image/svg+xmlPolítica de educação em gênero e diversidade sexual: Histórico e presente da experiência brasileiraRIAEERevista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 17, n. esp. 3, p. 2215-2234, nov. 2022e-ISSN: 1982-5587DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v17iesp.3.166912215POLÍTICA DE EDUCAÇÃO EM GÊNERO E DIVERSIDADE SEXUAL: HISTÓRICO E PRESENTE DA EXPERIÊNCIA BRASILEIRAPOLÍTICA EDUCATIVA SOBRE GÉNERO Y DIVERSIDAD SEXUAL: HISTORIA Y PRESENTE DE LA EXPERIENCIA BRASILEÑAEDUCATION POLICY ON GENDER AND SEXUAL DIVERSITY: HISTORY AND PRESENT OF THE BRAZILIAN EXPERIENCEAlexandre BORTOLINI1Cláudia Pereira VIANNA2RESUMO: Este artigo apresenta parte dos resultados de uma pesquisa de doutorado dedicada a analisar o ciclo de desenvolvimento da política educacional em gênero e diversidade sexual no Brasil. A partir das proposições de Stephen Ball, que acionam noções foucaultianas de poder e discurso para a análise de políticas educacionais, buscou-se, para além da métrica, compreender as dinâmicas político-discursivas que marcaram tanto a produção dessa política quanto a sistemática reação que se lançou sobre ela. Neste artigo, são apresentados seus antecedentes, suas principais ações, os agentes envolvidos na sua construção e o discurso pedagógico que produziram. São identificados também seus principais opositores, suas táticas de ação e estratégias discursivas, apontando como se articularam com os movimentos reacionários que marcaram o país nos últimos anos. Por fim, apontam-se indícios de que o debate sobre gênero e diversidade sexual nas escolas sobrevive mesmo em tempos de conservadorismo, censura e terrorismo ideológico.PALAVRAS-CHAVE: Educação. Gênero. Sexualidade. RESUMEN:Este artículo presenta parte de los resultados de una investigación doctoral dedicada a analizar el ciclo de desarrollo de la política educativa sobre género y diversidad sexual en Brasil. A partir de las proposiciones de Stephen Ball, que activan nociones foucaultianas de poder y discurso para el análisis de políticas educativas, se buscó, más allá de la métrica, comprender las dinámicas político-discursivas que marcaron tanto la producción de esta política como la reacción sistemática que se lanzó contra ella. Este texto analiza los antecedentes de esta política, sus principales acciones, los agentes involucrados en su construcción y el discurso pedagógico que produjeron. También se identifican sus principales opositores, sus tácticas de acción y estrategias discursivas, buscando comprender cómo se articulan con los movimientos reaccionarios que han marcado al país en los últimos años. Finalmente, señalase indicios de que el debate sobre género y diversidad sexual en las escuelas sobrevive aún en tiempos de conservadurismo, censura y terrorismo ideológico.PALABRAS CLAVE: Educación. Género. Sexualidad.1Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro RJ Brasil. Professor Substituto do Núcleo de Políticas Públicas em Direitos Humanos. Doutorado em Educação (USP). ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8769-6837. E-mail: bortolini.alexandre@gmail.com2Universidade de São Paulo (USP), São Paulo SP Brasil. Professora Sênior da Faculdade de Educação. Doutorado em Educação (USP). ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9366-4417. E-mail: cpvianna@usp.br
image/svg+xmlAlexandre BORTOLINI e Cláudia Pereira VIANNARIAEERevista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 17, n. esp. 3, p. 2215-2234, nov. 2022e-ISSN: 1982-5587DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v17iesp.3.166912216ABSTRACT: This paper presents part of the results of a doctoral research dedicated to analyze the cycle of the educational policy on gender and sexual diversity in Brazil. Based on Stephen Ball's propositions, which appliesFoucault's notions of power and discourse on educational policies, the analysis aimes,, beyond the metrics, to understand the political-discursive dynamics that marked both the production of this policy as the systematic reaction that has been organized against it. This text analyzes the background of this policy, its main initiatives, the agents involved in its construction and the pedagogical discourse they produced. It also identifies its main opponents, their tactics and