in Revista Ibero-Americana de Estudos em Educação
TECNOLOGIA ASSISTIVA E INCLUSÃO ESCOLAR: MEDIAÇÃO E AUTONOMIA EM QUESTÃO
Resumo
Este artigo tem como objetivo contribuir para a inclusão de alunos com deficiência, com base na análise e discussão de dois casos em que a mediação no uso de Tecnologia Assistiva (TA) potencializou a aprendizagem e a constituição da autonomia. São utilizados diários de campo construídos ao longo de reuniões na escola e registros escolares como fontes de dados. Os diários permitem acessar narrativas orais que emergem espontaneamente no cotidiano escolar. O primeiro caso retrata a dificuldade de um menino com deficiência física, no uso de sua cadeira de rodas. O segundo caso refere-se à interação comunicativa de um menino com Transtorno do Espectro Autista. O modo como a criança se apropria da TA significa suas vivências cotidianas e constitui sua relação com os objetos e com os outros, possibilita que movimentos em direção à autonomia sejam construídos. O processo, porém, depende da mediação na interação com elementos culturalmente criados e com sujeitos sociais.
Main Text
Introdução
Uma criança com deficiência enfrenta desafios cotidianos muito grandes no que concerne ao seu desenvolvimento cognitivo e emocional. O modo como a criança fará frente a estes desafios depende das relações que estabelece consigo mesma, com a família e com a escola.
O cenário brasileiro, apesar dos avanços, não tem sido muito favorável para a maioria das crianças com deficiência. A política de Educação Especial no Brasil se organiza, a partir do século XXI, priorizando a escolarização em classe comum. Aos alunos com deficiência deve ser ofertado o atendimento educacional especializado (AEE) em salas de recurso multifuncional ou em centros de atendimento educacional especializado. No entanto, estudos recentes apontam graves problemas: estima-se que mais da metade das crianças e jovens público-alvo da educação especial (que seriam cerca de dois milhões) ainda se encontram fora da escola; cerca de 60% dos que têm acesso à escola regular não estariam tendo acesso ao AEE, apesar da legislação; cerca de ¼ dos estudantes público-alvo da educação especial estariam matriculados em classes e escolas especiais, sem garantia de estarem sendo escolarizados; as condições precárias da formação e das condições de trabalho no AEE não estariam conseguindo responder às necessidades diferenciadas de tantas crianças com deficiência (MENDES, 2019).
Tomar consciência desta realidade precária é importante para ampliar o olhar e compreender o contexto destes alunos e suas famílias, bem como as dificuldades enfrentadas pelos professores. Igualmente importante é que, dentro deste cenário, seja possível reconhecer avanços, mesmo que pontuais, para que se possa construir perspectivas renovadas. A partir dessas considerações, o presente artigo tem como objetivo contribuir para a inclusão de alunos com deficiência, com base na análise e discussão de dois casos em que a mediação no uso da TA potencializou a aprendizagem e a constituição da autonomia.
Mediação e a autonomia são os conceitos-chave utilizados para problematizar o uso das TA, situados a partir de algumas concepções, quais sejam: i) o modelo social de deficiência, que problematiza a concepção de incapacidade e doença; ii) a concepção de aprendizagem, a partir da interação e ação do sujeito aprendiz; iii) a compreensão da acessibilidade como um fato físico, cognitivo, afetivo, sensorial e cultural, que irá impedir ou permitir ao sujeito seu encontro com a experiência.
O modelo social da deficiência, diferentemente das explicações que atribuíam a deficiência à punição divina ou que enfatizavam o déficit biológico (modelo médico), tem como foco de atenção às barreiras que as pessoas com deficiência encontram na sociedade. Situa a deficiência como uma diferença e não como uma anormalidade e enfatiza a opressão e exclusão às quais as pessoas com deficiência são submetidas, oferecendo instrumentos teóricos e políticos que permitem não reduzir a deficiência à esfera privada e aos cuidados familiares (BISOL; PEGORINI; VALENTINI, 2017; SANTOS, 2008). O modelo social, portanto, coloca a questão de como mudar a organização da sociedade para que a realidade da diferença humana possa ser aceita (DINIZ; BARNES, 2013).
