: HISTORIA Y
PRESENTE DE LA EXPERIENCIA BRASILEÑA
EDUCATION POLICY ON GENDER AND SEXUAL
DIVERSITY: HISTORY AND
PRESENT OF THE BRAZILIAN EXPERIENCE
Alexandre BORTOLINI
1
Cláudia Pereira VIANNA
2
RESUMO
: Este artigo apresenta parte dos resultados de uma pesquisa de doutorado dedicada
a analisar o ciclo de desenvolvimento da política educaci
onal em gênero e diversidade sexual
no Brasil. A partir das proposições de Stephen Ball, que acionam noções foucaultianas de poder
e discurso para a análise de políticas educacionais, buscou
-
se, para além da métrica,
compreender as dinâmicas político
-
discu
rsivas que marcaram tanto a produção dessa política
quanto a sistemática reação que se lançou sobre ela. Neste artigo, são apresentados seus
antecedentes, suas principais ações, os agentes envolvidos na sua construção e o discurso
pedagógico que produziram
. São identificados também seus principais opositores, suas táticas
de ação e estratégias discursivas, apontando como se articularam com os movimentos
reacionários que marcaram o país nos últimos anos. Por fim, apontam
-
se indícios de que o
debate sobre gên
ero e diversidade sexual nas escolas sobrevive mesmo em tempos de
conservadorismo, censura e terrorismo ideológico.
PALAVRAS
-
CHAVE
: Educação. Gênero. Sexualidade.
RESUMEN
:
Este artículo presenta parte de los resultados de una investigación
doctoral
dedicada a analizar el ciclo de desarrollo de la política educativa sobre género y diversidad
sexual en Brasil. A partir de las proposiciones de Stephen Ball, que activan nociones
foucaultianas de poder y discurso para el análisis de políticas edu
cativas, se buscó, más allá
de la métrica, comprender las dinámicas político
-
discursivas que marcaron tanto la
producción de esta política como la reacción sistemática que se lanzó contra ella. Este texto
analiza los antecedentes de esta política, sus prin
cipales acciones, los agentes involucrados en
su construcción y el discurso pedagógico que produjeron. También se identifican sus
principales opositores, sus tácticas de acción y estrategias discursivas, buscando comprender
cómo se articulan con los movimi
entos reaccionarios que han marcado al país en los últimos
años. Finalmente, señalase indicios de que el debate sobre género y diversidad sexual en las
escuelas sobrevive aún en tiempos de conservadurismo, censura y terrorismo ideológico
.
PALABRAS CLAVE
:
Educación. Género. Sexualidad.
1
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro
–
RJ
–
Brasil. Professor Substituto do Núcleo de
Políticas Públicas em Direitos Humanos.
Doutorado em Educação (USP).
ORCID: https://orcid.org/0000
-
0001
-
8769
-
6837. E
-
mail: bortolini.alexandre@g
mail.com
2
Universidade de São Paulo (USP), São Paulo
–
SP
–
Brasil. Professora Sênior da Faculdade de Educação.
Doutorado em Educação (USP).
ORCID: https://orcid.org/0000
-
0002
-
9366
-
4417. E
-
mail: cpvianna@usp.br
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Alexandre BORTOLINI e Cláudia Pereira VIANNA
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ABSTRACT
: This paper presents part of the results of a doctoral research dedicated to analyze
the cycle of the educational policy on gender and sexual diversity in Brazil. Based on Stephen
Ball's propositions, which applies
Foucault's notions of power and discourse on educational
policies, the analysis aimes,, beyond the metrics, to understand the political
-
discursive
dynamics that marked both the production of this policy as the systematic reaction that has
been organized a
gainst it. This text analyzes the background of this policy, its main initiatives,
the agents involved in its construction and the pedagogical discourse they produced. It also
identifies its main opponents, their tactics and discursive strategies, seeking
to understand how
they are articulated with the reactionary movements that have dominated Brazil in recent years.
Finally, the paper hilights evidences that the debate on gender and sexual diversity in schools
survives even in times of conservatism, censor
ship and ideological terrorism.
KEYWORDS
: Education. Gender. Sexuality.