discursive strategies, seeking to understand how they are articulated with the reactionary movements that have dominated Brazil in recent years. Finally, the paper hilights evidences that the debate on gender and sexual diversity in schools survives even in times of conservatism, censorship and ideological terrorism.KEYWORDS: Education. Gender. Sexuality.IntroduçãoEste artigo apresenta parte dos resultados de uma pesquisa de doutorado em Educação dedicada a analisar o conjunto de iniciativas governamentais brasileiras que, nas últimas duas décadas, propuseram críticas e reformulações de práticas e saberes escolares com vistas ao enfrentamento à discriminação sexual e de gênero e à promoção dos direitos de mulheres e pessoas lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBT+) na e a partir daeducação. Iniciativas que, ainda que dispersas e descontínuas, se consideradas em conjunto, constituíram o que se pode definir como uma política educacional em gênero e diversidade sexual. A construção dessa política pública reuniu acadêmicos, ativistas, gestores, profissionais de educação e estudantes em uma rede de comunicação, articulação e ação que atravessou escolas, universidades, movimentos sociais e instâncias de governo. Neste espaço de interlocução foi produzido, de forma articulada e negociada, um discurso pedagógico diferenciado dos que, até então, tinham habitado as políticas educacionais brasileiras. Mesmo com orçamento pouco relevante e alcance limitado, essa política incitou o debate em inúmeras escolas, com impacto nos sistemas de ensino, na produção acadêmica e na legislação educacional.Desde cedo, essas iniciativas provocaram reações de grupos conservadores diversos, cujas ofensivas assumiram, na última década, um caráter sistemático. O embate em torno do ensino sobre gênero e diversidade sexual nas escolas transbordou as comunidades escolares e as áreas de gestão, alcançou o Congresso Nacional e as disputas eleitorais e tornou essa política educacional, personagem relevante nos principais episódios que marcaram a história política brasileira recente.
image/svg+xmlPolítica de educação em gênero e diversidade sexual: Histórico e presente da experiência brasileiraRIAEERevista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 17, n. esp. 3, p. 2215-2234, nov. 2022e-ISSN: 1982-5587DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v17iesp.3.166912217Para compreender seu ciclo de desenvolvimento dentro de um paradigma sócio-crítico, foi fundamental a contribuição do trabalho do pesquisador britânico Stephen Ball. Ao mobilizar a produção teórica de Michel Foucault para pensar as políticas públicas, Ball (2012) critica abordagens gerencialistas e aponta a importância de interpretar a política educacional dentro do contexto social e político mais amplo. Ao aplicar uma noção descentrada de poder à análise das políticas educacionais, sua abordagem ajudou a construir uma compreensão mais alargada dos espaços, tempos e processos pelos quais essa política pública foi construída. Implicou também uma percepção mais plural dos agentes envolvidos na sua produção e da qualidade da sua participação na definição das suas formas e do seu desenvolvimento. A noção foucaultiana de discurso operada por Ball ajudou também a perceber essa política educacional como um campo político onde a função e os sentidos da educação foram forjados, negociados e disputados. Sob essa perspectiva, construiu-se um desenho de pesquisa qualitativa focado não em uma avaliação programática das ações e resultados dessa política educacional (algo já bastante trabalhado por pesquisas anteriores), mas no conjunto de discursos que ela colocou em disputa e seus efeitos políticos mais amplos. Para compreen-la em sua dimensão político-discursiva, foi realizado um longo estudo bibliográfico, somado a uma análise direta de materiais textuais produzidos tanto por seus realizadores quanto por seus antagonistas, que buscou mapear as múltiplas estratégias discursivas que estes agentes colocaram em ação e seus efeitos na produção, desenvolvimento e inflexão desta política -e para além dela.Dentro dos limites deste artigo, apontamos, na primeira parte, alguns antecedentes que permitiram a emergência de uma política educacional em gênero e diversidade