A teoria histórico-cultural atribui ao sujeito o protagonismo de sua vida em articulação com o processo social, cultural e histórico. Nesse sentido, Vygotsky destaca que as funções psicológicas superiores são de natureza cultural, ou seja, constituem-se como resultado de uma transformação qualitativa durante o processo de internalização. Nas interações as trocas sociais (interpsicológicas) são significadas pelo sujeito a nível intrapsicológico, sendo esse processo fundamental para provocar a aprendizagem, ou seja, o sujeito cria a si mesmo nas interações sociais (VYGOTSKY, 2004).
Por fim, é importante situar a acessibilidade de modo a incluir e, ao mesmo tempo, ir além da questão da remoção de barreiras e utilização de instrumentos e objetos. Para Mainardi (2017), a acessibilidade é um fato físico, mas também é um fato cognitivo, afetivo, sensorial e cultural que irá impedir ou permitir o encontro do sujeito com a experiência. Para o autor, a acessibilidade “[...] torna a pessoa mais livre para acessar uma situação, mais disposta a viver uma nova experiência em uma situação, a compartilhar sua própria maneira de apreender uma realidade, de propor aos outros de forma livre e responsável [...]” (MAINARDI, 2017, p. 79).
A seguir apresenta-se a análise e a discussão dos dois casos, buscando enfatizar as interações (especialmente no contexto escolar) que favoreceram os movimentos em direção à constituição da autonomia. Trata-se de duas situações em que o uso de TA se faz imprescindível para a inclusão desses dois alunos na educação básica.
Processo metodológico
Essa é uma pesquisa de natureza qualitativa, tendo como base o ambiente natural, com o foco no processo, a partir do acompanhamento dos casos (BOGDAN; BIKEN, 2003). Como fonte de dados, utilizou-se diários de campo, construídos ao longo de observações em uma reunião entre escola e família, de cada caso apresentado, e três reuniões de professores (conselhos de classe) em que a discussão em torno destes alunos se fez presente. As escolas pertencem à rede municipal de ensino de uma cidade no interior do Rio Grande do Sul. Informações adicionais, tais como idade ou quadro clínico, foram confirmadas, posteriormente, nos registros escolares. Para análise, considerou-se os diários de campo como registros de narrativas orais, abertas, que emergem, espontaneamente, por parte dos envolvidos, em situação cotidiana no ambiente escolar. Segundo Rushton (2001), relatos narrativos de experiências têm se tornado uma forma viável para a pesquisa em educação, uma vez que fornecem elementos para compreender os desafios, alegrias, percepções de professores e de crianças sobre o cotidiano escolar. As narrativas, por este viés, constituem o contexto para construção de sentido para vivências escolares. Permitem, também, capturar a riqueza, indeterminação e complexidade que marcam o contexto escolar.
Caso 1: Marcos e o Relâmpago McQueen
O primeiro caso a ser apresentado e discutido é o de Marcos (nome fictício). Pretende-se ilustrar o modo como a mediação estabelecida pela professora pode ser fundamental para criar as condições necessárias para que uma criança com deficiência possa se beneficiar do espaço escolar, das relações com os colegas e dos recursos de TA.
Marcos é uma criança inteligente, sensível e bem-humorada. Desde os dois anos de idade, Marcos enfrenta uma doença degenerativa que o deixa sem forças para caminhar, manusear objetos, segurar a cabeça, além de ocasionar complicações respiratórias.
Aos 6 anos de idade, Marcos se deparou com o desafio do ingresso no 1º ano do Ensino Fundamental. Os pais de Marcos receavam possíveis dificuldades de adaptação escolar. Entre suas preocupações estava a acessibilidade do prédio escolar, a aceitação dos colegas e a adaptação de uma monitora para assessorar Marcos nas atividades escolares, higiene e qualquer complicação no seu estado de saúde em período escolar.
No entanto, uma dificuldade que os surpreendeu foi a resistência de Marcos em relação a sua cadeira de rodas motorizada, depois do primeiro dia de aula. A surpresa foi grande porque o menino já estava bem adaptado ao uso da cadeira na Escola Infantil e em outros espaços familiares e sociais nos quais circulava. Com veemência, Marcos passou a insistir para ser levado no colo até a sala e se sentar em classes semelhantes aos colegas. Recusava aquele recurso que, meses antes, utilizava com desenvoltura nos ambientes familiares.
O uso de TAs visa compensar limitações impostas pela deficiência, de modo a aumentar as possibilidades de participação. No caso da cadeira de rodas motorizada, permite à criança mobilidade, de outro modo, só possível no colo de um adulto. Com sua cadeira Marcos poderia se aproximar de algum grupo de colegas, se mover pela sala de aula, ir até o pátio da escola e, como ele já fazia na Escola Infantil, participar de algumas brincadeiras adaptadas com as demais crianças.
