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Paulo Freire e o ensino fundamental: Reflexões sobre uma formação crítica
RIAEE
–
Revista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 17, n. 3, p. 1514-1531, jul./set. 2022. e-ISSN: 1982-5587
DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v17i3.16834
1514
PAULO FREIRE E O ENSINO FUNDAMENTAL: REFLEXÕES SOBRE UMA
FORMAÇÃO CRÍTICA
PAULO FREIRE Y LA EDUCACIÓN PRIMARIA: REFLEXIONES SOBRE UNA
FORMACIÓN CRÍTICA
PAULO FREIRE AND ELEMENTARY SCHOOL: REFLECTIONS ON A CRITICAL
FORMATION
Marco Antônio Batista CARVALHO
1
Adrian Alvarez ESTRADA
2
Fabio Lopes ALVES
3
Valdecir SOLIGO
4
RESUMO
: A formação de estudantes, em qualquer que seja o nível de escolarização, enseja
sempre a necessidade e a expectativa de que esses sejam sujeitos críticos. Esse texto, com uma
abordagem qualitativa, se ocupa em provocar, a partir de uma perspectiva freireana, o que pode
ser essa formação e esse exercitar da criticidade, não se ocupando com um corolário de
definições, mesmo que de renomados pesquisadores, sobre o que venha a ser um sujeito crítico,
uma necessidade básica para se poder pensar em um processo de escolarização que viabilize
essa almejada formação crítica. Para isso, o texto apresenta e discute algumas ações que, no
transcorrer da história, marcaram seus idealizadores por conta de posicionamentos, ideias e
ações questionadoras em seu tempo histórico e que demarcam, para essa análise, um pensar e
agir crítico e que pode ser refletido por todos os envolvidos direta e indiretamente com o
processo educativo.
PALAVRAS-CHAVE
: Paulo Freire. Formação crítica. Educação. Sujeito crítico.
RESUMEN
:
La formación de los estudiantes, cualquiera que sea el nivel educativo, siempre
suscita la necesidad y la expectativa de que sean sujetos críticos. Este texto se preocupa de
provocar, desde una perspectiva freireana, lo que puede ser esta formación y este ejercicio de
la criticidad, no tratando un corolario de definiciones, aunque sean de reconocidos
investigadores, sobre lo que será un sujeto crítico, una necesidad básica de poder pensar en
un proceso de escolarización que haga posible esta deseada formación crítica. Para ello, el
1
Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), Cascavel
–
PR
–
Brasil. Professor do Programa de Pós-
Graduação em Ensino de Ciências e Matemática (PPGECEM). Doutorado em Letras e Linguística (UFBA).
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6811-2661. E-mail: marcoab_carvalho@yahoo.com.br
2
Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), Cascavel
–
PR
–
Brasil. Professor do Programa de Pós-
Graduação em Sociedade, Cultura e Fronteiras (PPGSCF). Doutorado em Educação (USP). ORCID:
https://orcid.org/0000-0002-0980-8925. E-mail: adrianalvarez.estrada@gmail.com
3
Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), Cascavel
–
PR
–
Brasil. Professor do Programa de Pós-
Graduação em Sociedade, Cultura e Fronteiras (PPGSCF). Doutorado em Ciências Sociais (UNISINOS). ORCID:
https://orcid.org/0000-0002-2114-3831. E-mail: fabiobidu@hotmail.com
4
Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), Cascavel
–
PR
–
Brasil. Professor do Programa de Pós-
Graduação em Sociedade, Cultura e Fronteiras (PPGSCF). Doutorado em Educação (UNISINOS). ORCID:
https://orcid.org/0000-0003-2618-009X. E-mail: valdecir_soligo@yahoo.com.br
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Marco Antônio Batista CARVALHO; Adrian Alvarez ESTRADA; Fabio Lopes ALVES e Valdecir SOLIGO
RIAEE
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texto presenta y discute algunas acciones que, en el transcurso de la historia, marcaron a sus
creadores al cuestionar posiciones, ideas y acciones en su tiempo histórico y que demarcan,
para este análisis, un pensamiento y un actuar críticos que pueden reflejarse por todos los
involucrados directa e indirectamente en el proceso educativo.
PALABRAS CLAVE
:
Paulo Freire. Formación crítica. Educación. Sujeto crítico
ABSTRACT
: The student’s formation, in any level of schooling, always entails the need and
expectation that they become critical subjects. This text aims to provoke, from Paulo Freire’s
perspective, what this formation and the criticality practice can be, not occupying with a
corollary of definitions, even of renowned researchers, about what will become a critical
subject, a basic need to be able to think in a schooling process that makes this desired critical
formation viable. For this, the text presents and discusses some actions that, throughout history,
marked the creators due to their positions, ideas and questioning actions in their historical time
and that demarcate, for this analysis, a critical thinking and acting that can be reflected by all
those involved directly and indirectly with the educational process.
KEYWORDS
: Paulo Freire. Critical formation. Education. Critical subject.
Introdução
Estudar seriamente um texto é estudar o estudo de quem, estudando, o
escreveu. É perceber o condicionamento histórico-sociológico do
conhecimento. É buscar as relações entre o conteúdo em estudo e outras
dimensões afins do conhecimento. Estudar é uma forma de reivindicar, de
recriar, de reescrever
–
tarefa de sujeito e não de objeto. [...] A compreensão
de texto não é algo que se recebe de presente. Exige trabalho paciente de
quem por ele se sente problematizado.
Paulo Freire
Na América Latina, um dos discursos que reconheceu a necessidade de uma educação
escolar que propiciasse uma formação crítica é o da Conferência de Ministros da Educação.
Esse evento, que ocorreu em Caracas, de 6 a 15 de dezembro de 1971, ficou marcado pela
afirmação de que “toma corpo a ideia de uma educação libertadora que contribua para a
consciência crítica” e que essa formação viesse a “estimular a participação responsável do
indivíduo nos processos culturais, sociais, políticos e econômicos” (FREIRE, 1980, p. 7).
O Estado Brasileiro, por sua vez, defende a formação de sujeitos críticos pelo processo
de escolarização. O discurso que expressa essa intenção pode ser observado no texto da Lei de
Diretrizes e Bases da Educação
–
LDB nº 9.394/1996 (BRASIL, 1996), em seu Art. 35, no
Inciso III: “o aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e
o desen
volvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico”. Nota
-se, porém, que a
indicação de uma formação crítica, nos três níveis, aparece, somente, na seção que trata do
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ensino médio. Quanto à formação nos primeiros anos da educação,
i.e.
, na educação infantil e
no ensino fundamental, a finalidade da educação é assim enunciada:
Art. 29. A educação infantil, primeira etapa da educação básica,
tem como
finalidade o desenvolvimento integral da criança até seis anos de idade, em
seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social
, complementando a ação
da família e da comunidade.
Art. 32. O ensino fundamental, com duração mínima de oito anos, obrigatório
e gratuito na escola, terá por objetivo a formação básica do cidadão, mediante:
I
–
o desenvolvimento da capacidade de aprender, tendo como meios básicos
o pleno domínio da leitura, da escrita e do cálculo.
