in Revista Ibero-Americana de Estudos em Educação
A TEORIA DA ESCOLA DUALISTA NA FORMAÇÃO DE TECNÓLOGOS
Resumo
Este trabalho localiza-se no campo das teorias da educação e sua relação com formação de tecnólogos. Assim, vem ao encontro à crescente oferta deste tipo especial de educação superior voltada para a formação de mão de obra qualificada demandada pelo mercado de trabalho. Objetiva analisar a formação de tecnólogos a partir do referencial teórico da escola dualista apresentado por Dermeval Saviani. Com uma abordagem qualitativa de pesquisa, baseada na revisão bibliográfica, os escritos a seguir tomam como guia a obra “Escola e Democracia (1999)”, de Saviani, e outros textos que problematizam o dualismo educacional. Concluímos que o mercado de trabalho constitui o espaço onde a teoria da escola dualista se materializa por meio de processos educativos, do ensino básico ao superior, que visam a formação da força de trabalho especializada e seduzida pelo discurso ideológico neoliberal de garantia de acesso a melhores postos de trabalho e ascensão social.
Main Text
Introdução
Séculos de escravismo e discriminação do trabalho manual marcaram e marcam o Brasil. Determinada por um lado pela desigualdade de acesso aos bens e aos serviços por parte daqueles que os produzem, e por outro pela concentração de renda por parte daqueles que detêm os meios de produção, essa estrutura secular de dualismo social replica-se num dualismo educacional que se estende por diferentes etapas, níveis e modalidades de ensino ao longo da história da educação brasileira.
A preocupação com os processos formativos da população, sobretudo a superação do analfabetismo, só surge no cenário político durante o século XX, mesmo que ligado aos interesses do capital e da classe detentora dos poderes políticos e econômicos. A educação ofertada era de caráter limitado às “primeiras letras e ao trabalho manual para os órfãos e desamparados”, enquanto para as classes dirigentes era destinada uma formação geral e propedêutica (CIAVATTA, 2013, p. 294).
A dualidade educacional é, portanto, antiga e duradoura. Seu caráter estrutural remonta à década de 1940, com a constituição de leis que regulamentaram a educação em ensinos paralelos e segmentados, sobretudo no ensino secundário, que era dividido em propedêutico e de caráter profissional. As leis que propunham a equivalência desses dois tipos de ensino secundário, que se seguiram nos anos de 1950, pouco promoveram a superação das estruturas de discriminação. Não obstante, novas configurações do ensino superior trataram de promover a expansão dessa dualidade para além da Educação Básica.
Na década de 1960, a iminência dos Cursos Superiores de Tecnologia como possibilidade de acesso das camadas populares aos níveis superiores de ensino reforçou a visão dualista de uma educação para a classe trabalhadora, diferente da ofertada para a classe dominante, além de contribuir para a consolidação de um projeto de construção hegemônico do capitalismo estrangeiro dentro da política de desenvolvimento nacional.
Atualmente, a consolidação da influência dos ideais neoliberais e suas reformas educacionais, materializadas na LDB nº 9.394/1996, que legitimaram a oferta de uma Educação Profissional e Tecnológica em nível superior, alinhada aos interesses e demandas do mercado de trabalho, revela a expansão da dimensão econômica sobre a escolarização, justificada pela teoria do capital humano em seu caráter circular (FRIGOTTO, 1989). Nesse sentido, a educação é chamada a dar sua parcela de contribuição ao desenvolvimento econômico a partir da formação de trabalhadores alinhados às necessidades do mercado e que comunguem da atual ideologia burguesa pautada no progresso e no consumo.
Diante dessa conjuntura e partindo de um referencial crítico do fenômeno ora exposto, compreendemos que a atual conjuntura do modelo educacional brasileiro, em especial na educação superior, a partir da segmentação de sua oferta em diferentes tipos de instituições e cursos, tem colaborado para a disseminação nos níveis mais elevados de educação de um dualismo educacional estrutural orientado pelas demandas capitalistas expostas anteriormente.