Introdução
Este artigo apresenta parte dos resultados de uma pesquisa de doutorado em Educação
dedicada a analisar o conjunto de iniciativas governamentais brasileiras que, nas últimas duas
décadas, propuseram críticas e reformulações de práticas e saberes escolares
com vistas ao
enfrentamento à discriminação sexual e de gênero e à promoção dos direitos de mulheres e
pessoas lésbicas,
gays
, bissexuais, travestis e transexuais (LGBT+)
na
e
a partir da
educação.
Iniciativas que, ainda que dispersas e descontínuas, se co
nsideradas em conjunto, constituíram
o que se pode definir como uma política educacional em gênero e diversidade sexual.
A construção dessa política pública reuniu acadêmicos, ativistas, gestores, profissionais
de educação e estudantes em uma rede de comu
nicação, articulação e ação que atravessou
escolas, universidades, movimentos sociais e instâncias de governo. Neste espaço de
interlocução foi produzido, de forma articulada e negociada, um discurso pedagógico
diferenciado dos que, até então, tinham habit
ado as políticas educacionais brasileiras. Mesmo
com orçamento pouco relevante e alcance limitado, essa política incitou o debate em inúmeras
escolas, com impacto nos sistemas de ensino, na produção acadêmica e na legislação
educacional.
Desde cedo, essas
iniciativas provocaram reações de grupos conservadores diversos,
cujas ofensivas assumiram, na última década, um caráter sistemático. O embate em torno do
ensino sobre gênero e diversidade sexual nas escolas transbordou as comunidades escolares e
as áreas
de gestão, alcançou o Congresso Nacional e as disputas eleitorais e tornou essa política
educacional, personagem relevante nos principais episódios que marcaram a história política
brasileira recente.
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Para compreender seu ciclo de desenvolvimento dentro d
e um paradigma sócio
-
crítico,
foi fundamental a contribuição do trabalho do pesquisador britânico Stephen Ball. Ao mobilizar
a produção teórica de Michel Foucault para pensar as políticas públicas, Ball (2012) critica
abordagens gerencialistas e aponta a i
mportância de interpretar a política educacional dentro do
contexto social e político mais amplo. Ao aplicar uma noção descentrada de poder à análise das
políticas educacionais, sua abordagem ajudou a construir uma compreensão mais alargada dos
espaços, te
mpos e processos pelos quais essa política pública foi construída. Implicou também
uma percepção mais plural dos agentes envolvidos na sua produção e da qualidade da sua
participação na definição das suas formas e do seu desenvolvimento. A noção foucaultia
na de
discurso operada por Ball ajudou também a perceber essa política educacional como um campo
político onde a função e os sentidos da educação foram forjados, negociados e disputados.
Sob essa perspectiva, construiu
-
se um desenho de pesquisa qualitativ
a focado não em
uma avaliação programática das ações e resultados dessa política educacional (algo já bastante
trabalhado por pesquisas anteriores), mas no conjunto de discursos que ela colocou em disputa
e seus efeitos políticos mais amplos. Para compreen
dê
-
la em sua dimensão político
-
discursiva,
foi realizado um longo estudo bibliográfico, somado a uma análise direta de materiais textuais
produzidos tanto por seus realizadores quanto por seus antagonistas, que buscou mapear as
múltiplas estratégias discur
sivas que estes agentes colocaram em ação e seus efeitos na
produção, desenvolvimento e inflexão desta política
-
e para além dela.
Dentro dos limites deste artigo, apontamos, na primeira parte, alguns antecedentes que
permitiram a emergência de uma
política educacional em gênero e diversidade sexual no Brasil.
Em seguida, identificamos suas principais ações, os agentes envolvidos na sua construção e o
discurso pedagógico que produziram. Na terceira parte, percorremos episódios recentes para
identific
ar seus principais opositores, suas táticas de ação e estratégias discursivas, analisando
como se articularam com os movimentos reacionários que marcaram os últimos anos. Por fim,
trazemos indícios de que o debate sobre gênero e diversidade sexual nas esco
las brasileira
resiste, ainda que sob um contexto de conservadorismo, censura e terrorismo ideológico.
Antecedentes históricos
Não é possível analisar quaisquer políticas de promoção de direitos de mulheres e
LGBT+ no Brasil sem considerar o histórico d
e exclusão, repressão, criminalização e violência
que definiu a atuação do Estado brasileiro sobre grupos subalternizados durante séculos. A
imposição de um sistema de gênero cis
-
heteronormativo masculinista e racializado foi parte
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fundamental dos processo
s de colonização que constituíram sociedades como a nossa
(LUGONES, 2020). Presente desde sua gênese, o caráter patriarcal, classista e racista do Estado
brasileiro persiste mesmo com o avanço de modelos políticos liberais e de nossa inserção
periférica no
capitalismo global
-
e suas marcas podem ser encontradas ainda hoje (BIROLI,
2018).