(BRASIL, 1999, grifo
nosso)
É perceptível que, além de não se fazer menção alguma a uma formação crítica na
educação infantil e tampouco no ensino fundamental, o aprendizado da leitura e da escrita
aparecem no texto da lei como uma aquisição mecanicista em que o aprender a ler e a escrever
é o que se basta por si mesmo, ou seja, não se vincula o aprendizado da leitura e da escrita a
uma potencial ferramenta ou instrumento crítico para a leitura de mundo. Uma formação muito
distante daquela que pode mostrar ao aluno que, por exemplo, a linguagem é, antes de tudo,
uma prática social e, como tal, não desprovida de caráter ideológico e permeada por relações
de poder.
Quanto ao ensino superior, o texto da LDB nº 9.394/1996 (BRASIL, 1996), em seu Art.
43, diz que a sua finalidade é “estimu
lar a criação cultural e o desenvolvimento do espírito
científico e do pensamento reflexivo”. Nesse recorte, se observa um discurso que evoca uma
formação crítica do aluno, isto se considerarmos que desenvolver um espírito científico e um
pensamento reflexivo é tarefa que não se imagina sem uma postura crítica. Enfim, a escola deve
formar sujeitos ativos, participativos, e transformadores da sociedade como enuncia a LDB nº
9.394/1996 (BRASIL, 1996).
Diante desse discurso que evoca uma formação crítica, podemos dizer que o conjunto
da obra do educador Paulo Freire e, obviamente, muito do que já se produziu sobre ela e sobre
ele, apontam, de forma contundente, para uma educação, no campo escolar, que seja marcada
pela criticidade, ou seja, que os homens e mulheres no exercício do uso dos saberes que lhe são
trabalhados no processo de escolarização, e não somente transmitidos, exercitarem sua
capacidade de pensar e, principalmente, de pensar criticamente.
Assim, entendemos que seja oportuno mais essa provocação, no sentido de teorizar o
que seria uma formação crítica a partir já do ensino básico, ou seja, aquela etapa escolar que
pode dar alicerce, fundamentos para uma melhor reflexão dos conteúdos trabalhados em relação
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com as práticas sociais mais imediatas dos alunos, ação que nos parece, na atualidade, ter se
transformado em um jargão, qual seja,
partir da realidade do aluno
. Mas perguntemo-nos: Será
que o professor que insere esse objetivo em seu plano de trabalho conhece mesmo essa tal
realidade? É crítico bastante para percebê-la e, portanto, intermediar os saberes de sua área com
essa realidade, ou seja, com os saberes que permeiam o mundo das vivencias de seus alunos?
Essas questões culminam para duas questões basilares: podemos mesmo, como educadores da
educação básica, formar sujeitos críticos? Que conceito possuímos de sujeito crítico?
Para discutir essas questões basilares é importante, primeiramente, referendar que, de
fato, para Freire (1992), a educação escolar deve ter seu ponto de partida centrado nas
experiências mais imediatas que o aluno possui em suas vivencias. Sobre isso, ao comentar a
necessidade do respeito aos saberes que o educando traz para a escola, Freire (1992, p. 86, grifo
do autor) diz que “a localidade dos educandos é o ponto de par
tida para o conhecimento que
eles vão criando do mundo. ‘Seu’ mundo, em última análise é a primeira e inevitável face do
mundo mesmo”.
Logo, conhecer a dinâmica dessas relações sociais imediatas dos alunos é uma
necessidade para que os conteúdos que serão dinamizados pelo trabalho escolar ganhem uma
dimensão para além de seu caráter meramente informativo, ou seja, a busca constante da
superação de práticas pedagógicas repetitivas, marcadas por um ensino teórico memorístico,
fragmentado e, na maioria das vezes, dissociado da realidade social dos alunos.
Trabalhar por essa perspectiva, implica, minimamente, de todos os atores sociais
envolvidos, o desejo e a busca por uma formação crítica. Contudo, retomando as questões
basilares, cabe agora questionar: Afinal, o que é ser crítico?
Conceituando o ser crítico - por uma vertente religiosa
A palavra
crítica
é oriunda do termo grego
crinein,
que significa separar e julgar. Por
essa definição, bastaria dizer que uma pessoa crítica é aquela que separa o objeto a ser apreciado
e lança sobre ele um determinado juízo de valor,
i.e.
, um julgamento. Assim, socialmente
criamos a função do crítico por profissão, uma vez que temos, na atualidade, o crítico de arte,
de cinema, de futebol, da política, o crítico literário, entre outros. É importante destacar que,
embora tenhamos criado o crítico por profissão e o crítico político, tal qual o literário, essas não
são funções criadas na atualidade. Aristóteles já exercia sua análise crítica sobre a política.
Afinal, para ele,
“o ser humano é fundamentalmente político”.
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O emprego dessa palavra já pode ser observado no texto bíblico. No
Gênesis
, há o
emprego da palavra
crítica
com o mesmo sentido de um julgamento contrário a uma
determinada prática. Nota-se que o primeiro livro da Bíblia, cuja escrita em hebraico é atribuída
ao profeta Moisés, é datado de aproximadamente mais de 1.500 anos antes de Cristo. No
Gênesis,
em seu vigésimo primeiro capítulo, no versículo 25, há a referência de que “Abraão
criticou severamente a Abimeleq
ue” (BÍBLIA, 2006, p. 39). Essa referência, presente no
contexto Bíblico, exemplifica o emprego da crítica para questionar o já estabelecido ou o que
foi feito fora do pré-estabelecido.
Assim, na tentativa de dissertar sobre o que é ser crítico e, para isso, fugir de um
desenrolar de definições, ainda que sejam de renomados pesquisadores, procuramos definir o
ser crítico a partir das ações, posturas que, se entende, sejam de um sujeito crítico. Esse sujeito,
ou melhor, esses sujeitos, cujos nomes ficaram marcados na história em diferentes áreas do
saber, são identificados por demonstrarem posicionamentos, ideias e ações questionadoras em
seu tempo histórico e que demarcam, portanto, um pensar e agir crítico.
Essa postura crítica de sujeitos críticos é extremamente perceptível na história de uma
das grandes religiões. Na história do catolicismo, é possível perceber como a postura crítica de
alguns dos católicos atuantes foi decisiva na promoção de mudanças de postura e
encaminhamentos da Igreja. As críticas que o monge agostiniano Martinho Lutero dirigiu a
certos dogmas do catolicismo levaram a Igreja de Roma a não somente enfrentar severas baixas
em seu contingente, mas também a reestruturar-se em muitas de suas ações por conta do
movimento que historicamente ficou conhecido como a Reforma. Entre essas ações tomadas
pela Igreja está o efetivo envolvimento com a educação escolarizada.
No movimento reformista promovido por Martinho Lutero, que contou com a adesão
de muitos outros correligionários, as críticas contra determinados dogmas da Igreja eram
pontuais e culminaram com as conhecidas 95 teses de Lutero. Todavia, é com a crítica veemente
à concessão de indulgências em troca de contribuições financeiras para a Catedral de São Pedro,
em Roma, que Lutero instaurou toda uma luta contra o poder autoritário do catolicismo sob o
papado de Leão X
–
Giovanni de Medici. Instaurava-se, assim, uma luta, não somente contra
práticas litúrgicas e posturas ideológicas da Igreja, mas contra o poder,
i.e.
, contra aquilo que
os reformistas consideravam como abuso do poder da Igreja que, à época, produzia um
engessamento na capacidade de pensar e de se expressar do homem. Sobre isso, é importante o
comentário de Chassot (1994, p.