sexual no Brasil. Em seguida, identificamos suas principais ações, os agentes envolvidos na sua construção e o discurso pedagógico que produziram. Na terceira parte, percorremos episódios recentes para identificar seus principais opositores, suas táticas de ação e estratégias discursivas, analisando como se articularam com os movimentos reacionários que marcaram os últimos anos. Por fim, trazemos indícios de que o debate sobre gênero e diversidade sexual nas escolas brasileira resiste, ainda que sob um contexto de conservadorismo, censura e terrorismo ideológico.Antecedentes históricosNão é possível analisar quaisquer políticas de promoção de direitos de mulheres e LGBT+ no Brasil sem considerar o histórico de exclusão, repressão, criminalização e violência que definiu a atuação do Estado brasileiro sobre grupos subalternizados durante séculos. A imposição de um sistema de gênero cis-heteronormativo masculinista e racializado foi parte
image/svg+xmlAlexandre BORTOLINI e Cláudia Pereira VIANNARIAEERevista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 17, n. esp. 3, p. 2215-2234, nov. 2022e-ISSN: 1982-5587DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v17iesp.3.166912218fundamental dos processos de colonização que constituíram sociedades como a nossa (LUGONES, 2020). Presente desde sua gênese, o caráter patriarcal, classista e racista do Estado brasileiro persiste mesmo com o avanço de modelos políticos liberais e de nossa inserção periférica nocapitalismo global -e suas marcas podem ser encontradas ainda hoje (BIROLI, 2018). Tendo em conta esse investimento histórico é que podemos pensar uma variedade de políticas sexuais e de gênero, desenvolvidas, em especial, a partir da abertura democrática, como parte de um processo de despatriarcalização do Estado, no sentido de que confrontam, por dentro, o caráter masculinista, racista e cis-heteronormativo das nossas instituições e formas de governo (MATOS; PARADIS, 2014). Finda a contenção do regime militar, distintos campos políticos conseguiram se (re)organizar, entre eles ativismos mobilizados em torno de questões de gênero e sexualidade (FACCHINI; CARMO; LIMA, 2020). Sustentados na Constituição de 1988 e fortalecidos pelo arcabouço institucional produzido a partir do ciclo de conferências organizadas pelas Nações Unidas nos anos 1990, esses movimentos iniciaram processos de diálogo com o Estado brasileiro para a construção de políticas públicas centradas não mais na repressão, mas na promoção de direitos (CORRÊA, 2018). Esse processo se intensificou com as políticas de participação social implementadas pelo Partido dos Trabalhadores (PT) (IRINEU, 2016). Em 2004, um ano após a posse de Luís Inácio Lula da Silva, o Governo Federal realizou a conferência nacional que daria origem ao primeiro Plano Nacional de Políticas para as Mulheres (PNPM). No mesmo ano, era lançado o Programa Brasil Sem Homofobia (BSH) com o objetivo declarado de promover a cidadania de pessoas LGBT+. Se não inauguraram, o PNPM e oBSH ampliaram o volume, o alcance e a qualidade das políticas públicas voltadas a esses grupos.A produçãoAo analisar os planos e programas oriundos dessas políticas de participação social, é possível perceber um papel estratégico da educação. Por um lado, afirma-se a necessidade de superar o sexismo, o machismo e a lgbtfobia na escola como barreiras à garantia do direito à educação de mulheres e LGBT+. Por outro, as instituições de ensino são pensadas como plataforma para uma transformação cultural mais ampla, cujos efeitos iriam muito além dos pátios e das salas de aula. Estas proposições ganharam corpo a partir da criação, em 2004, da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad) no Ministério da Educação (MEC). Diversidade funcionava, então, como um “guarda-chuva” institucional e