Tendo em conta esse investimento histórico é que podemos pensar uma variedade de
políticas sexuais e de gênero, desenvolvidas, em especial, a partir da abertura democráti
ca,
como parte de um processo de despatriarcalização do Estado, no sentido de que confrontam,
por dentro, o caráter masculinista, racista e cis
-
heteronormativo das nossas instituições e formas
de governo (MATOS; PARADIS, 2014). Finda a contenção do regime
militar, distintos campos
políticos conseguiram se (re)organizar, entre eles ativismos mobilizados em torno de questões
de gênero e sexualidade (FACCHINI; CARMO; LIMA, 2020). Sustentados na Constituição de
1988 e fortalecidos pelo arcabouço institucional p
roduzido a partir do ciclo de conferências
organizadas pelas Nações Unidas nos anos 1990, esses movimentos iniciaram processos de
diálogo com o Estado brasileiro para a construção de políticas públicas centradas não mais na
repressão, mas na promoção de di
reitos (CORRÊA, 2018).
Esse processo se intensificou com as políticas de participação social implementadas pelo
Partido dos Trabalhadores (PT) (IRINEU, 2016). Em 2004, um ano após a posse de Luís Inácio
Lula da Silva, o Governo Federal realizou a conferên
cia nacional que daria origem ao primeiro
Plano Nacional de Políticas para as Mulheres (PNPM). No mesmo ano, era lançado o Programa
Brasil Sem Homofobia (BSH) com o objetivo declarado de promover a cidadania de pessoas
LGBT+. Se não inauguraram, o PNPM e o
BSH ampliaram o volume, o alcance e a qualidade
das políticas públicas voltadas a esses grupos.
A produção
Ao analisar os planos e programas oriundos dessas políticas de participação social, é
possível perceber um papel estratégico da educação. Por um
lado, afirma
-
se a necessidade de
superar o sexismo, o machismo e a lgbtfobia na escola como barreiras à garantia do direito à
educação de mulheres e LGBT+. Por outro, as instituições de ensino são pensadas como
plataforma para uma transformação cultural ma
is ampla, cujos efeitos iriam muito além dos
pátios e das salas de aula. Estas proposições ganharam corpo a partir da criação, em 2004, da
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad) no Ministério da
Educação (MEC). Diversidade f
uncionava, então, como um “guarda
-
chuva” institucional e
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discursivo, agregando estrategicamente um conjunto amplo e variado de políticas educacionais,
demandadas por múltiplos movimentos sociais, que iam da educação indígena à socioeducação
(CARREIRA, 2015
). Dentre as políticas de educação para a diversidade, aquelas voltadas para
as questões de gênero e sexualidade constituíram um dos pontos de maior tensão. O desafio não
era pequeno: transformar as escolas brasileiras, historicamente comprometidas com a
r
eprodução das disposições dominantes de gênero e sexualidade, em instituições promotoras da
diversidade sexual e da igualdade de gênero.
Em 2005, o Ministério da Educação lançou a primeira chamada pública para formação
de profissionais da educação derivad
a do Brasil Sem Homofobia. Os cursos em gênero e
diversidade sexual (GDS) focavam na discriminação por orientação sexual e identidade de
gênero, enquanto promoviam uma visibilidade positiva de pessoas LGBT+, algo bastante
inovador naquele momento. Implemen
tadas inicialmente por organizações não
governamentais, essas formações foram logo assumidas por universidades públicas e realizadas
em todas as regiões do país. Em paralelo, foi lançado, em 2006, o curso Gênero e Diversidade
na Escola (GDE), a partir de u
ma iniciativa da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres
(SPM). Construído na relação com um movimento feminista multifacetado, o GDE trazia uma
abordagem inovadora ao buscar trabalhar, de forma articulada, questões de gênero, orientação
sexual e
relações étnico
-
raciais. Criado pelo Centro Latino
-
Americano em Sexualidade e
Direitos Humanos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (CLAM), o curso tomaria
múltiplas formas ao ser encampado por instituições de ensino superior de todo o país. Os
pro
jetos de formação desenvolvidos tanto no GDE quanto no GDS incluíram também a
produção de materiais didáticos e a realização de atividades de multiplicação em escolas,
ampliando os sujeitos mobilizados para além daqueles imediatamente alcançados pelos curs
os.