Nesse sentido, este trabalho volta-se para os Cursos Superiores de Tecnologia, com o objetivo de analisar a formação de tecnólogos a partir dos estudos de Dermeval Saviani sobre as teorias críticas-reprodutivistas, especificamente da teoria da escola dualista, presente na obra Escola e Democracia: teorias da educação, curvatura da vara, onze teses sobre educação e política (1999).
Para tanto, tomando como metodologia a revisão bibliográfica, revisitaremos os referenciais teóricos de Frigotto (1989), Saviani (1999), Santos (2009), Santos e Jiménez (2009), Ciavatta (2013), Moura (2013), Brandão (2013) e Santos e Xerez (2016), bem como analisaremos os dispositivos legais que compreendem os percursos histórico-normativos dos Cursos Superiores de Tecnologia.
A teoria da escola dualista
Para Dermeval Saviani (1999), as teorias educacionais têm diferentes estruturas e objetivos que podem superar ou reafirmar os problemas sociais que condicionam os sujeitos a um processo de marginalização social. Desse modo, o pensador divide as teorias da educação em dois grupos: o das teorias Não-Críticas e o das teorias Críticas-Produtivistas.
As teorias não-críticas são assim denominadas por compreenderem a escola como uma instituição desligada da sociedade e que goza de certa autonomia frente aos problemas sociais. Desse modo, as tendências pedagógicas desse grupo carregariam o potencial de superar a marginalidade promovendo a equalização social, seja pelo esclarecimento dos sujeitos (Pedagogia Tradicional), pela sua inclusão (Pedagogia da Escola Nova) ou pelo seu preparo para a produtividade e eficiência (Pedagogia Tecnicista).
As teorias críticas-produtivistas entendem a escola como instrumento à serviço do Estado para uma imposição ideológica que se dá por meio de uma violência simbólica marcada pela incorporação de um capital cultural determinado pela classe dominante sobre a classe dominada. Nesta perspectiva, além de ser um lugar de reprodução da opressão social, a escola seria um espaço destinado a impedir o desenvolvimento de uma ideologia própria da classe proletária3.
Assim, no grupo das teorias críticas-produtivistas, Saviani (1990) coloca as tendências pedagógicas que entendem a escola como uma instituição estritamente ligada à sociedade, a ponto de reproduzir e reforçar em seu interior as mesmas desigualdades presentes no âmbito social, colaborando mais para a manutenção da marginalidade do que para sua superação. Compõem este grupo a teoria da escola como aparelho ideológico do Estado, a teoria do sistema de ensino enquanto violência simbólica e a teoria da escola dualista.
Alicerçado em Baudelot e Establet (1971), Saviani (1999) localiza a teoria da escola dualista dentro do grupo das teorias críticas-reprodutivistas. Isso por que esta teoria compreende que “a escola, em que pese a aparência unitária e unificadora, é uma escola dividia em duas grandes redes, as quais correspondem à divisão da sociedade capitalista em duas classes fundamentais: a burguesia e o proletariado” (SAVIANI, 1999, p. 35).
Para os autores, existem apenas duas redes de escolarização: uma rede secundária-superior (SS) e uma rede primária-profissional (PP), que se constituem a partir das relações que as definem como um aparelho escolar capitalista de reprodução e manutenção da ideologia dominante.
É a divisão da sociedade em classes antagonistas que explica em última instancia não somente a existência das duas redes, mas ainda (o que as define como tais) os mecanismos de seu funcionamento, suas causas e seus efeitos” (BAUDELOT; ESTABLET, 1971, p. 42 apud SAVIANI, 1999, p. 36).
A dualidade escolar denunciada pela teoria ora exposta não se resume apenas a uma etapa do processo escolar, mas atravessa toda a educação formal (SAVIANI, 1999), isto é, compreende a educação primária e estende-se pelos demais níveis e modalidades de educação, inclusive nos níveis superiores de ensino, como procuraremos demonstrar a seguir.