Porém, Marcos ingressa em um grupo novo: a escola é nova, os colegas não o conhecem, ele não conhece ninguém. A questão da autonomia passa para um segundo plano. Lembrando que a percepção da criança difere da percepção do adulto, podemos levantar a hipótese de que tentar ser aceito pelo grupo, tornando-se o mais “igual” possível, ganhou relevância para Marcos, mais do que os benefícios concretos do uso da cadeira de rodas para sua mobilidade. Em sua perspectiva, a cadeira de rodas trazia mais vergonha do que ser carregado até sua classe. Preferia ficar desconfortável, mais dependente dos pais, do monitor e da professora do que usar um objeto que chamava tanto a atenção dos outros.
Tecnicamente, as TAs são desenvolvidas para reduzir o impacto das barreiras ambientais sobre a participação do sujeito em situações sociais valorizadas, permitindo à pessoa com deficiência acessar, operar, mover-se e agir em seu meio físico e social (PAPE; KIM; WEINER, 2002). Porém, como pode ser observado no caso de Marcos, os significados atribuídos às TAs têm um impacto importante no uso que a pessoa com deficiência conseguirá ou não fazer nas situações concretas da sua vida. É importante lembrar que, aos 6 anos, a criança já tem uma percepção clara do seu corpo e do corpo do outro. O grupo social adquire maior relevância, além do grupo familiar. A criança busca referenciais em seus pares e espera reconhecimento. A criança é suscetível às comparações que os outros fazem e que ela mesma faz, o que torna o lugar de diferença mais difícil de ser sustentado.
As TAs são socialmente associadas ao desvio, à anormalidade. A atenção indesejada que atraem pode ameaçar o senso de pertencimento ao grupo, algo extremamente delicado na infância e na adolescência. Desta forma, acabam por se constituir como uma marca ou um sinal adicional de desvio. Assim, embora tragam maior independência nas atividades escolares, podem ser rejeitadas por ameaçar ou complicar as relações com os colegas (HEMMINGSSON; LIDSTRÖM; NYGÅRD, 2009).
Marcos, felizmente, pode contar com uma professora criativa e atenciosa, que logo percebeu a complexidade da situação: por um lado, a importância do uso da cadeira de rodas para a mobilidade, certo grau de autonomia e conforto do menino; por outro, a forma como a cadeira acabou se tornando uma marca negativa da diferença, como um catalizador das dificuldades de Marcos de lidar com a sua deficiência diante dos colegas e das dificuldades dos colegas de lidar, por sua vez, com um menino da idade deles mas que apresentava uma vulnerabilidade física tão significativa.
Professores desempenham papel fundamental no desenvolvimento infantil, visto que, neste ambiente complexo que é a escola, são responsáveis por mediar a relação da criança com os outros. Em uma perspectiva histórico-cultural, trata-se de seu papel de mediação na interação com elementos culturalmente criados e com sujeitos sociais (SILVA; ALMEIDA; FERREIRA, 2011). Assim, pode-se considerar que as propostas, as atitudes e as ações do professor poderão ser decisivas para a manutenção das dificuldades ou para a abertura de novas possibilidades para uma criança ser e estar na escola.
A professora de Marcos desenvolveu uma série de atividades em torno de um desenho animado em voga na época: Carros (2006). Relâmpago McQueen é o personagem central que enfrenta muitos desafios e os vence com coragem e ajuda dos amigos. A professora explorou o enredo, os personagens, propôs textos, desenhos e jogos de interpretação de papéis. Depois, em um movimento inspirado e inspirador, ofertou a Marcos uma possibilidade de ressignificar sua cadeira de rodas: a professora o presenteou com adesivos do Relâmpago McQueen e perguntou se ele os queria em sua cadeira de rodas. Os pais entenderam a estratégia e apoiaram a proposta, auxiliando o filho a decorar sua cadeira com os adesivos.
Dois dias depois Marcos foi à aula com sua cadeira, que agora não se chama mais de “cadeira de rodas”. Marcos foi à aula de Relâmpago McQueen. A professora propôs que Marcos permitisse aos colegas experimentar dirigir Relâmpago McQueen. Os colegas rapidamente descobriram, para intensa satisfação de Marcos, que não é fácil, que precisava de prática, e perguntavam como Marcos aprendeu a dirigir tão bem.