Vale ainda destacar duas outras linhas de ação: o Prêmio Construindo a Igualdade de
Gênero, que premiava escolas e textos produzidos por estudantes
-
e o Projeto Escola Sem
Homofobia
-
que previa produção de material, a realização de pesquisas e a for
mação de uma
rede de gestores. Essas e outras ações, irradiadas a partir do Governo Federal, forçosamente
envolveram, em maior ou menor grau, sistemas estaduais e municipais de educação, e
propiciaram importantes espaços de diálogo entre movimentos sociais
, instituições de pesquisa
e redes de ensino.
Ao examinar os produtos destas iniciativas em diálogo com a literatura já existente (em
especial FERNANDES, 2011; MELLO
et al.
, 2012; CARREIRA, 2015; IRINEU, 2016), é
possível identificar uma multiplicidade de
agentes que atuaram na construção dessas ações:
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Associações, organizações e coletivos ativistas, em especial LGBT+ e feministas foram
os responsáveis por boa parte da incidência política que permitiu a elaboração de uma agenda
de gênero e diversidade sexu
al na educação. Colaboraram na execução das iniciativas, quando
não assumiram eles próprios sua realização. Desses ativismos vêm também noções políticas
que constituíram parte fundamental do repertório dessa política educacional.
Gestores públicos da educ
ação, desde políticos de grande visibilidade, que assumiram
papel central nas disputas legislativas ou funções decisivas no executivo, até sujeitos atuantes
nos espaços menos visíveis da gestão pública foram os responsáveis por criar as condições
políticas
, técnicas e operacionais que permitiram fazer fluir as agendas de gênero e diversidade
sexual no sistema político e nos aparatos governamentais, por vezes se constituindo verdadeiros
militantes a confrontar o patriarcalismo no interior do Estado.
Pesquisa
dores, professores, estudantes e técnicos vinculados a instituições públicas de
ensino superior, em sua maioria atuantes no campo dos estudos de gênero e da sexualidade,
constituíram outro agente coletivo importante. Sua capacidade de circulação pela gestã
o
educacional, sua posição privilegiada de enunciação e a infraestrutura que tinham disponível
em suas instituições foram seus principais instrumentos de ação. Assumiram a coordenação e a
execução de projetos de formação e produção de material, atuaram com
o consultores na
elaboração de diretrizes e tiveram assento na maior parte dos mecanismos de participação
social. Suas pesquisas foram acionadas para fundamentar cientificamente e legitimar a
necessidade de uma política educacional em gênero e diversidade
sexual. Trouxeram consigo
também conceitos e teorias fundamentais à construção de uma pedagogia crítica às regulações
de gênero e sexualidade.
Profissionais de educação, em especial docentes alcançados pela formação continuada,
recorrentemente reduzidos p
ela literatura a meros "implementadores", pouco ouvidos quando
da formulação dos planos e programas, foram os responsáveis por materializar esta política no
chão da escola. Afetados de modo extemporâneo por ações descontínuas de formação, com
pouco ou nenh
um recurso e contando com um amparo institucional vacilante, sua principal
ferramenta foi a criatividade pedagógica. Em sua atuação polivalente e recorrentemente
solitária, confrontaram o conservadorismo, reorganizaram práticas naturalizadas, reordenaram
e
spaços e inventaram formas de trabalhar conteúdos até então ausentes dos currículos da
educação básica.
Por último, mas não menos importantes, estudantes de educação básica, em especial
mulheres e LGBT+a maioria das análises percebidos como público
-
alvo, f
oram os principais
mobilizadores das escolas para o debate sobre gênero e sexualidade, a partir de uma postura de
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afronte que punha em xeque práticas escolares sexistas e lgbtfóbicas até então naturalizadas.
Exerceram também um papel diretamente criativo,
ao se engajarem na produção de recursos
pedagógicos e ações de multiplicação.