image/svg+xmlPolítica de educação em gênero e diversidade sexual: Histórico e presente da experiência brasileiraRIAEERevista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 17, n. esp. 3, p. 2215-2234, nov. 2022e-ISSN: 1982-5587DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v17iesp.3.166912219discursivo, agregando estrategicamente um conjunto amplo e variado de políticas educacionais, demandadas por múltiplos movimentos sociais, que iam da educação indígena à socioeducação (CARREIRA, 2015). Dentre as políticas de educação para a diversidade, aquelas voltadas para as questões de gênero e sexualidade constituíram um dos pontos de maior tensão. O desafio não era pequeno: transformar as escolas brasileiras, historicamente comprometidas com a reprodução das disposições dominantes de gênero e sexualidade, em instituições promotoras da diversidade sexual e da igualdade de gênero. Em 2005, o Ministério da Educação lançou a primeira chamada pública para formação de profissionais da educação derivada do Brasil Sem Homofobia. Os cursos em gênero e diversidade sexual (GDS) focavam na discriminação por orientação sexual e identidade de gênero, enquanto promoviam uma visibilidade positiva de pessoas LGBT+, algo bastante inovador naquele momento. Implementadas inicialmente por organizações não governamentais, essas formações foram logo assumidas por universidades públicas e realizadas em todas as regiões do país. Em paralelo, foi lançado, em 2006, o curso Gênero e Diversidade na Escola (GDE), a partir de uma iniciativa da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM). Construído na relação com um movimento feminista multifacetado, o GDE trazia uma abordagem inovadora ao buscar trabalhar, de forma articulada, questões de gênero, orientação sexual erelações étnico-raciais. Criado pelo Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (CLAM), o curso tomaria múltiplas formas ao ser encampado por instituições de ensino superior de todo o país. Os projetos de formação desenvolvidos tanto no GDE quanto no GDS incluíram também a produção de materiais didáticos e a realização de atividades de multiplicação em escolas, ampliando os sujeitos mobilizados para além daqueles imediatamente alcançados pelos cursos. Vale ainda destacar duas outras linhas de ação: o Prêmio Construindo a Igualdade de Gênero, que premiava escolas e textos produzidos por estudantes -e o Projeto Escola Sem Homofobia -que previa produção de material, a realização de pesquisas e a formação de uma rede de gestores. Essas e outras ações, irradiadas a partir do Governo Federal, forçosamente envolveram, em maior ou menor grau, sistemas estaduais e municipais de educação, e propiciaram importantes espaços de diálogo entre movimentos sociais, instituições de pesquisa e redes de ensino.Ao examinar os produtos destas iniciativas em diálogo com a literatura já existente (em especial FERNANDES, 2011; MELLO et al., 2012; CARREIRA, 2015; IRINEU, 2016), é possível identificar uma multiplicidade de agentes que atuaram na construção dessas ações:
image/svg+xmlAlexandre BORTOLINI e Cláudia Pereira VIANNARIAEERevista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 17, n. esp. 3, p. 2215-2234, nov. 2022e-ISSN: 1982-5587DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v17iesp.3.166912220Associações, organizações e coletivos ativistas, em especial LGBT+ e feministas foram os responsáveis por boa parte da incidência política que permitiu a elaboração de uma agenda de gênero e diversidade sexual na educação. Colaboraram na execução das iniciativas, quando não assumiram eles próprios sua realização. Desses ativismos vêm também noções políticas que constituíram parte fundamental do repertório dessa política educacional. Gestores públicos da educação, desde políticos de grande visibilidade, que assumiram papel central nas disputas legislativas ou funções decisivas no executivo, até sujeitos atuantes nos espaços menos visíveis da gestão pública foram os responsáveis por criar as condições políticas, técnicas e operacionais que permitiram fazer fluir as agendas de gênero e diversidade sexual no sistema político e nos aparatos governamentais, por vezes se constituindo verdadeiros militantes a confrontar o patriarcalismo no interior do Estado.Pesquisadores, professores, estudantes e técnicos vinculados a instituições públicas de ensino superior, em sua maioria atuantes no campo dos estudos de gênero e da sexualidade, constituíram outro agente coletivo importante. Sua capacidade de circulação pela gestão educacional, sua posição privilegiada de enunciação e a infraestrutura que tinham disponível em suas instituições foram seus principais instrumentos de ação. Assumiram a coordenação e a execução de projetos de formação e