A teoria da escola dualista funde-se com a tese da escola como aparelho ideológico de Estado (AIE), preconizada por Althusser, quando Saviani (1999) nos apresenta quais seriam as funções da escola naquela concepção teórica. Na teoria da escola dualista, a escola tem a função de contribuir para a formação da força de trabalho, na medida em que, com os avanços tecnológicos e científicos, tem se exigido uma qualificação cada vez mais refinada e específica; e inculcar a ideologia burguesa. Essas funções estariam interligadas, pois, é no processo de inculcação da ideologia burguesa que ocorre a formação do trabalhador, onde “o aspecto ideológico é dominante e comanda o funcionamento do aparelho escolar em seu conjunto” (SAVIANI, 1999, p. 35).
Nesse sentido, o papel da escola, a partir da teoria da escola dualista, vai para além de legitimar e reforçar a ideologia burguesa: ela deve impedir o desenvolvimento da ideologia proletária e sua luta revolucionária, forjadas na prática cotidiana de resistência por meio de suas organizações e movimentos sociais. É, pois, a essa ideologia que a escola dualista deve se opor. Para tanto, usa de uma organização separada da produção.
A escola burguesa não anuncia formar para o trabalho intelectual e para o trabalho manual. Ao fazer isso ela mesma estaria revelando seu caráter dualista e excludente. “Cabe, isto sim, dizer que ela qualifica o trabalho intelectual e desqualifica o trabalho manual, sujeitando o proletariado à ideologia burguesa sob um disfarce pequeno-burguês” (SAVIANI, 1999, p. 38). Desse modo, a escola é fator de marginalização relativamente à cultura burguesa assim como em relação à cultura proletária, isto é, afasta os sujeitos da cultura e da ideologia de sua classe oferecendo-lhes, a partir de uma rede de escolarização primária-profissional, o mínimo de uma cultura burguesa e seus subprodutos para que acredite na ideologia dominante, abandonando o processo de luta revolucionária.
Assim, a teoria da escola dualista compreende a escola como instrumento de dominação do Estado burguês para inculcação da ideologia burguesa e formação do trabalhador que em nada colabora para o processo de equalização social e que ainda coloca os sujeitos à margem da sociedade burguesa e alheios ao movimento revolucionário de sua própria classe.
No Brasil, a perspectiva de uma educação dualista salta do campo da teoria e materializa-se no cenário educacional ainda na primeira década do século XX, quando da criação das Escolas de Aprendizes e Artífices. Destinada a “pobres e humildes” e fruto de uma proposta de reorganização da Educação Profissional no Brasil, estas escolas tinham o objetivo de preparar operários para o exercício profissional com vistas a atender as necessidades da histórica economia agrícola e do iminente processo de industrialização nacional (RAMOS, 2014, p. 25).
Desde então, o dualismo do sistema educacional brasileiro tem se organizado de diferentes modos a cada nova reforma demandada pela política desenvolvimentista. Para Ramos (2014), a abertura para entrada e controle do capital estrangeiro no crescimento da indústria nacional exigiu uma maior qualificação da mão de obra interna, expandindo o chamado “ensino técnico industrial”.
Regulamentado pela Lei nº 3.552/1959, o ensino técnico industrial objetivava, nos termos do seu Art. 1º:
a) proporcionar base de cultura geral e iniciação técnica que permitam ao educando integrar-se na comunidade e participar do trabalho produtivo ou prosseguir seus estudos; b) preparar o jovem para o exercício de atividade especializada, de nível médio (BRASIL, 1959).
No mesmo ano, o Decreto nº 47.038/1959 regulamentou a criação das primeiras Escolas Técnicas Federais, distribuídas estrategicamente pelo território nacional, constituindo assim uma rede federal de ensino técnico, criada para capacitar a mão de obra necessária para manutenção do projeto de desenvolvimento socioeconômico controlado pelo capital estrangeiro.
Nessa conjuntura, o sistema educacional brasileiro passou a contar com um ensino primário e duas redes de escolarização de nível secundário: um enciclopédico e preparatório para o ensino superior (ensino propedêutico), destinado às elites burguesas nacionais; e outro profissional (ensino técnico), direcionado às camadas populares que abasteceriam a linha da frente produtiva com mão-de-obra qualificada.