89): “os reformadores desejavam diminuir o controle
dogmático exercido pela igreja e assegurar, assim, maior liberdade de pensamento”.
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A crítica que Lutero dirigiu à Igreja Católica incita à reflexão acerca da importância de
uma postura crítica capaz de questionar a hegemonia de quem utiliza o poder visando a
manipular as maneiras de pensar, sentir e agir dos outros. Com a contundente crítica de Lutero
aos inabaláveis dogmas e ao inquestionável poder da Igreja, os homens puderam despertar para
a compreensão dos grilhões que tolhem sua liberdade de pensamento, de expressão e de ação.
Nesse sentido, Chassot (1994, p. 89) comenta que a postura crítica dos reformistas foi decisiva
“para as conquistas do humanismo e para novas posturas ante a ciência, facilitan
do, sem dúvida,
o surgimento de novas mentalidades”.
Esse embate, que não se encerrou com a reforma, uma vez que houve o movimento da
contrarreforma, nada mais é do que um dos muitos exemplos da potencialidade do pensamento
crítico em impulsionar movimentos que, no limite, podem transformar-se em amplas reformas,
ou seja, em relações sociais mais humanizadas e humanizantes. Em seu romance intitulado
O
nome da rosa
, Umberto Eco (1983) elabora um enredo no qual descreve o poder determinista
da Igreja e os embates que ocorriam em sua esfera interna. Entre outras razões, esses embates
ocorreram justamente por conta da postura crítica despertada por acontecimentos que ocorriam
fora dos portões da Igreja: o avanço da ciência e das artes, e a difusão de outras ideologias.
Esses acontecimentos produziram não somente posturas dissidentes, mas também posturas que
se mostraram ferrenhamente contrárias aos ditames dogmáticos da Igreja, abalando, assim, sua
poderosa hegemonia no período final da Idade Média.
É importante frisar que o movimento reformista não foi obra de um único visionário.
Na realidade, ele foi um movimento que se gestou, gradativamente, nas mais variadas
localidades e nos mais variados conventos, muitas vezes, saltando os muros que isolavam a
Igreja das demais práticas sociais que ocorriam fora de seus muros. Dito de outra maneira, o
movimento reformista foi um embate entre concepções ideológicas diferenciadas que se
encontravam em processo de formação e que contavam com a postura crítica de diferentes
pessoas, que, mesmo sendo portadoras de ideologias diferentes, tinham em comum o fato de se
posicionarem contra uma determinada hegemonia,
i.e.
, a hegemonia da Igreja. Essa postura
crítica e de luta dos reformistas culminou com a queima da Bula Papal em 31 de outubro de
1517, com a publicação das 95 teses de Lutero na porta da Capela de Wittenberg e com os
inevitáveis desdobramentos que se sucederam, como por exemplo, a guerra dos camponeses
que ocorreu de 1524 a 1525.
Essa reflexão, no campo histórico e de cunho religioso, que apresenta como diferentes
ideologias produzem posturas críticas, nos remete a lembrar que, no campo educativo, Freire
enfatiza sobre a importância de pedagogias críticas para identificar e combater ideologias
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deterministas. Para Freire
(2004, p. 19), é fundamental “trabalhar contra a ideologia fatalista
dominante e seu poder de incentivar a imobilidade por parte dos oprimidos e sua adaptação à
realidade injusta”. Isso implica também entendermos que, no campo educativo, estas ideologias
dominantes que quase sempre são veladas, visam anular e extinguir pedagogias críticas que
contribuem para que estudantes leiam e releiam o mundo.
Assim, o objetivo dessa narrativa, sobre como a postura crítica no interior da Igreja, de
alguns de seus membros, foi determinante para o surgimento de novas ideias, foi o de mostrar
que esse episódio coaduna-se com a afirmação de Gruppi (1978)
5
de que a luta hegemônica
também se manifesta pelo embate de uma ideologia sobre outra, de forma a suplantá-la ou, de
coexistir em um mesmo espaço de lutas. De fato, o que se pode observar nesse relato foi o
surgimento de uma ideologia, a protestante, que, em dado momento, se opôs terminantemente
à ideologia católica, e foi, paulatinamente, ganhando espaço. Porém, nesse episódio específico,
merece destaque que um dos possíveis fatores da luta ideológica travada pelo protestantismo
está diretamente ligado à leitura, ou seja, ao ser leitor: a leitura de textos bíblicos que antes eram
feitos somente em voz alta, agora, com uma modalidade alternativa de leitura, proporcionou o
surgimento de um novo leitor.
Essa afirmativa é decorrente das reflexões propostas nas obras de Roger Chartier (1999)
e Manguel (1997), que, ao se dedicarem ao estudo da leitura, afirmam que o advento da
invenção da escrita alfabética originou a leitura em voz alta. Como registra Alberto Manguel
(1997, p. 61): “As palavras escritas, desde os tempos das primeiras tabuletas sumérias,
destinavam-se a ser pronunciadas em voz alta, uma vez que os signos traziam implícito, como
se fosse sua alma, um som particular”. Entretanto, a partir de outras necessidades, Chartier
(1999) e Manguel (1997) revelam que a leitura também passou a ser silenciosa, ou seja, surge
a figura do leitor silencioso.
Para caracterizar esse leitor silencioso, podemos fazer uso da mesma analogia
empregada por Manguel (1997) quando afirmou que a leitura em voz alta possuía um “som
particular”, audível e inconteste. Entretanto, no caso da leitura silenciosa, o leitor passa a ouvir
outros sons, o som de suas reflexões, das reflexões sobre o que está lendo. Por sua vez, como
essa nova modalidade de leitura e de ser leitor se dá, principalmente, nas clausuras dos
mosteiros medievais, é significativo citar que Manguel (1997) faz referência a como a leitura
silenciosa contribuiu para o nascimento da ideologia protestante e, até hoje, a leitura silenciosa
5
Uma discussão aprofundada sobre o conceito de hegemonia pode ser encontrada, por exemplo, nas obras:
MARCCIOCCHI, M-A.
A favor de Gramsci
. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980 e GRUPPI, L.
O conceito de
hegemonia em Gramsci
. Rio de Janeiro: Graal, 1978.
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tem produzido outros olhares, outras interpretações, outras ideias, outras lutas, nos mais
diferentes contextos. Ao se referir a uma representação gráfica de santo Agostinho observando
a leitura silenciosa de santo Ambrosio, Manguel (
1997, p. 71)
nos revela que:
Observando a leitura de santo Ambrósio naquela tarde de 384, Agostinho
dificilmente poderia saber o que estava diante dele. Pensou estar vendo um
leitor tentando evitar visitantes intrusos, economizando a voz para o ensino.
Na verdade, ele estava vendo uma multidão de leitores silenciosos que ao
longo dos séculos seguintes iria incluir Lutero, Calvino, Emerson e nós, que
o lemos hoje.
Argumentando que a leitura silenciosa exerceu influência no movimento reformista,
Simone Borges também ressalta a significativa importância que essa modalidade de leitura tem
na formação do leitor e dos desdobramentos para a sociedade:
[...] A leitura silenciosa transformou a ordem social, pois, criou novas funções
para a escrita, reformulou e introduziu comportamentos, desestabilizou
antigos conceitos como o de biblioteca. Ela esteve na base da Reforma de
Lutero e da Santa Inquisição. Fez desencadear novas práticas de letramento
que fomentaram, por sua vez, a formação de novos leitores e escritores, a
criação de novos gêneros e novos portadores de textos [...] (BORGES, 2010,
p. 04).