A mediação da professora oportunizou uma ressignificação da cadeira de rodas. A mediação não é uma ação simples, um ato ou proposta qualquer. Trata-se de uma interposição capaz de provocar transformações. Há uma intencionalidade que promove desenvolvimento (MARTINS; RABATINI, 2011).
Os outros significados possíveis não apagam o lugar da diferença, das limitações impostas pela deficiência, porém permitem sair do lugar aprisionador da vergonha, da incapacidade, da inferioridade. Entra em cena a diferença, mas também a capacidade (de dirigir), a estética, o lúdico. Uma vez que na escola circulam diferentes sujeitos que trazem consigo suas marcas sociais de gênero, classe, etnia, história, singularidade, cultura etc., coexistem concepções de ser humano e de mundo. Assim sendo, na escola há uma vasta possibilidade para a construção de novas significações:
No caso de Marcos, a TA que permitia maior mobilidade para o menino era um recurso já utilizado antes da entrada no primeiro ano do Ensino Fundamental, em ambiente escolar e familiar. Porém, ao deparar-se com o novo grupo de colegas, em uma situação escolar desconhecida, os aspectos afetivos e emocionais ligados à aceitação e pertencimento fizeram com que Marcos recuasse no uso de sua cadeira de rodas. Portanto, não é o recurso, a TA por si só, que garante a autonomia de um sujeito. No caso de Marcos, foi necessário todo um movimento de ressignificação, mediado pela linguagem, pelo outro, pelo adulto em cena: a professora, em seu papel decisivo. Este movimento permitiu que Marcos pudesse voltar a se assumir como uma criança de seis anos que pode se beneficiar de uma cadeira de rodas motorizada, e que pode (com a ajuda dos adultos) sustentar o seu lugar de diferença para si mesmo e para os colegas.
Ao longo do ano escolar, Marcos enfrentou vários desafios significativos tanto no que se refere às interações sociais como no manejo de seu corpo com uma deficiência física severa. Suas limitações motoras exigiam outras adaptações e recursos para além da cadeira de rodas, e seu estado de saúde, vulnerável, acabava demandando períodos de afastamento da sala de aula. A questão, portanto, não se resume facilmente a uma cena – os desafios para a família, para a comunidade escolar e para o próprio estudante com deficiência são muitos.
O papel do professor é central, mas também neste aspecto é importante criar-se uma rede de apoio. No caso apresentado, as intervenções realizadas se situaram, principalmente, em sala de aula, em ações diretas da professora através dos recursos pedagógicos que ela foi capaz de mobilizar a favor de Marcos e de sua interação com os colegas, e foi possível uma parceria com os pais, que compreenderam e apoiaram a proposta.
Porém, em outras situações, há que se considerar também o apoio mais amplo da comunidade escolar, pois a vivência escolar não se reduz ao que acontece dentro de uma sala de aula. Os espaços e momentos coletivos mais amplos, nos quais o estudante com deficiência é chamado a interagir com alunos de outras faixas etárias e com os demais agentes educativos, também precisam ser alvo de atenção. Neste sentido, o professor de sala de aula, o estudante e sua família precisam contar com o apoio de toda a comunidade escolar para que se possa pensar no acesso, permanência e sucesso na trajetória escolar.
Caso 2: Lucas e a intenção comunicativa
O segundo caso a ser apresentado e discutido é o de Lucas (nome fictício). A interação comunicativa é uma das dificuldades das pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA). Elas podem apresentar alterações no uso, forma ou conteúdo da linguagem. No caso, a seguir, discute-se os processos de interação e autonomia que se estabelecem a partir de uma TA específica, ou seja, com o apoio de pranchas de comunicação. O uso de comunicação alternativa tem como prioridade os processos de compreensão e produção de sentidos, visando a criar oportunidades de interação com o outro e, portanto, diminuindo o isolamento e a exclusão social (PASSERINO; AVILA; BEZ, 2010; PASSERINO; BEZ, 2013). Conforme Barbosa e Fumes (2016), é fundamental que os professores de sala comum e do AEE conheçam as características do aluno com TEA para planejar intervenções e atividades que contribuam com o seu desenvolvimento e aprendizagem.