produção de material, atuaram como consultores na elaboração de diretrizes e tiveram assento na maior parte dos mecanismos de participação social. Suas pesquisas foram acionadas para fundamentar cientificamente e legitimar a necessidade de uma política educacional em gênero e diversidade sexual. Trouxeram consigo também conceitos e teorias fundamentais à construção de uma pedagogia crítica às regulações de gênero e sexualidade. Profissionais de educação, em especial docentes alcançados pela formação continuada, recorrentemente reduzidos pela literatura a meros "implementadores", pouco ouvidos quando da formulação dos planos e programas, foram os responsáveis por materializar esta política no chão da escola. Afetados de modo extemporâneo por ações descontínuas de formação, com pouco ou nenhum recurso e contando com um amparo institucional vacilante, sua principal ferramenta foi a criatividade pedagógica. Em sua atuação polivalente e recorrentemente solitária, confrontaram o conservadorismo, reorganizaram práticas naturalizadas, reordenaram espaços e inventaram formas de trabalhar conteúdos até então ausentes dos currículos da educação básica.Por último, mas não menos importantes, estudantes de educação básica, em especial mulheres e LGBT+a maioria das análises percebidos como público-alvo, foram os principais mobilizadores das escolas para o debate sobre gênero e sexualidade, a partir de uma postura de
image/svg+xmlPolítica de educação em gênero e diversidade sexual: Histórico e presente da experiência brasileiraRIAEERevista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 17, n. esp. 3, p. 2215-2234, nov. 2022e-ISSN: 1982-5587DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v17iesp.3.166912221afronte que punha em xeque práticas escolares sexistas e lgbtfóbicas até então naturalizadas. Exerceram também um papel diretamente criativo, ao se engajarem na produção de recursos pedagógicos e ações de multiplicação.Um discurso pedagógico inovadorA interação colaborativa entre esses múltiplos agentes, simultaneamente convergente e polissêmica, foi capaz de gerar um discurso pedagógico, sob muitos aspectos, inovador. Um discurso que avançou na proposição da efetiva incorporação de uma perspectiva degênero na educação e inovou ao propor um debate sobre orientação sexual e identidade de gênero na escola sob a ótica da diversidade e dos direitos humanos. A partir da análise de parte da produção textual dessa política educacional, foi possível identificar alguns de seus núcleos de sentido. A noção, subsumida no conceito de gênero, de que os sentidos de feminino e masculino, assim como as relações entre homens e mulheres, são produto não de uma diferença sexual inata, fixa e universal, mas sim de uma construção social, histórica e mutável é um núcleo fundamental desse discurso pedagógico. Essa noção se sustenta em uma multiplicidade de saberes oriundos das ciências sociais e humanas, por um lado, e no aprendizado acumulado dos movimentos sociais, por outro. A partir desses saberes, denuncia-se como a naturalização de uma diferença sexual sustenta a existência de um sistema de dominação masculina, que privilegia os homens em detrimento das mulheres, garantido, não raro, pelo exercício violento de um poder masculino. Denuncia-se também um sistema cis-heteronormativo, que impõe por meio de diferentes técnicas até mesmo violentas uma cadeia vinculante entre sexo, identidade de gênero e orientação sexual. Propõe-se uma compreensão articulada das regulações de gênero e sexualidade, na qual misoginia, machismo, lgbtfobia e sexismo são pensados como formas integradas de regulação. Soma-se ainda uma perspectiva interseccional, incipiente de início, mas que se intensifica com o tempo, que permite identificar um mesmo sistema, simultaneamente patriarcal, capitalista, racista e cis-heteronormativo, a ser combatido.Em oposição à ideia de uma diferença sexual naturalizada, essa perspectiva construcionista percebe corpos, expressões, identidades de gênero, práticas sexuais e afetivas não a partir de um padrão normativo naturalizado, mas em sua multiplicidade, investindo no reconhecimento e valorização das diferenças. A desconstrução da diferença sexual se faz, por um lado, desvelando os processos históricos e politicamente implicados na produção do conhecimento científico, em especial os saberes produzidos pelas ciências biológicas. E, por