A questão da leitura, seja ela silenciosa ou não, se mostra, a partir da exposição destes
interlocutores pesquisados, como fundamental meio de promover e desenvolver a postura
crítica diante do objeto da leitura. Em Freire, a leitura e também a escrita, são tomados como
elemento fundante da necessária interpretação e interação com o mundo. Para demonstrar essa
importância, Freire publica
A importância do ato de ler: em três artigos que se completam
(1982) e, no transcurso de suas obras, a temática da leitura e de uma leitura crítica, será sempre
tratada com relevância pois ela será o alicerce para a compreensão, do que denomina de
“tramas” que estão presentes no mundo. Assim, dedicou
-se a propor um processo de
alfabetização baseado na necessária postura crítica diante do texto a ser lido, pensado,
dialogado. Comentando sobre esse processo, Freire (2001b, p. 21, grifo do autor) afirma que
“no fundo, esse conjunto de representações de situações concretas possibilitava aos grupos
populares uma “leitura” da “leitura” anterior do mundo, antes da leitura da palavra”.
Conceituando o ser crítico - por uma vertente filosófica
Saindo do campo religioso, verifica-se que o uso do termo
crítica
também é utilizado
na filosofia. Nicolla Abbagnano (2000, p. 223) faz referência ao filósofo modernista Emanuel
Kant como o filósofo que introduziu o termo
crítica
“para designar o processo através do qual
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a razão empreende o conhecimento de si”. Para Kant, influenciado pelo iluminismo de John
Locke, a função da crítica é propiciar ao homem a possibilidade de conhecer a sua real
capacidade intelectiva e de conhecer as diversas maneiras de perceber, conhecer e apreender o
mundo em que vive. Tanto é assim que sua obra mais conhecida
Crítica da Razão Pura,
foi
pensada, inicialmente, com o título:
Os limites da sensibilidade e da razão
. Kant fora
fortemente influenciado pelos pressupostos do iniciador da teoria do liberalismo, Locke, para
quem a ação mais importante do homem é dedicar-se a analisar cada uma de nossas formas de
conhecer o objeto cognoscível, ou seja, conhecer a origem de nossas ideias e de nossos
discursos, rejeitando totalmente a corrente cartesiana que defendia a teoria de que as ideias são
inatas.
Porém, muitos séculos antes de Kant exercer sua postura crítica, a filosofia, que, em seu
nascedouro se alicerçou sob a égide de analisar, refletir e criticar a capacidade e a finalidade do
homem de conhecer e de agir sobre o objeto a ser conhecido, já se deparava com questões que
colocavam os homens em constantes indagações e embates. Esses embates podem ser
identificados a partir das diferentes correntes filosóficas que se seguiram em meio à divisão
entre a filosofia antiga, também conhecida como filosofia grega, e a filosofia ocidental. Já na
filosofia antiga, é perceptível a postura crítica de seus mais destacados pensadores nos seus
quatro períodos, a saber, o cosmológico ou pré-socrático, o antropológico, também conhecido
como socrático, o sistemático e o greco-romano, também conhecido como helenístico.
Enquanto a filosofia pré-socrática empregava todos os sentidos,
i.e.
, as percepções
sensoriais para buscar entender a própria existência e a origem do universo e suas
transformações, Sócrates e Platão, representantes máximos do período antropológico,
afirmaram que os sentidos, nunca poderiam levar ao conhecimento, à verdade plena, uma vez
que as percepções sensoriais conduziam ao erro e eram passíveis de influência da mentira e da
falsidade. Assim, para a filosofia socrática, o conhecimento era algo dado aprioristicamente ao
homem, fruto de suas ideias puras, desprovidas de opiniões e das falsas percepções do mundo
dos sentidos. Cria-se, pois, a concepção de que o conhecimento se dá pela via racionalista, ou
seja, pelo emprego da razão.
Quem se contrapôs a essa forma de conceber o conhecimento foi justamente um
seguidor de Platão: Aristóteles. Esse filósofo postula que o conhecimento somente será possível
se tomado pela via experimental. Ao criticar a abordagem de seu mestre, Aristóteles cria uma
nova concepção filosófica que ficou conhecida como sistêmica. Formula, assim, três ações que
devem fundamentar a ação crítica do homem que busca conhecer: a observação fiel da natureza,
o rigor do método e o empirismo. Na primeira ação, a experiência deve ser sempre tomada
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como o ponto de partida. A segunda ação consistia em elaborar um conjunto de ações para se
poder chegar a um conhecimento, o que implicava a organização de procedimentos claros e
definidos para se poder realizar um estudo sistêmico do objeto a ser conhecido. Essa formulação
teórica de Aristóteles em idealizar uma via possível de se chegar ao conhecimento ficou
conhecida como empirismo, transcendendo seu tempo. Aristóteles foi apontado como o criador
da lógica, ou seja, do instrumento possível de se chegar ao conhecimento em qualquer área do
saber. A sua lógica foi reconhecida posteriormente por importantes ícones do pensamento
filosófico moderno, como, por exemplo, George Wilhelm Friedrich Hegel e Karl Marx, que
ampliaram a sua lógica propondo uma forma de pensar dialética e não linear.
Embora haja muitos outros filósofos que se destacaram entre Aristóteles e Marx, o
destaque inicial que se deu a Kant é justamente porque ele figura entre aqueles filósofos que
iniciaram uma discussão crítica sobre as possibilidades e os limites do conhecimento,
contrapondo-se, portanto, ao racionalismo e ao empirismo em suas proposições originais.
Contudo, é Kant quem processa uma síntese que busca integrar os postulados do racionalismo
e do empirismo numa relação dialética. Sua postura crítica ao analisar essas duas formas
filosóficas de conceber o conhecimento fornecerá a base para a criação de uma nova teoria: o
interacionismo.
Essa incursão na história, no campo religioso e no campo da filosofia é para destacar
como a atitude crítica foi determinante tanto para a negação como para a afirmação das grandes
teorias do conhecimento, a saber: o racionalismo, o empirismo e o interacionismo. Essas três
grandes teorias subsidiaram outras vertentes filosóficas, como o estruturalismo, a
fenomenologia e a teoria crítica. A pesquisadora Marilena Chauí (1995), ao tratar das atitudes
filosóficas capazes de submeter à crítica os dizeres e as ações sobre o mundo e de promover a
reformulação e a criação de novas concepções teóricas e visões de mundo, faz a seguinte
argumentação:
A primeira característica da atitude filosófica é
negativa
, isto é, um dizer não
ao senso comum, aos pré-conceitos, aos pré-juízos, aos fatos e às ideias da
experiência cotidiana, ao que “todo mundo diz e pensa”, ao estabelecido.
A segunda característica da atitude filosófica é
positiva
, isto é, uma
interrogação sobre
o que são
as coisas, as ideias, os fatos, as situações, os
comportamentos, os valores, nós mesmos. É também uma interrogação sobre
o porquê disso tudo e de nós, e uma interrogação sobre como tudo isso é assim
e não de outra maneira. O que? Por que é? Como é? Essas são as indagações
fundamentais da atitude filosófica.