Lucas é um garoto de 4 anos, sensível e ativo. Recebeu diagnóstico de autismo aos 3 anos de idade e não se comunica oralmente. Apresenta movimentos estereotipados com frequência e raras vezes inicia uma interação comunicativa. Quando frequentou a educação infantil, com acompanhamento de diversos profissionais, a fonoaudióloga introduziu o uso da prancha para comunicação aumentativa e alternativa (CAA). Lucas se apropriou facilmente deste recurso, evidenciando interesse e compreensão. Algumas semanas depois de começar o uso da prancha de comunicação, a mãe relatou que, fazendo uso da mesma, Lucas iniciou uma interação informando para ela que estava com dor e indicou o local onde tinha dor. Essa situação nunca havia acontecido antes. A mãe ficou feliz e emocionada, percebendo como o filho estava explorando as possibilidades de comunicação e fazendo uso da CAA com significado.
É possível olhar para essa situação de modo aprofundado. O que se pode observar? Antes da apropriação desse recurso de TA, Lucas permanecia, com frequência, alheio ao que acontecia ao seu redor. Lucas se constituiu como agente intencional quando começou a manifestar algo de si. No primeiro momento foi sua dor, mas logo vieram seus desejos de comer, brincar, passear, dentre outras coisas, e a busca do apoio de outra pessoa para alcançar sua intenção. Para Tomasello (2003), compreender o outro como agente intencional é fundamental no processo de desenvolvimento e comunicação. Quando a criança percebe o outro como agente intencional, que pode estabelecer o laço de interação e comunicação, há um salto nas possibilidades comunicativas e interacionais. Observa-se a intencionalidade de comunicação quando Lucas consegue ter uma meta e agir para atendê-la. Ao informar à mãe sobre sua dor, evidencia sua compreensão sobre o outro e que esse outro pode apoiá-lo em suas metas. Um mundo de possibilidades vai se constituindo para Lucas a partir do momento em que se apropria da prancha de comunicação e enxerga os outros como interlocutores.
A compreensão da intencionalidade comunicativa se entrelaça a dois conceitos de Vygostky: mediação e internalização. A internalização na perspectiva histórico-cultural se refere à transformação do que estava no plano social (interpsicológico) para o plano individual (intrapsicológico), num movimento de apropriação ou construção interna (VYGOTSKY, 2004). No caso de Lucas, a mediação, pelo uso da prancha para CAA, possibilitou a internalização, e, por consequência, o levou à condição de comunicar sobre si para a mãe, na busca de uma ação que lhe desse conforto. Observa-se aqui uma interação triádica, ou seja, que se refere à coordenação de interação entre sujeitos e objetos. A criança percebe o outro como um agente intencional igual a ela, e as interações assim se tornam mais ricas. Nesse processo Lucas pode dispor de escolhas ativas entre os comportamentos disponíveis, escolhe o que quer prestar atenção, o que deseja e o que quer comunicar. Destarte, observa-se que a internalização é um processo que necessita de participação, interação em práticas sociais com produção de sentido, sendo que os Processos Psicológicos Superiores (PPS) estão se constituindo na interação e mediação com os instrumentos e signos.
A narrativa dos professores enfatiza também uma situação que Lucas vivenciou aos 7 anos de idade, já apropriado e fazendo uso da prancha de comunicação em diversas situações e interlocutores. No seu primeiro dia de aula, com uma nova turma e professora, acontece a seguinte situação: na atividade inicial a professora convida para que todos sentem em formato circular para uma atividade de apresentação. A professora inicia a atividade cantando uma música com acompanhamento do violão. Ao final de cada verso cantado, um aluno é convidado a dizer seu nome, seguindo a ordem em que estão sentados em círculo. Lucas observa o que está acontecendo e ao compreender a atividade sai do círculo e vai mexer em sua mochila. A professora observa um pouco apreensiva, mas segue interagindo com o grupo e observando Lucas. Em poucos minutos ele retorna à sua cadeira tendo em mãos a sua prancha de comunicação. Quando chega sua vez de falar seu nome mostra a prancha e aponta para as letras, formando seu nome. A professora, feliz e emocionada, percebe a riqueza desse momento, faz a intermediação fazendo a leitura do nome para os colegas e aproveita para falar das diferentes possibilidades de comunicação. Além disso, a professora pode perceber como poderia articular participações futuras do Lucas em outras atividades.
Em termos conceituais, identifica-se, na situação descrita acima, a intencionalidade comunicativa de Lucas, além da atenção compartilhada e da participação ativa na interação. A atenção compartilhada para uma criança com autismo é algo significativo, pois, segundo Bosa (2002), implica na coordenação de atenção entre os sujeitos, a fim de compartilhar experiência através de um evento ou um objeto. É considerada a fase mais avançada de intencionalidade.