Um discurso pedagógico inovador
A interação colaborativa entre esses múltiplos agentes, simultaneamente convergente e
polissêmica, foi capaz de gerar um discurso pedagógico, sob muitos aspectos, inovador. Um
discurso que avançou na proposição da efetiva incorporação de uma perspectiva de
gênero na
educação e inovou ao propor um debate sobre orientação sexual e identidade de gênero na
escola sob a ótica da diversidade e dos direitos humanos. A partir da análise de parte da
produção textual dessa política educacional, foi possível identific
ar alguns de seus núcleos de
sentido.
A noção, subsumida no conceito de gênero, de que os sentidos de feminino e masculino,
assim como as relações entre homens e mulheres, são produto não de uma diferença sexual
inata, fixa e universal, mas sim de uma con
strução social, histórica e mutável é um núcleo
fundamental desse discurso pedagógico. Essa noção se sustenta em uma multiplicidade de
saberes oriundos das ciências sociais e humanas, por um lado, e no aprendizado acumulado dos
movimentos sociais, por outr
o. A partir desses saberes, denuncia
-
se como a naturalização de
uma diferença sexual sustenta a existência de um sistema de dominação masculina, que
privilegia os homens em detrimento das mulheres, garantido, não raro, pelo exercício violento
de um poder m
asculino. Denuncia
-
se também um sistema cis
-
heteronormativo, que impõe por
meio de diferentes técnicas
–
até mesmo violentas
–
uma cadeia vinculante entre sexo,
identidade de gênero e orientação sexual. Propõe
-
se uma compreensão articulada das
regulações d
e gênero e sexualidade, na qual misoginia, machismo, lgbtfobia e sexismo são
pensados como formas integradas de regulação. Soma
-
se ainda uma perspectiva interseccional,
incipiente de início, mas que se intensifica com o tempo, que permite identificar um me
smo
sistema, simultaneamente patriarcal, capitalista, racista e cis
-
heteronormativo, a ser combatido.
Em oposição à ideia de uma diferença sexual naturalizada, essa perspectiva
construcionista percebe corpos, expressões, identidades de gênero, práticas sex
uais e afetivas
não a partir de um padrão normativo naturalizado, mas em sua multiplicidade, investindo no
reconhecimento e valorização das diferenças. A desconstrução da diferença sexual se faz, por
um lado, desvelando os processos históricos e politicame
nte implicados na produção do
conhecimento científico, em especial os saberes produzidos pelas ciências biológicas. E, por
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outro, denunciando o papel histórico do cristianismo na constituição simbólica e política das
regulações de gênero e sexualidade, a q
ue se contrapõe a laicidade como princípio organizador
do Estado e da escola. A partir dessas críticas, são denunciadas como violações de direitos
fundamentais práticas que, intencionalmente ou não, operam pela normalização dos sujeitos a
padrões normativo
s de gênero e sexualidade.
Essa construção discursiva, ao mesmo passo que reconhece a escola enquanto espaço
histórico de reprodução das regulações sexuais e de gênero, acredita e investe em seu potencial
transformador. Convoca
-
se então a escola a rever a
si mesma, no sentido de superar práticas
discriminatórias e se tornar um espaço de promoção da igualdade de gênero e de valorização
da diversidade sexual e de gênero, na sua comunidade e para além dela. A noção de diversidade
a partir da qual se propõe a d
iscussão de gênero e sexualidade na escola aponta para uma tática
não
-
conflitiva, que prioriza um investimento no diálogo pedagógico mais que no confronto.
Sob esse arcabouço comum, no entanto, se construíram práticas pedagógicas muito
diferentes, em sent
ido e em intensidade. Analisando atividades desenvolvidas em escolas por
educadores que participaram de cursos de formação continuada, é possível encontrar práticas
que apostaram na tolerância, no respeito, na superação da violência e na promoção de um
amb
iente de paz, sem que isso significasse, necessariamente, uma mudança substantiva nos
pressupostos sexistas e cis
-
heteronormativos que organizam a vida escolar. Há outras, no
entanto, que atuaram para além do combate à discriminação, investindo na desconst
rução da
escola enquanto tecnologia de normalização sexual e de gênero, propondo uma revisão
profunda das práticas pedagógicas, do currículo e da gestão escolar. A coexistência de
investimentos moderados e radicais é característica dessa política educacion
al.
Ainda que essas noções não fossem em si inéditas e já circulassem nos meios científicos
e nos movimentos sociais, o modo como elas foram trabalhadas e incorporadas a uma
linguagem pedagógica constituiu, de fato, uma inovação na política educacional bra
sileira.