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A face negativa e a face positiva da atitude filosófica constituem o que
chamamos de
atitude crítica
e
pensamento crítico
(CHAUÍ, 1995, p. 12,
grifos da autora).
É extremamente relevante destacar a importância da postura crítica para a vida social.
São as posturas críticas que provocam o nascimento e a evolução das diferentes concepções de
mundo e de homem ao longo da história da humanidade, concepções que, por sua vez, incidem
diretamente nas relações que os homens estabelecem entre si e com a natureza. Essas diferentes
concepções do campo filosófico, como, por exemplo, o humanismo, ceticismo, estruturalismo,
formalismo, fenomenologia e a teoria crítica, que se desmembraram de concepções basilares
do racionalismo, do empirismo e do interacionismo, estabeleceram-se a partir da leitura crítica
que os homens faziam acerca da teoria filosófica que até então lhes servia para responder suas
questões existenciais. Nesse processo de questionamento, os sujeitos críticos não somente
questionam as ideias de seu tempo, mas também contribuem decisivamente para que novas
ideias deem novos contornos ao mundo e estabeleçam novas relações entre os homens.
Sobre essa possibilidade de posturas críticas promoverem diferentes concepções de
compreendermos o mundo por uma abordagem filosófica que se vem discutindo, cabe citar que
esse conceito, o de possibilidade de mudanças, no campo da educação, também é evidenciado
na obra freireana. Par
a Freire, o termo “possiblidade”, está intimamente relacionado com uma
postura crítica que é, por sua natureza, transformadora, ou seja, a educação só pode exercer esse
processo de fomentar mudanças quando seus diferentes atores atuam de forma crítica,
compreendendo-se no tempo e no espaço. Para tanto, Freire (2001a, p. 84) nos ensina sobre
essa potencialidade por dizer que “porque, histórico, vivo a História como tempo de
possibilidade e não de determinação”.
O homem que se posiciona criticamente é o sujeito que contribui tanto para o
desenvolvimento do conhecimento como para o desvelamento de relações de dominação
presentes nas mais diferentes facetas da atividade humana. Jean-Jacques Rousseau foi um
desses grandes homens de pensamento crítico aguçado. Pode-se perceber, no conjunto de suas
obras, como ele colocou em questionamento certas verdades estabelecidas e como esses
questionamentos influenciaram a sua geração e as gerações que o sucederam. Para demonstrar
a influência do pensamento crítico de Rousseau na maneira de pensar do homem
contemporâneo, é oportuno citar João Carlos Brum Torres (2011) que, ao escrever a introdução
do livro
Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens
, uma das obras clássicas de
Rousseau, comenta sobre a extensão de suas ideias. Nessa introdução, Torres
(2011, p. 9, grifo
do autor)
faz o seguinte comentário sobre o pensador suíço:
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O reconhecimento do papel decisivo do
Segundo discurso
e, em geral, da obra
rousseauniana, na conformação do imaginário crítico da modernidade pode
ser expresso mais diretamente se dissermos que Rousseau é o
fundador
das
duas principais linhagens do pensamento crítico, que caracterizam essa época
histórica.
Para demonstrar como a postura crítica é determinante no processo de transformação da
forma de pensar dos homens e de sua forma de agir socialmente, Hans Joachim Störing (
2008,
p. 330, grifo do autor)
ao fazer um percurso na história da filosofia, faz a seguinte afirmação:
As exigências dos filósofos pela aplicação da razão (também em relação a
tudo o que foi tradicionalmente transmitido, palavra de ordem “crítica”, por
liberdade, tolerância, humanidade se impuseram de modo generalizado no
longo prazo. [...] A esses ideais devemos conquistas fundamentais como a
eliminação da tortura, o fim da perseguição a bruxas, o tratamento humano
dos doentes mentais, a eliminação de castigos corporais hediondos como a
roda ou o esquartejamento, o fim da escravidão, o reconhecimento da divisão
dos poderes nas constituições dos estados, [...] em suma: a paulatina
imposição dos direitos humanos, como eles estão formulados na declaração
de independência americana de 1776, e depois na “Déclaration des droits de
l’home”, da assembléia nacional de 1789, e que agora aparecem no estatuto
das Nações Unidas.
A constatação de que a postura crítica foi e continua sendo determinante para mudanças
que alteram as mais diferentes relações sociais pode ser também percebida no campo educativo.
Isso implica reconhecer que, da mesma forma como no campo religioso e no campo filosófico,
sujeitos críticos pensaram a educação de seu tempo e questionaram concepções, valores e
metodologias utilizadas no processo educativo e, mesmo sem essa pretensão, contribuíram para
a criação de modelos e práticas educativas que perduram por séculos. O que também pode ser
constado é que a postura crítica, que pode ser identificada em diferentes campos sociais, acaba,
em geral, influenciando também o processo de educação dos homens.
Para pegar um gancho na afirmação feita anteriormente acerca da postura crítica no
interior da Igreja de Roma, vale comentar um dos desdobramentos que ocorreram no período
da Reforma que teve impacto significativo para a educação. Para o reformista Martinho Lutero,
a educação era algo de importância fundamental para a formação cultural e espiritual da criança.
Essa observação pode ser percebida em um de seus discursos, intitulado
Sermão sobre a
necessidade de mandar os filhos à escola
, de 1530, e também na carta que escreveu, em 1524,
para os prefeitos e conselheiros de todas as cidades da Alemanha, na qual reivindicava a criação
de escolas cristãs. Um dos trechos dessa carta é citado por Gadotti (1999, p. 72), e nele, Lutero
afirma que “não há nenhuma outra o
fensa visível que, aos olhos de Deus, seja um fardo tão
pesado para o mundo e mereça castigo tão duro quanto à negligência na educação das crianças”.
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Essa preocupação com a educação do povo evocada por Lutero dá início a um processo de
criação de estruturas educativas com conteúdos culturais próprios, elaborados principalmente
por Felipe Melanchton, que posteriormente ficou conhecido como preceptor da Alemanha.
Sobre a criação dessas escolas no interior do movimento reformista, Cambi (1999, p. 250) diz
que Melanchton era
Muito ativo em promover e organizar escolas em diversas localidades da
Alemanha, o seu objetivo educativo é inicialmente expresso no
De corrigendis
adolescentia estudiis
de 1518, no qual defende a importância da instrução e a
validade da cultura antiga para penetrar a verdade das Escrituras.
O franco envolvimento dessa nova e crescente doutrina religiosa, a protestante, no
processo educativo, obrigou a Igreja Católica a elaborar e desenvolver um grande projeto na
área da educação. Mario Alighiero Manacorda (2000) diz que a Igreja realizou uma defesa
intransigente quanto à prerrogativa de atuar na educação dos homens. Tal orientação educativa
da Igreja Católica, como resposta ao protestantismo, segundo Manacorda (2000, p. 200) “foi
fixada no Concílio de Trento (1545-
1564)”.
Comentando a importância do Concílio de Trento para os rumos da educação, que se
destinava não à população em geral, mas a um determinado grupo, Franco Gambi (1999, p.
256) afirma:
Com o concílio de Trento, de fato, a Igreja de Roma adquire uma maior
consciência de sua própria função educativa e dá vida a significativo
florescimento de congregações religiosas destinadas de maneira especifica a
atividades de formação não só dos eclesiásticos, mas também dos jovens
descendentes dos grupos dirigentes.