image/svg+xmlAlexandre BORTOLINI e Cláudia Pereira VIANNARIAEERevista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 17, n. esp. 3, p. 2215-2234, nov. 2022e-ISSN: 1982-5587DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v17iesp.3.166912222outro, denunciando o papel histórico do cristianismo na constituição simbólica e política das regulações de gênero e sexualidade, a que se contrapõe a laicidade como princípio organizador do Estado e da escola. A partir dessas críticas, são denunciadas como violações de direitos fundamentais práticas que, intencionalmente ou não, operam pela normalização dos sujeitos a padrões normativos de gênero e sexualidade.Essa construção discursiva, ao mesmo passo que reconhece a escola enquanto espaço histórico de reprodução das regulações sexuais e de gênero, acredita e investe em seu potencial transformador. Convoca-se então a escola a rever a si mesma, no sentido de superar práticas discriminatórias e se tornar um espaço de promoção da igualdade de gênero e de valorização da diversidade sexual e de gênero, na sua comunidade e para além dela. A noção de diversidade a partir da qual se propõe a discussão de gênero e sexualidade na escola aponta para uma tática não-conflitiva, que prioriza um investimento no diálogo pedagógico mais que no confronto. Sob esse arcabouço comum, no entanto, se construíram práticas pedagógicas muito diferentes, em sentido e em intensidade. Analisando atividades desenvolvidas em escolas por educadores que participaram de cursos de formação continuada, é possível encontrar práticas que apostaram na tolerância, no respeito, na superação da violência e na promoção de um ambiente de paz, sem que isso significasse, necessariamente, uma mudança substantiva nos pressupostos sexistas e cis-heteronormativos que organizam a vida escolar. Há outras, no entanto, que atuaram para além do combate à discriminação, investindo na desconstrução da escola enquanto tecnologia de normalização sexual e de gênero, propondo uma revisão profunda das práticas pedagógicas, do currículo e da gestão escolar. A coexistência de investimentos moderados e radicais é característica dessa política educacional.Ainda que essas noções não fossem em si inéditas e já circulassem nos meios científicos e nos movimentos sociais, o modo como elas foram trabalhadas e incorporadas a uma linguagem pedagógica constituiu, de fato, uma inovação na política educacional brasileira.Avanço e precariedadeDesde os seus primeiros anos de execução, a política educacional em gênero e diversidade sexual sobreviveu em grande parte com recursos oriundos de emendas parlamentares, não figurando entre as prioridades orçamentárias doGoverno Federal. Ainda que imprecisos, os registros oficiais mostram investimentos de cerca de 70 milhões de reais entre 2005 e 2014 -a partir de 2015 não houve financiamento significativo -e mais de 50 mil profissionais de educação alcançados pelas ações de formação no período. Parecem números
image/svg+xmlPolítica de educação em gênero e diversidade sexual: Histórico e presente da experiência brasileiraRIAEERevista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 17, n. esp. 3, p. 2215-2234, nov. 2022e-ISSN: 1982-5587DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v17iesp.3.166912223grandes, mas que se tornam irrisórios diante do orçamento geral do MEC -ainda que considerando apenas os investimentos voltados às políticas de diversidade (CARREIRA, 2015) -ou em relação ao número total de docentes atuantes no país -mais de 2 milhões de profissionais. Estudo produzido pela Universidade Federal de Goiás em 2012 sobre ações educativas derivadas do programa Brasil Sem Homofobia critica justamente a escala das ações implementadas, pela sua incapacidade de atingir a maior parte do sistema educacional do país (MELLOet al., 2012). Os autores destacam ainda o caráter pontual das ações, que teriam produzido efeitos muito limitados nas práticas escolares. Essa análise contrasta com a expressa na avaliação produzida pelo Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos a respeito do curso GDE, que descreve as iniciativas de formação como uma prática bem-sucedida e sem