Tais sistemas eram, portanto, autônomos e restritos em termos da configuração produtiva e ocupacional, ofertados em instituições específicas para esses fins (RAMOS, 2014, p. 25-26), e configuraram o que mais tarde Saviani (1999), baseado em Baudelot e Establet (1971), tratou de classificar como uma rede de escolarização secundária-superior (SS) e primária- produtivista (PP).
O dualismo educacional explícito da década de 1950 buscou ser superado a partir da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) nº 4.024, de 1961, que proferiu uma maior homogeneidade escolar e um caráter universal do ensino técnico a partir da equivalência entre o ensino secundário e o profissional. Todavia, tal equivalência entre o ensino propedêutico e o técnico só permitiram, na prática, que os técnicos que concluíssem seus cursos pudessem se candidatar a qualquer curso de nível superior (RAMOS, 2014, p. 26).
Nessa perspectiva, a LDB nº 4.024 de 1961 promoveu ainda a flexibilização legal para que instituições isoladas e privadas pudessem planejar a estruturação de cursos ou faculdades em caráter experimental com currículos, métodos e períodos escolares próprios para um ensino técnico de nível superior, isto é, um Ensino Tecnológico.
Configura-se nesse cenário a expansão do dualismo educacional dos níveis básicos para os níveis superiores de ensino numa primeira tentativa governamental de articular as diferentes etapas da educação com a oferta de cursos de nível superior em tecnologia, alinhados à política educacional econômico-tecnicista, da qual trataremos melhor nos escritos a seguir.
Dualismo educacional e a formação de tecnólogos
No contexto da divisão social do trabalho e das classes sociais ocorre um “obscurecimento da natureza das funções produtivas”, que acaba por reduzir a capacidade de compreensão por parte das classes dominadas dos complexos processos da atividade manual, reduzindo-as à mera execução. Tal reducionismo amplia-se por diferentes dimensões da sociedade e transcendem os aspectos de produção de bens e serviços, influenciando, sobretudo “os processos educativos e os lugares sociais que se relacionam as técnicas, às tecnologias e à educação tecnológica” (CIAVATTA, 2013, p. 275).
Para além da desvalorização das atividades manuais, historicamente relegadas às classes populares, ocorre uma necessidade crescente da mercantilização competitiva no campo da produção e da circulação de mercadorias, tornando urgentes processos de:
inovação tecnológica, nova organização do trabalho, redução de custos [...], a desregulamentação das relações de trabalho e a aceleração dos processos formativos por meio de cursos breves, funcionais ao mercado – a exemplo dos mestrados profissionais e dos cursos superiores de tecnologia (CIAVATTA, 2013, p. 275).
Frente ao imediatismo e determinismo econômico, o cenário educacional brasileiro, a partir da LDB nº 4.024 de 1961, deu continuidade à divisão entre um ensino propedêutico e um profissionalizante, já presente no ensino secundário, nos níveis superiores da educação, a partir da flexibilização legal para criação de cursos intermediários entre o técnico e o superior, denominados mais tarde como Cursos Superiores de Tecnologia (CST).
Partindo de um referencial teórico marxista, baseado no entendimento de que vivemos numa sociedade capitalista, alicerçada por relações sociais de produção entre classes sociais com interesses conflitantes, fundamentados pela posse ou não dos meios de produção, Brandão (2013, p.308) descreve os CST como “um tipo específico de curso superior para aqueles membros da classe trabalhadora que lograrem obter uma educação superior”, caracterizados pela baixa densidade teórica e elevada preocupação com os ensinamentos práticos, pragmaticamente voltados para o preenchimento de postos de trabalho específicos no mercado.