Um fato muito importante que determinou diretrizes no campo da educação ocorridas
durante o Concílio de Trento é descrito por Manacorda (2000, p. 201, grifo do autor):
Basta lembrar, entre as vozes que ecoaram nas salas do concílio a de
Beccatelli, bispo de Ragusa, que, sem meio-termos e em tom muito áspero,
dissera: “Não há nenhuma necessidade de livros; o mundo, especialmente
depois da invenção da imprensa, tem livros demais; é melhor proibir mil livros
sem razão, do que per
mitir um merecedor de punição”.
Esse é um dos registros da história da educação no ocidente no qual o uso do poder pode
ser observado por meio da imposição da censura, uma imposição oficializada e que atingia, em
especial, o campo educativo. Muitos livros foram classificados como heréticos, dentre os quais,
obviamente, os escritos de Lutero, Calvino e outros reformistas que figuravam no
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librorum proibitorum
6
. Embora, nessa época, os livros fossem utilizados somente pelos
professores, pois raro era um aluno que dispunha de uma obra, a ideia aqui é a de destacar o
antagonismo presente no processo educativo, pois, enquanto a Igreja posicionava-se contrária
ao uso de livros que não tivessem a sua aprovação, o outro modelo educativo propunha
justamente o contrário.
Em um mundo que já fervilhava em termos de descobertas e de desenvolvimento nas
mais diferentes áreas do conhecimento, como, por exemplo, a invenção da imprensa e as
grandes navegações, as quais propiciaram o desenvolvimento do capitalismo comercial, as
teorias que se opunham aos dogmas sustentados pela Igreja, como foi o caso da teoria
heliocêntrica, proposta inicialmente por Nicolau Copérnico, não constavam no plano de estudos
criado pela Igreja durante os anos de 1586 a 1599, o chamado
Ratio Atque Institutio Studiorum
Societatis Jesu,
ou somente de
Ratio Studiorum
7
. Manacorda (2000, p. 202) ao comentar sobre
o plano, afirma que ele “regulamentou rigo
rosamente todo o sistema escolástico jesuítico: a
organização em classes, os horários, os programas e a disciplina”.
Entretanto, embora o plano de educação católico regulamentado pela
Ratio Studiorum
tenha influenciado quase todo o mundo em sua época, como afirma Gadotti (1999), pode-se
observar que na outra via,
i.e.
, no protestantismo, a educação, pela postura crítica de alguns,
que, nesse cenário de franco embate, se tornava uma postura política, também exercia forte
influência. Um desses críticos, talvez um dos maiores expoentes da educação de seu tempo, é
o morávio Jan Amos Seges, ou João Amós Comenius. Comenius propôs, em sua obra máxima,
intitulada
Didática magna
, exatamente o contrário do que se apregoava no movimento
reformista quanto ao uso de livros. Embora também questionasse a utilização de livros, cujos
autores Comenius chamava de pagãos, sua visão crítica da educação, sintonizada com o
desenvolvimento de seu tempo, o fez propor a criação de livros que pudessem agregar o saber
de todas as áreas e a utilização de livros como ferramentas, as quais analogamente chamava de
partitura
,
para a regência em sala de aula pelo maestro, no caso, o professor.
Sobre a distinção entre a proposta educativa de Comenius e a da Igreja de Roma,
sintetizada no
Ratio Studiorum
, João Luiz Gasparin (1994, p. 14) escreveu:
A didática sempre existiu na história dos homens, porque sempre se ensinou
e sempre se aprendeu. Em Comenius, todavia, ela adquire dimensões
peculiares que a diferenciam de todas as outras formulações anteriores ou
6
Índice de livros proibidos.
7
O Ratio Studiorum é o plano educacional que a Companhia de Jesus pôs à frente dos seus colégios à época da
Contra-Reforma) Sobre o material: SCHMITZ, E. F.
Os jesuítas e a educação
: Filosofia educacional da
companhia de Jesus. São Leopoldo, RS: Ed. Unisinos, 1994.
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contemporâneas, como, por exemplo, as de Ratke ou da
Ratio Studiorum
dos
Jesuítas.
Ainda, para destacar o ponto fulcral da diferença entre a proposta educativa da Reforma
e da Contra-Reforma, Cambi (1999, p. 256) faz a seguinte afirmação:
Nisso consiste a diferença mais significativa no plano educativo entre o
movimento da Reforma e o da Contra-Reforma. O primeiro privilegia a
instrução dos grupos burgueses e populares com o fim de criar as condições
mínimas para uma leitura pessoal dos textos sagrados, enquanto o segundo,
sobretudo com a obra dos jesuítas, repropõe um modelo cultural e formativo
tradicional em estreita conexão com o modelo político e social expresso pela
classe dirigente.
Quanto ao uso de livros e à criação de livros didáticos que, aliás, lhe é atribuída,
Comenius (2002, p. 365) faz a seguinte analogia:
O tipógrafo perfeito tem caracteres de todas as espécies, para nunca deixar de
ter algum de que possa necessitar. Do mesmo modo, nossos livros devem
conter tudo o que diz respeito à educação completa das mentes, para que, com
esses subsídios, ninguém possa deixar de aprender tudo o que é preciso
aprender.
Cabe salientar que a leitura pontual que se fez acima, de que no campo educativo
também é perfeitamente possível teorizar como a postura crítica de determinados sujeitos foi
decisiva para que ocorressem profundas alterações nas abordagens da educação de seu tempo,
não foi baseada em uma leitura linear somente do embate religioso entre a Igreja de Roma e o
Protestantismo. Levado a termo, em uma visão de totalidade, as questões, principalmente de
ordem econômicas e filosóficas, são condicionantes sociais que, em seu somatório,
contribuíram para que a proposta educativa de Comenius fosse idealizada e desenvolvida,
sendo, portanto, objeto de discussão até os nossos dias.
Considerações finais
Os relatos supracitados buscaram demonstrar o que se pode chamar de postura crítica,
logo, ação de sujeitos críticos. Esses exemplos, e, logicamente, poderiam ser outros, foram
selecionados uma vez que os desdobramentos da ação de Aristóteles, Lutero, Comenius,
Rousseau e Kant tiveram direta influência na educação de seu tempo e, muito mais, na
organização e nas práticas educativas escolares que se seguiram, algumas, inclusive que
praticamos até hoje em nossa modelo educacional escolar.
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Resta-nos, uma vez apresentada a postura crítica que pode idealizar um sujeito crítico,
provocar o leitor a pensar como isso pode influenciar os profissionais que atuam no ensino
fundamental a formar sujeitos críticos. Primeiramente por dizer que é exatamente isso que se
espera deles, seja pelo teor do texto da Lei apresentado no início desse artigo, seja pelo consenso
comum de toda a sociedade, ainda que não se saiba definir o que seja um sujeito crítico.
Incluir no diálogo o pensador Paulo Freire significa, a princípio, o reconhecimento de
que, em seu legado que é vasto em especial na área da educação, a formação crítica dos
diretamente envolvidos no processo, ou seja, alunos em formação, professores e gestores em
ação, necessita, imperiosamente, que suas posturas sejam marcadas pela criticidade, pois
somente assim poderíamos idealizar uma formação crítica, que pode e deve ter seu nascedouro
logo nos primórdios da educação escolar.