Avanço e precariedade
Desde os seus primeiros anos de execução, a política educacional em gênero e
diversidade sexual sobreviveu em grande parte com recursos oriundos de emendas
parlamentares, não figurando entre as prioridades orçamentárias do
Governo Federal. Ainda
que imprecisos, os registros oficiais mostram investimentos de cerca de 70 milhões de reais
entre 2005 e 2014
-
a partir de 2015 não houve financiamento significativo
-
e mais de 50 mil
profissionais de educação alcançados pelas açõ
es de formação no período. Parecem números
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grandes, mas que se tornam irrisórios diante do orçamento geral do MEC
-
ainda que
considerando apenas os investimentos voltados às políticas de diversidade (CARREIRA, 2015)
-
ou em relação ao número total de doce
ntes atuantes no país
-
mais de 2 milhões de
profissionais.
Estudo produzido pela Universidade Federal de Goiás em 2012 sobre ações educativas
derivadas do programa Brasil Sem Homofobia critica justamente a escala das ações
implementadas, pela sua incapac
idade de atingir a maior parte do sistema educacional do país
(MELLO
et al.
, 2012). Os autores destacam ainda o caráter pontual das ações, que teriam
produzido efeitos muito limitados nas práticas escolares. Essa análise contrasta com a expressa
na avaliaç
ão produzida pelo Centro Latino
-
Americano em Sexualidade e Direitos Humanos a
respeito do curso GDE, que descreve as iniciativas de formação como uma prática bem
-
sucedida e sem precedente na história da educação brasileira (CARRARA
et al.
, 2011).
Pouco
preocupado com a escala, o relatório foca na inovação e na intensidade da experiência vivida
pelos sujeitos e organizações que participaram dessas iniciativas. Outro estudo, também
produzido pelo CLAM alguns anos mais tarde (CARRARA
et al.
, 2017), tr
az indícios de que a
bagagem teórico
-
conceitual, o conjunto de informações, a perspectiva e o exercício do diálogo
ao longo dos cursos permitiram, ao menos para parte dos profissionais da educação envolvidos,
construir instrumentos para atuar no dia a dia
de suas escolas. Mais do que inconciliáveis, essas
análises parecem apontar justamente para a convivência de avanços e precariedades como
marca da política educacional em gênero e diversidade sexual no Brasil. Se é impossível negar
a intensidade qualitativ
a de muitas experiências pedagógicas vivenciadas por escolas e
educadores, os resultados quantitativos dessas ações ficaram ainda bastante distantes do que
seria necessário para produzir mudanças substanciais no sistema escolar brasileiro como um
todo.
P
ara além dos números
Além de mobilizar redes de ensino e escolas, a política educacional em gênero e
diversidade sexual produziu impacto importante no próprio campo científico. A execução dos
cursos nas universidades ficou em sua maioria a cargo de núcleo
s de pesquisa e projetos de
extensão, mobilizando a cada oferta um conjunto significativo de docentes, técnicos, estudantes
de graduação e pós. Isso contribuiu para a consolidação de grupos de pesquisa e extensão em
torno dessas temáticas nas universidades
, gerando impactos também na produção científica
(CARRARA
et al.
, 2017).
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Houve avanços importantes também no quadro normativo das políticas educacionais.
Analisando as diretrizes educacionais aprovadas pelo Conselho Nacional de Educação ao longo
dos anos
2000 é possível encontrar indícios das agendas de mulheres e LGBT+, materializadas
em referências a gênero, identidade de gênero, orientação sexual e diversidade sexual. No
conjunto, essas diretrizes educacionais afirmam a necessidade de trabalhar questões
ligadas a
gênero e sexualidade desde a educação infantil até o ensino médio, apontando uma abordagem
focada não na padronização de comportamentos, mas na reflexão crítica, na autonomia dos
sujeitos, na liberdade de acesso ao conhecimento, no reconheciment
o das diferenças e no
enfrentamento a toda forma de discriminação e violência.