Os CST tiveram sua trajetória histórico-normativa iniciada especificamente no ano de 1962, com a criação dos cursos de Engenharia de Operação em diferentes instituições isoladas, na perspectiva de oferecer uma educação superior de nível tecnológico. Fruto de estudos encomendados pela Organização dos Estados Americanos (OEA) e realizadas pelo Ministério da Educação e Cultura (MEC) e pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), tais cursos eram justificados pela exigência da indústria por profissionais mais especializados numa “faixa menor de atividades, capaz de encaminhar soluções para os problemas práticos do dia a dia da produção, assumindo cargos de chefia e orientando na manutenção e na superintendência de operações” (BRANDÃO, 2013, p. 309).
Nesse sentido, Brandão (2013) traz à tona o dualismo histórico existente na sociedade brasileira, presente no cenário educacional com a proposta de um ensino superior dividido com fins para uma formação profissional prática e outro de formação profissional científica. Para a autora,
[...] o objetivo dessa nova política de educação no nível superior [...] era formar profissionais que não precisavam pensar, nem crítica nem cientificamente, deveriam apenas reproduzir, operar e manter a tecnologia e os processos industriais que o Brasil importava de outros países, inclusive dos Estados Unidos da América do Norte (BRANDÃO, 2013, p. 317).
A década de 1990 marca um período de grandes transformações estruturais no Brasil, ocorridas devido às reformas impulsionadas pelo avanço dos ideais neoliberais frente à profunda crise do capitalismo financeiro deflagrada ainda nos anos de 1970 pelo fim do modelo de “Estado de Bem-Estar Social” (MÉSZÁROS, 2003 apud SANTOS, 2009, p. 75). A emergência de ideias neoliberais nesse período dominou o campo da economia, os governos e a educação.
Para os neoliberais, o governo não deveria se preocupar com as questões econômicas, deixando estas para o livre mercado. Em resposta, enquanto delegavam ao dito mercado qualquer papel na economia, os governos dedicavam seus esforços a reformar o sistema escolar ou aprimorar o “capitalismo humano” (YOUNG, 2007, p. 1290).
Nessa conjuntura, a educação sistematizada é convocada a também fazer parte desse projeto de reestruturação, uma vez que, isolada na lógica da sociedade capitalista e impossibilitada de sozinha superar a sociedade de classes, a escola não tem capacidade de se desvencilhar do papel de formadora de consciências individuais para atendimento às necessidades do mundo regido pelo capital (SANTOS; XEREZ, 2016, p. 601):
No quadro de reivindicação de certo tipo particular de instrução, ou seja, quando a escola é chamada a se organizar para atender a uma instrução útil, mercantil, racional, instrumental, no panorama de nascimento do capitalismo, a educação toma definitivamente o rumo de alinhar-se às necessidades burguesas (SANTOS, 2009, p. 32).
Nesse cenário, a escola é inserida no debate das relações entre capital e trabalho a partir das reformas educacionais preconizadas pelos organismos internacionais. Essas reformas, por sua vez, teriam a missão de
[...] ressignificar a educação, seus propósitos, métodos e formas de organização – ou gestão – dos sistemas de ensino, com a finalidade dupla de ajustar o bem educacional às regras e exigências do mercado e, ao mesmo tempo, formar individualidades sintonizadas com as necessidades do processo de acumulação do capital no contexto de sua crise (SANTOS; JIMÉNEZ, 2009, p. 172).
Evocou-se então a urgência de um novo modelo educacional que priorizasse a formação profissional de um novo perfil de trabalhador, garantindo-lhe o pleno desenvolvimento de competências e habilidades que lhe colocassem no igualmente novo e tecnológico mercado de trabalho. Alinhadas a esse discurso, as políticas governamentais enfatizaram ainda que a ampliação da graduação tecnológica no Brasil serviria ao ideal de “expansão do ensino superior para a classe trabalhadora” (SANTOS; JIMÉNES, 2009, p. 173).
Assim, alicerçada na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº 9.394, de 1996 (LDB), a oferta da Educação Profissional e Tecnológica deve “no cumprimento dos objetivos da educação nacional, integrar-se aos diferentes níveis e modalidades de educação e às dimensões do trabalho, da ciência e da tecnologia” (BRASIL, 1996). Desse modo, ocorre a consolidação da oferta dos CST como cursos superiores de graduação tecnológica e que levariam seus egressos, de acordo com o Art. 4º com a Resolução CNE/CP nº 3 de 18 de dezembro de 2002, ao diploma de tecnólogo.