No conjunto das obras de Paulo Freire se observa como essa postura crítica é
fundamental para a formação de nossos estudantes ao longo de seu percurso no processo de
escolarização, para que estes compreendam e, inclusive, reajam a condição de possível
oprimidos diante da ação do opressor. Obviamente que esse entendimento conceitual, por si só,
já foi e continua sendo objeto de teses, escritas para estudar e discutir não somente o conceito
de oprimido, mas como, a partir dele, podemos avançar para outras reflexões no plano
educativo, histórico, sociológico, filosófico entre outros. Por isso mesmo, reafirmamos no
fechamento dessa reflexão, que a necessária formação crítica é uma das compreensões possíveis
para definirmos o conceito de oprimido em Paulo Freire que, de forma mais objetiva, implica
reconhecermos que existe polos antagônicos, a saber, o do oprimido e do opressor e, por conta
disso, a formação crítica é fundamental para essa compreensão, afinal, Freire (1979, p. 48, grifo
do autor) nos ensina que “a consciência crítica dos oprimidos significa, pois, consciência de si,
enquanto ‘classe para si’”.
Assim, por esse simples arrazoado, este texto referenda a importância dos escritos
freireanos como possível fonte de reflexões, não somente da importância de, desde os primeiros
anos da escolarização, se trabalhar na perspectiva de uma formação crítica, como também do
perfil necessário para o professor objetive e busque trabalhar com essa perspectiva de formação
crítica desde os anos iniciais. Sobre essas duas importantes reflexões podemos citar uma
advertência de Freire quanto a necessidade de o professor buscar a coerência entre o seu
discurso e as suas ações, logo, implica dizer ao professor que almejar trabalhar em prol de uma
formação crítica de seus alunos deve, minimamente, refletir como realiza sua autoavaliação na
qualidade de sujeito crítico.
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Como referenciar este artigo
CARVALHO, M. A. B.; ESTRADA, A. A.; ALVES, F. L.; SOLIGO, V. Paulo Freire e o ensino
fundamental: Reflexões sobre uma formação crítica.
Revista Ibero-Americana de Estudos
em Educação
, Araraquara, v. 17, n. 3, p. 1514-1531, jul./set. 2022. e-ISSN: 1982-5587. DOI:
https://doi.org/10.21723/riaee.v17i3.16834
Submetido em:
20/12/2021
Revisões requeridas em
: 03/02/2022
Aprovado em
: 19/04/2022
Publicado em
: 01/07/2022
Processamento e editoração: Editora Ibero-Americana de Educação.
Revisão, formatação, normalização e tradução.
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Paulo Freire y la educación primaria: Reflexiones sobre una formación crítica
RIAEE
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Revista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 17, n. 3, p. 1515-1533, jul./sept. 2022. e-ISSN: 1982-5587
DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v17i3.16834
1515
PAULO FREIRE E O ENSINO FUNDAMENTAL: REFLEXÕES SOBRE UMA
FORMAÇÃO CRÍTICA
PAULO FREIRE Y LA EDUCACIÓN PRIMARIA: REFLEXIONES SOBRE UNA
FORMACIÓN CRÍTICA
PAULO FREIRE AND ELEMENTARY SCHOOL: REFLECTIONS ON A CRITICAL
FORMATION
Marco Antônio Batista CARVALHO
1
Adrian Alvarez ESTRADA
2
Fabio Lopes ALVES
3
Valdecir SOLIGO
4
RESUMEN
:
La formación de los estudiantes, cualquiera que sea el nivel educativo, siempre
suscita la necesidad y la expectativa de que sean sujetos críticos. Este texto se preocupa de
provocar, desde una perspectiva freireana, lo que puede ser esta formación y este ejercicio de
la criticidad, no tratando un corolario de definiciones, aunque sean de reconocidos
investigadores, sobre lo que será un sujeto crítico, una necesidad básica de poder pensar en un
proceso de escolarización que haga posible esta deseada formación crítica. Para ello, el texto
presenta y discute algunas acciones que, en el transcurso de la historia, marcaron a sus creadores
al cuestionar posiciones, ideas y acciones en su tiempo histórico y que demarcan, para este
análisis, un pensamiento y un actuar críticos que pueden reflejarse por todos los involucrados
directa e indirectamente en el proceso educativo.
PALABRAS CLAVE
:
Paulo Freire. Formación crítica. Educación. Sujeto crítico
RESUMO
: A formação de estudantes, em qualquer que seja o nível de escolarização, enseja
sempre a necessidade e a expectativa de que esses sejam sujeitos críticos. Esse texto, com uma
abordagem qualitativa, se ocupa em provocar, a partir de uma perspectiva freireana, o que
pode ser essa formação e esse exercitar da criticidade, não se ocupando com um corolário de
definições, mesmo que de renomados pesquisadores, sobre o que venha a ser um sujeito crítico,
uma necessidade básica para se poder pensar em um processo de escolarização que viabilize
essa almejada formação crítica. Para isso, o texto apresenta e discute algumas ações que, no
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Universidad Estatal del Oeste de Paraná (UNIOESTE), Cascavel
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PR
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Brasil. Profesor del Programa de
Posgrado en Enseñanza de Ciencias y Matemáticas (PPGECEM). Doctor en Letras y Lingüística (UFBA). ORCID:
https://orcid.org/0000-0002-6811-2661. E-mail: marcoab_carvalho@yahoo.com.br
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Universidad Estatal del Oeste de Paraná (UNIOESTE), Cascavel
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PR
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Brasil. Profesor del Programa de
Posgrado en Sociedad, Cultura y Fronteras (PPGSCF). Doctorado en Educación (USP). ORCID:
https://orcid.org/0000-0002-0980-8925. E-mail: adrianalvarez.estrada@gmail.com
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Universidad Estatal del Oeste de Paraná (UNIOESTE), Cascavel
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Brasil. Profesor del Programa de
Posgrado en Sociedad, Cultura y Fronteras (PPGSCF). Doctor en Ciencias Sociales (UNISINOS). ORCID:
https://orcid.org/0000-0002-2114-3831. E-mail: fabiobidu@hotmail.com
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Universidad Estatal del Oeste de Paraná (UNIOESTE), Cascavel
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PR
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Brasil. Profesor del Programa de
Posgrado en Sociedad, Cultura y Fronteras (PPGSCF). Doctorado en Educación (UNISINOS). ORCID:
https://orcid.org/0000-0003-2618-009X. E-mail: valdecir_soligo@yahoo.com.br
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Marco Antônio Batista CARVALHO; Adrian Alvarez ESTRADA; Fabio Lopes ALVES y Valdecir SOLIGO
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Revista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 17, n. 3, p. 1515-1533, jul./sept. 2022. e-ISSN: 1982-5587
DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v17i3.16834
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transcorrer da história, marcaram seus idealizadores por conta de posicionamentos, ideias e
ações questionadoras em seu tempo histórico e que demarcam, para essa análise, um pensar e
agir crítico e que pode ser refletido por todos os envolvidos direta e indiretamente com o
processo educativo.
PALAVRAS-CHAVE
: Paulo Freire. Formação crítica. Educação. Sujeito crítico.