precedente na história da educação brasileira (CARRARA et al., 2011). Pouco preocupado com a escala, o relatório foca na inovação e na intensidade da experiência vivida pelos sujeitos e organizações que participaram dessas iniciativas. Outro estudo, também produzido pelo CLAM alguns anos mais tarde (CARRARAet al., 2017), traz indícios de que a bagagem teórico-conceitual, o conjunto de informações, a perspectiva e o exercício do diálogo ao longo dos cursos permitiram, ao menos para parte dos profissionais da educação envolvidos, construir instrumentos para atuar no dia a dia de suas escolas. Mais do que inconciliáveis, essas análises parecem apontar justamente para a convivência de avanços e precariedades como marca da política educacional em gênero e diversidade sexual no Brasil. Se é impossível negar a intensidade qualitativa de muitas experiências pedagógicas vivenciadas por escolas e educadores, os resultados quantitativos dessas ações ficaram ainda bastante distantes do que seria necessário para produzir mudanças substanciais no sistema escolar brasileiro como um todo.Para além dos númerosAlém de mobilizar redes de ensino e escolas, a política educacional em gênero e diversidade sexual produziu impacto importante no próprio campo científico. A execução dos cursos nas universidades ficou em sua maioria a cargo de núcleos de pesquisa e projetos de extensão, mobilizando a cada oferta um conjunto significativo de docentes, técnicos, estudantes de graduação e pós. Isso contribuiu para a consolidação de grupos de pesquisa e extensão em torno dessas temáticas nas universidades, gerando impactos também na produção científica (CARRARA et al., 2017).
image/svg+xmlAlexandre BORTOLINI e Cláudia Pereira VIANNARIAEERevista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 17, n. esp. 3, p. 2215-2234, nov. 2022e-ISSN: 1982-5587DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v17iesp.3.166912224Houve avanços importantes também no quadro normativo das políticas educacionais. Analisando as diretrizes educacionais aprovadas pelo Conselho Nacional de Educação ao longo dos anos 2000 é possível encontrar indícios das agendas de mulheres e LGBT+, materializadas em referências a gênero, identidade de gênero, orientação sexual e diversidade sexual. No conjunto, essas diretrizes educacionais afirmam a necessidade de trabalhar questõesligadas a gênero e sexualidade desde a educação infantil até o ensino médio, apontando uma abordagem focada não na padronização de comportamentos, mas na reflexão crítica, na autonomia dos sujeitos, na liberdade de acesso ao conhecimento, no reconhecimento das diferenças e no enfrentamento a toda forma de discriminação e violência. Embora em termos de alcance e recursos seu programa tenha sido bastante reduzido, essa política constituiu um posicionamento explícito ainda que precário de diferentes esferas de governo sobre a pertinência da abordagem de questões de gênero e sexualidade na escola dentro de uma perspectiva de valorização da diversidade, combate à desigualdade e promoção dos direitos humanos. Além do aspecto programático, essa dimensão expressiva e comunicativa das políticas públicas (PECHENY; DE LA DEHESA, 2011) não pode ser desconsiderada. Em um contexto político progressista, esse posicionamento, ainda que vacilante, serviu como legitimação para quem queria falar sobre gênero e sexualidadena escola, permitindo a proliferação de experiências didáticas que extrapolaram o raio direto de ação dos cursos de formação. A reaçãoDesde sua implementação, a política de educação em gênero e diversidade sexual provocou reações, de início esporádicas e pontuais, mas que, ao longo do tempo, ganharam escala, capilaridade e se tornaram sistemáticas. Encabeçadas por políticos de direita, lideranças religiosas, grupos conservadores e agentes do militarismo, o antagonismo a essa política ganhou apoio de largos setores da sociedade. Após a crise política de 2013, o combate à discussão de gênero e sexualidade nas escolas passou a integrar de forma central o repertório dos movimentos reacionários que tomaram o Brasil nos anos seguintes. Para compreender a natureza, a dinâmica e os efeitos políticos mais amplos dessa reação, foram investigados alguns episódios significativos, cuja análise resumimos a seguir.