Para Santos e Jiménez (2009), a oferta de cursos de graduação tecnológica reproduz o estrutural dualismo educacional, pois seu caráter imediatista e pragmático é característico do modelo de educação dedicada às camadas populares para formação da força de trabalho, enquanto para os filhos das elites reserva-se um ensino próprio para os futuros chefes e dirigentes.
Nessa perspectiva, Ciavatta (2013) esclarece que o uso do termo “dualismo educacional” é recorrente nos estudos na área da educação. Em sua maioria, os autores partem da evidência de uma diferença na qualidade do ensino ofertado para as diferentes classes sociais, com cursos mais breves, de menor custo para as camadas populares e uma educação com bases mais sólidas para os filhos das elites.
Não obstante, a autora busca na análise das raízes do conceito de “dualismo educacional” o entendimento das relações que estabelecem esse fenômeno. Embora a identificação de tal dualidade seja importante, convém ainda investigarmos a fundo “as raízes sociais da questão estrutural das classes sociais que lhe dá sustentação e sua ideologização como educação desejável” (CIAVATTA, 2013, p. 289), tal como apresentado pela teoria da escola dualista.
O processo de ideologização, no caso dos Cursos Superiores de Tecnologia, ocorre tanto pela constante demanda do empresariado por mão de obra especializada, quanto pela demanda dos jovens desempregados por acesso ao ensino superior através de cursos breves que lhes proporcionem alguma participação econômica. Aliados a tais interesses, os governos respondem a essas classes expandindo e legitimando a oferta de cursos superiores funcionais ao mercado de trabalho, apresentando-os como uma “verdade política e educacional através de um processo facilmente assimilável pela população, a ideologização desse curso como os melhores, os mais convenientes no presente” (CIAVATTA, 2013, p. 290).
Na busca por atender às demandas dos desfavorecidos e das elites, ocorre o “ofuscamento da ligação dinâmica entre, de um lado, a estrutura dada da realidade social e, de outro, sua constituição histórica original e transformações correntes” (MÉSZÁROS, 2009, p. 105 apud CIAVATTA, 2013, p. 290). Há, portanto, uma análise superficial da totalidade social a partir de um recorte dado sobre o sistema produtivo que passa a assumir o lugar do todo, como sendo por si só constitutivo de toda a existência humana. O que se pretende destacar é a unicidade do olhar dado sobre as questões produtivas em detrimento a outras dimensões da sociedade humana, também participantes na construção social.
Em se tratando dos cursos de formação de tecnólogos, Ciavatta (2013, p. 298) considera que “as necessidades prementes e urgentes do sistema produtivo não podem justificar o aligeiramento da formação humana a que todos os jovens têm direito na sua forma mais plena”. Para a autora, não se está excluindo a Educação Profissional e Tecnológica como possibilidade educativa, mas, para que esta seja de fato especializada, deve fugir da superficialidade funcional ditada pelo capital e mergulhar mais profundamente em conhecimentos mais sólidos e humanos, pois, “fora disso, a educação tecnológica é mais um engodo aos necessitados” (CIAVATTA, 2013, p. 296).
Em síntese, Ciavatta (2013) propõe que de fato seja tomado com alicerce o “mundo do trabalho”, e não apenas seu mercado. Nesse sentido ela questiona:
Além dos conhecimentos funcionais à produção, estarão os estudantes dos cursos superiores de tecnologia compreendendo também o funcionamento do mercado de trabalho e as razões lucrativas da instabilidade funcional e dos vínculos precários, das causas da riqueza e da pobreza, das desigualdades no acesso à cultura, à saúde, à educação, a uma vida mais digna para todos? (CIAVATTA, 2013, p. 300)
Considerações Finais
A partir de um paradigma materialista histórico-dialético sobre o fenômeno da formação de tecnólogos, compreendemos que a concepção de uma escola dualista não se trata de um acaso dado pelas circunstâncias sociais, mas compõe o processo de construção de uma sociedade hegemônica burguesa que tem raízes profundas na desvalorização preconceituosa do trabalho manual desde os tempos coloniais e que se arrasta por séculos e se renova a cada salto em nome do desenvolvimento econômico nacional.