ABSTRACT
: The student’s formation, in any level of schooling, always entails the need and
expectation that they become critical subjects. This text aims to provoke, from Paulo Freire’s
perspective, what this formation and the criticality practice can be, not occupying with a
corollary of definitions, even of renowned researchers, about what will become a critical
subject, a basic need to be able to think in a schooling process that makes this desired critical
formation viable. For this, the text presents and discusses some actions that, throughout history,
marked the creators due to their positions, ideas and questioning actions in their historical time
and that demarcate, for this analysis, a critical thinking and acting that can be reflected by all
those involved directly and indirectly with the educational process.
KEYWORDS
: Paulo Freire. Critical formation. Education. Critical subject.
Introducción
Estudiar seriamente un texto es estudiar el estudio de quién, estudiando, lo
escribió. Es percibir el condicionamiento histórico-sociológico del
conocimiento. Se trata de buscar las relaciones entre el contenido en estudio
y otras dimensiones relacionadas del conocimiento. Estudiar es una forma de
reclamar, recrear, reescribir: tarea del sujeto y no objeto. [...] La
comprensión de textos no es algo que recibas como regalo. Requiere un
trabajo paciente de aquellos que se sienten problematizados por él.
Paulo Freire
En América Latina, uno de los discursos que reconoció la necesidad de una educación
escolar que proporcionara una formación crítica es el de la Conferencia de Ministros de
Educación. Este evento, que tuvo lugar en Caracas del 6 al 15 de diciembre de 1971, estuvo
marcado por la afirmación de que "toma forma la idea de una educación liberadora que
contribuya a la conciencia crítica" y que esta formación "estimularía la participación
responsable del individuo en los procesos culturales, sociales, políticos y económicos"
(FREIRE, 1980, p. 7).
El Estado brasileño, a su vez, defiende la formación de sujetos críticos a través del
proceso de escolarización. El discurso que expresa esta intención puede observarse en el texto
de la Ley de Lineamientos y Bases de la Educación - LDB Nº 9.394/1996 (BRASIL, 1996), en
su Art. 35, en el Ítem III: "la mejora del estudiante como persona humana, incluyendo la
formación ética y el desarrollo de la autonomía intelectual y el pensamiento crítico". Cabe
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Paulo Freire y la educación primaria: Reflexiones sobre una formación crítica
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Revista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 17, n. 3, p. 1515-1533, jul./sept. 2022. e-ISSN: 1982-5587
DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v17i3.16834
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señalar, sin embargo, que la indicación de una formación crítica, en los tres niveles, sólo aparece
en la sección que trata de la escuela secundaria. En cuanto a la formación en los primeros años
de la educación, es
decir
, en la educación de la primera infancia y la escuela primaria, el
propósito de la educación se establece así:
Artículo 29. La educación de la primera infancia, primera etapa de la
educación básica
tiene como objetivo el desarrollo integral de los niños hasta
los seis años de edad, en sus aspectos físicos, psicológicos, intelectuales y
sociales
, complementando la acción de la familia y la comunidad.
Artículo 32. La educación primaria, con una duración mínima de ocho años,
obligatoria y gratuita en la escuela, tendrá como objetivo la formación básica
del ciudadano, a través de: I
–
el desarrollo de la capacidad de aprender,
teniendo como medio básico el dominio pleno de la lectura, la escritura y el
cálculo.
(BRASIL, 1999, nuestro grifo)
Es notable que, además de no mencionar ninguna formación crítica en educación infantil
o en primaria, el aprendizaje de la lectura y la escritura aparecen en el texto de la ley como una
adquisición mecanicista en la que aprender a leer y escribir es lo que es suficiente para sí mismo,
es decir, aprender a leer y escribir no está vinculado a una herramienta potencial o instrumento
crítico para la lectura mundial. Una formación alejada de la que puede mostrar al alumno que,
por ejemplo, el lenguaje es, ante todo, una práctica social y, como tal, no exenta de carácter
ideológico e impregnada de relaciones de poder.
En cuanto a la educación superior, el texto de la LDB Nº 9.394/1996 (BRASIL, 1996),
en su Art. 43, dice que su propósito es "estimular la creación cultural y el desarrollo del espíritu
científico y el pensamiento reflexivo". En este apartado, observamos un discurso que evoca una
formación crítica del alumno, si consideramos que desarrollar un espíritu científico y un
pensamiento reflexivo es una tarea que no se imagina sin una postura crítica. Finalmente, la
escuela debe formar sujetos activos, participativos y transformadores de la sociedad como lo
establece la LDB Nº 9.394/1996 (BRASIL, 1996).
En vista de este discurso que evoca una formación crítica, podemos decir que toda la
obra del educador Paulo Freire y, obviamente, mucho de lo que ya se ha producido sobre ella y
sobre ella, apuntan fuertemente a una educación, en el ámbito escolar, que está marcada por la
criticidad, es decir, que hombres y mujeres en el ejercicio del uso del conocimiento que se
trabaja en él en el proceso de escolarización, y no solo transmiten, ejercen su capacidad de
pensar y, principalmente, de pensar críticamente.
Así, entendemos que es oportuna más esta provocación, con el fin de teorizar lo que
sería una formación crítica desde la educación básica, es decir, esa etapa escolar que pueda dar
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Marco Antônio Batista CARVALHO; Adrian Alvarez ESTRADA; Fabio Lopes ALVES y Valdecir SOLIGO
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Revista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 17, n. 3, p. 1515-1533, jul./sept. 2022. e-ISSN: 1982-5587
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fundamento, fundamentos para una mejor reflexión de los contenidos trabajados en relación
con las prácticas sociales más inmediatas de los alumnos, una acción que nos parece, hoy en
día, se han convertido en una jerga, es decir, de
la realidad del alumno
. Pero preguntémonos:
¿El maestro que inserta esta meta en su plan de trabajo realmente conoce esta realidad? ¿Es lo
suficientemente crítico como para entenderlo y, por tanto, mediar el conocimiento de tu área
con esta realidad, es decir, con el conocimiento que impregna el mundo de las experiencias de
sus alumnos? Estas preguntas culminan en dos preguntas básicas: ¿podemos realmente, como
educadores de educación básica, formar sujetos críticos? ¿Qué concepto tenemos como tema
crítico?
Para discutir estos temas básicos, es importante, en primer lugar, referir que, de hecho,
para Freire (1992), la educación escolar debe tener su punto de partida centrado en las
experiencias más inmediatas que el estudiante tiene en sus experiencias. Sobre esto, al comentar
la necesidad de respetar los conocimientos que el estudiante trae a la escuela, Freire (1992, p.
86, grifo del autor) dice que "la localidad de los estudiantes es el punto de partida para el
conocimiento que están creando del mundo". Es el mundo, en última instancia, es la primera e
inevitable cara del mismo mundo".
Por lo tanto, conocer la dinámica de estas relaciones sociales inmediatas de los
estudiantes es una necesidad para que los contenidos que serán dinamizados por el trabajo
escolar adquieran una dimensión más allá de su carácter meramente informativo, es decir, la
búsqueda constante de superación de prácticas pedagógicas repetitivas, marcadas por una
enseñanza teórica memorística, fragmentada y, en la mayoría de los casos, disociado de la
realidad social de los estudiantes.
Trabajar desde esta perspectiva implica, mínimamente, todos los actores sociales
involucrados, el deseo y la búsqueda de una formación crítica. Sin embargo, volviendo a las
preguntas básicas, ahora es necesario preguntarse: Después de todo, ¿qué es crítico?
Conceptualizar el ser crítico - por un aspecto religioso
La palabra
crítico proviene
del término griego