Além da atenção compartilhada, identifica-se, nesse exemplo, a presença da participação ativa, que se configura quando a interação é voluntária, ou seja, Lucas não esperou ser demandado pela professora. Segundo Passerino (2005), a participação ativa não é algo tão simples, há movimentos anteriores, como a participação passiva, quando o sujeito participa, mas só observando. Um segundo nível, definido como participação reativa, acontece quando a criança participa somente quando a professora ou outro mediador chamar ou provocar a participação. Na situação apresentada Lucas já está autônomo, observando, criando soluções e participando ativamente.
Pode-se também pensar no processo de mediação, neste exemplo, no papel da professora, na importância de saber quando intervir, quando provocar, quando observar e dar espaço para perceber a intencionalidade do sujeito. É importante destacar que, segundo Vygotsky (2004), os PPS são o resultado da mediação, sendo essa um processo de intervenção de um elemento externo numa relação sujeito-objeto. Ainda cabe observar que a mediação atua na zona de desenvolvimento proximal (ZDP), ou seja, no que o sujeito está construindo, em vias de apropriação, mas que necessita da mediação, para seu processo de internalização.
A internalização coloca em ação a autorregulação, em que os movimentos evolutivos e transformações diminuem o poder das contingências do meio, dando mais força, crescendo o papel do sujeito na intencionalidade, na regulação da sua conduta, na sua interação e atividade cognitiva. A autorregulação se constitui a partir da troca, das interações, ou, dito de outro modo, só se conquista de dentro para fora, no seio das trocas, constituindo a possibilidade de autonomia para o sujeito. Autonomia não é individualismo ou separatividade, mas interdependência, uma conquista que se estabelece a partir da interação com o outro. Esse processo requer que o professor se torne o guia, o provocador, para que a criança inicie o seu movimento de tomada de consciência e de controle voluntário em direção à autonomia, que é essencial para o desenvolvimento cognitivo.
Considerações finais
O uso de TAs em ambiente escolar traz, inegavelmente, benefícios para a aprendizagem e o desenvolvimento. O que se buscou argumentar e ilustrar, a partir dos dois casos apresentados no presente trabalho, é que estes benefícios não surgem de forma automática ou a partir de determinações externas à pessoa com deficiência. O modo como a criança se apropria da TA significa e ressignifica suas vivências cotidianas e constitui sua relação com os objetos e com os outros (familiares, professores, colegas), o que será determinante para que a TA tenha sentido em sua vida concreta.
Entre as contribuições que a análise do primeiro caso oferece, destaca-se a importância da sensibilidade do professor como mediador na interação com elementos culturalmente criados e com sujeitos sociais. Marcos teve uma perda inicial de autonomia, em termos de mobilidade, ao não conseguir utilizar mais uma cadeira de rodas que já fazia parte de sua dinâmica de vida, quando se deparou com uma situação escolar nova que trouxe para ele dificuldades emocionais. É essencial, portanto, atentar para os significados atribuídos às TAs, pois terão impacto no uso que a pessoa com deficiência conseguirá ou não fazer dos recursos a ela disponibilizados. No caso apresentado, a mediação da professora desempenhou papel central para a ressiginifcação da cadeira de rodas, o que não apaga, obviamente, o lugar da diferença e das limitações colocadas pela deficiência, mas gera outros lugares possíveis para o sujeito em sua relação com os outros.
O segundo caso apresentado, por sua vez, auxilia a estabelecer pontos de atenção no uso das TAs em contexto escolar. A prancha para CAA utilizada por Lucas permite que a criança passe a ser vista pelos professores como um sujeito capaz de intencionalidade comunicativa, ao mesmo tempo em que permite à criança perceber o outro também como um agente intencional. A mediação, pelo uso da prancha, oportuniza a coordenação entre sujeitos e objetos, adquirindo um estatuto que está muito além de seu benefício operacional concreto. Torna-se elemento indispensável para a conquista de autonomia e autorregulação na interação com o outro, processo essencial, como já mencionado, para o desenvolvimento cognitivo.
Pesquisas futuras podem evidenciar a importância de investir em formação para uso de TA para além dos aspectos técnicos, ou seja, enfatizando a necessidade de articular diferentes saberes e áreas do conhecimento para beneficiar os sujeitos de aprendizagem.
Resumo
Main Text
Introdução
Processo metodológico
Caso 1: Marcos e o Relâmpago McQueen
Caso 2: Lucas e a intenção comunicativa
Considerações finais