Historicamente enraizada na sociedade brasileira, o caráter dualista da educação nacional compreende educações diferentes e distintas para cada classe social. Aos mais privilegiados, reserva-se uma educação dedicada aos saberes gerais, propedêuticos e acadêmicos, com vistas a uma formação que garanta a perpetuação de sua hegemonia e a ocupação dos lugares de comando e chefia nas linhas de produção de bens e serviços e no cenário político-social.
Às camadas populares, oferta-se um ensino cada vez mais segmentado, intermediário, barato, breve e especializado, com vistas ao mercado e suas relações de compra e venda da força de trabalho, com a promessa de alguma mobilidade social e acesso ao mínimo das riquezas tecnológicas e científicas produzidas no capitalismo globalizado.
Na relação trabalho e escola, o mercado de trabalho passa a ser o tempo e o espaço onde a teoria da escola dualista se materializa por meio de processos educativos do ensino básico ao superior que visam à formação da força de trabalho cada vez mais especializada a partir do discurso ideológico neoliberal de garantia de acesso aos melhores postos de trabalho e consequentemente a uma melhor renda e ascensão social. Tudo isso a serviço de um pseudodesenvolvimento econômico nacional alicerçado, sobretudo, na teoria do capital humano em seu caráter circular (FRIGOTTO, 1989).
Para além da teoria da escola dualística que salta da Educação Básica para o Ensino Superior, compreendemos que este trabalho não esgotou a complexidade da questão do dualismo educacional frente à profundidade de suas relações na complexa história do pensamento educacional brasileiro. Detivemo-nos em apresentar os nexos entre aquela teoria e a oferta de formação de um tipo específico de trabalhador em nível superior: os tecnólogos.
Todavia, o entendimento mais apurado do caráter dualista da formação dos tecnólogos só será possível com um estudo mais aprofundado da realidade dada pela expansão e popularização dos Cursos Superiores de Tecnologia, a partir de investigações empíricas que problematizem a estruturação de tais cursos, a formação de seus docentes, suas finalidades, o perfil de seus estudantes e egressos, seus currículos, dentre outros aspectos.
Enquanto teoria, o dualismo educacional não poderia desviar-se de críticas às suas concepções e visões de mundo. No caso da teoria da escola dualista de Bandelot e Establet, apresentada por Saviani, o problema encontra-se no fato da escola ser reduzida a um mero instrumento de dominação burguês, sem enxergá-la como palco ou alvo da luta social pela superação da marginalização social. Logo, a escola parece ser uma propriedade exclusiva do Estado burguês, incapaz de ser tomada pelo proletariado como um instrumento de luta pelos seus próprios interesses, isto é, “não se cogita de utilizar a escola como meio de elaborar e difundir a referida ideologia” (SAVIANI, 1999, p. 39).
Desta crítica emergem possibilidades de superação do caráter dualístico da educação, sobretudo advindas do pensamento de autores como Antônio Gramsci, Marx e Engels, numa perspectiva de uma escola unitária e de formação humanista integral, ominilateral e politécnica (MOURA, 2013).
Por fim, este trabalho pode concluir que a superação da escola dualista em seus diferentes níveis de ensino compreende um movimento de luta constante de ocupação dos espaços dentro da estrutura social (GRAMSCI, 1982), política e cultural, com o objetivo de superar a visão da educação como um instrumento de dominação próprio do capital. A escolarização deve ser uma arena contestada pelas camadas populares para a transformação social com vistas à superação da dominação hegemônica do capitalismo globalizado e da inculcação de sua ideologia fabril e mercadológica dentro da educação.
Resumo
Main Text
Introdução
A teoria da escola dualista
Dualismo educacional e a formação de tecnólogos
Considerações Finais