Embora em termos de alcance e recursos seu programa tenha sido bastante reduzido,
essa política constituiu um posicionamento explícito
–
ainda que precário
–
de diferentes esfe
ras
de governo sobre a pertinência da abordagem de questões de gênero e sexualidade na escola
dentro de uma perspectiva de valorização da diversidade, combate à desigualdade e promoção
dos direitos humanos. Além do aspecto programático, essa dimensão expre
ssiva e comunicativa
das políticas públicas (PECHENY; DE LA DEHESA, 2011) não pode ser desconsiderada. Em
um contexto político progressista, esse posicionamento, ainda que vacilante, serviu como
legitimação para quem queria falar sobre gênero e sexualidade
na escola, permitindo a
proliferação de experiências didáticas que extrapolaram o raio direto de ação dos cursos de
formação.
A reação
Desde sua implementação, a política de educação em gênero e diversidade sexual
provocou reações, de início
esporádicas e pontuais, mas que, ao longo do tempo, ganharam
escala, capilaridade e se tornaram sistemáticas. Encabeçadas por políticos de direita, lideranças
religiosas, grupos conservadores e agentes do militarismo, o antagonismo a essa política ganhou
a
poio de largos setores da sociedade. Após a crise política de 2013, o combate à discussão de
gênero e sexualidade nas escolas passou a integrar de forma central o repertório dos
movimentos reacionários que tomaram o Brasil nos anos seguintes. Para compreen
der a
natureza, a dinâmica e os efeitos políticos mais amplos dessa reação, foram investigados alguns
episódios significativos, cuja análise resumimos a seguir.
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Política de educação em gênero e diversidade sexual:
Histórico e presente da experiência brasileira
RIAEE
–
Revista Ibero
-
Americana de Estudos em Educação,
Araraquara,
v. 17, n. esp. 3, p.
2215
-
2234
, nov. 2022
e
-
ISSN: 1982
-
5587
DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v17iesp.3.16691
2225
A polêmica do “kit
gay
”
O primeiro desses episódios, já amplamente analisado, ocorreu em 2011
, primeiro ano
de governo de Dilma Rousseff, envolvendo o conjunto de materiais produzidos pelo Projeto
Escola Sem Homofobia. Apresentado em um seminário no Congresso Nacional em fins de
2010, o material foi duramente atacado pelo deputado Jair Bolsonaro,
até então, um congressista
pouco expressivo para além de seu próprio círculo militar. Autor do termo "kit
gay
", Bolsonaro
já vinha empreendendo uma sistemática oposição às políticas sexuais e de gênero, em especial,
na educação. No início do novo ano legis
lativo, outros parlamentares se somaram no ataque ao
material, em especial, congressistas ligados às bancadas religiosas.
Ao examinarmos os mais de cem pronunciamentos contrários à distribuição do material
proferidos por parlamentares no plenário da Câmar
a dos Deputados entre fins de 2010 e início
de 2012, foi possível identificar uma linha argumentativa comum. O eixo central de seu discurso
acusava o material de, ao apresentar de forma positiva a vivência de personagens LGBT+, ir
além do combate à discrim
inação para se caracterizar como instrumento de incitação e
promoção de comportamentos supostamente desviantes (tanto do ponto de vista religioso
quanto biológico)
–
que poderiam ser tolerados, mas jamais valorizados, especialmente entre
crianças e jovens.
Essa abordagem, que parlamentares acusavam ser incitada por um ativismo
que teria desproporcional influência sobre o governo, constituiria, na sua visão, uma ameaça à
infância e à juventude. Nas falas desses parlamentares, a valorização de múltiplas práti
cas
sexuais
-
afetivas e identidades de gênero era percebida como um ataque a pressupostos que
constituiriam fundamentos da família
–
entendida sempre no singular, dentro de uma
perspectiva cis
-
heteronormativa. Ao abalar a família, colocariam em risco aquela
que é
identificada como a instituição responsável pela formação moral da sociedade. Nesses
discursos, moral e cristianismo se confundem e a religião é percebida como única linguagem
possível de formação ética. Por supostamente atacar pontos que seriam fun
damentais na
formação moral cristã, o material constituiria uma ameaça capaz de afetar a integridade de toda
a sociedade brasileira.
Pressionado pelas frentes religiosas no Congresso, inclusive por parlamentares
conservadores que compunham naquele momento
sua própria base de sustentação, o Governo
Federal, acabou por suspender a distribuição do material, que foi publicamente vetado pela
presidenta. Em meio ao anúncio da interrupção do material, Dilma Rousseff, ao ser interpelada
por jornalistas, declarou qu
e o governo seguia comprometido com a luta contra práticas
homofóbicas, mas que não seria permitido a nenhum órgão do governo fazer “propaganda de
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