image/svg+xmlPolítica de educação em gênero e diversidade sexual: Histórico e presente da experiência brasileiraRIAEERevista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 17, n. esp. 3, p. 2215-2234, nov. 2022e-ISSN: 1982-5587DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v17iesp.3.166912225A polêmica do “kit gayO primeiro desses episódios, já amplamente analisado, ocorreu em 2011, primeiro ano de governo de Dilma Rousseff, envolvendo o conjunto de materiais produzidos pelo Projeto Escola Sem Homofobia. Apresentado em um seminário no Congresso Nacional em fins de 2010, o material foi duramente atacado pelo deputado Jair Bolsonaro, até então, um congressista pouco expressivo para além de seu próprio círculo militar. Autor do termo "kit gay", Bolsonaro já vinha empreendendo uma sistemática oposição às políticas sexuais e de gênero, em especial, na educação. No início do novo ano legislativo, outros parlamentares se somaram no ataque ao material, em especial, congressistas ligados às bancadas religiosas. Ao examinarmos os mais de cem pronunciamentos contrários à distribuição do material proferidos por parlamentares no plenário da Câmara dos Deputados entre fins de 2010 e início de 2012, foi possível identificar uma linha argumentativa comum. O eixo central de seu discurso acusava o material de, ao apresentar de forma positiva a vivência de personagens LGBT+, ir além do combate à discriminação para se caracterizar como instrumento de incitação e promoção de comportamentos supostamente desviantes (tanto do ponto de vista religioso quanto biológico) que poderiam ser tolerados, mas jamais valorizados, especialmente entre crianças e jovens.Essa abordagem, que parlamentares acusavam ser incitada por um ativismo que teria desproporcional influência sobre o governo, constituiria, na sua visão, uma ameaça à infância e à juventude. Nas falas desses parlamentares, a valorização de múltiplas práticas sexuais-afetivas e identidades de gênero era percebida como um ataque a pressupostos que constituiriam fundamentos da família entendida sempre no singular, dentro de uma perspectiva cis-heteronormativa. Ao abalar a família, colocariam em risco aquelaque é identificada como a instituição responsável pela formação moral da sociedade. Nesses discursos, moral e cristianismo se confundem e a religião é percebida como única linguagem possível de formação ética. Por supostamente atacar pontos que seriam fundamentais na formação moral cristã, o material constituiria uma ameaça capaz de afetar a integridade de toda a sociedade brasileira.Pressionado pelas frentes religiosas no Congresso, inclusive por parlamentares conservadores que compunham naquele momento sua própria base de sustentação, o Governo Federal, acabou por suspender a distribuição do material, que foi publicamente vetado pela presidenta. Em meio ao anúncio da interrupção do material, Dilma Rousseff, ao ser interpelada por jornalistas, declarou que o governo seguia comprometido com a luta contra práticas homofóbicas, mas que não seria permitido a nenhum órgão do governo fazer “propaganda de
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