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Thu, 04 May 2023 in Revista Ibero-Americana de Estudos em Educação
A TEORIA HISTÓRICO-CULTURAL E A EDUCAÇÃO DE PESSOAS COM DEFICIÊNCIA INTELECTUAL
RESUMO:
Esta discussão teórica objetiva apresentar conceitos basilares relacionados aos fundamentos da defectologia propostos pela teoria Histórico-Cultural. Está pautada no questionamento: Quais conceitos discutidos pela teoria Histórico-Cultural fundamentam a educação de pessoas com deficiência intelectual no contexto da escola inclusiva? Os dados empíricos foram produzidos a partir de pesquisa bibliográfica e o do uso da ferramenta Voyant tools. Os conceitos basilares foram analisados por meio da análise de conteúdo (BARDIN, 2011). Como resultados, discutimos os principais conceitos que fundamentam atualmente a educação inclusiva: aprendizagem e desenvolvimento de crianças com deficiência intelectual, interação social, compensação, desenvolvimento cultural, processos, funções e capacidades mentais. Indicamos ainda esses conceitos como aportes para pesquisas no âmbito da educação inclusiva e a relevância de recorrer a teoria Histórico-Cultural pela defesa da não segregação e isolamento educacional e social de pessoas com deficiência.
Main Text
Introdução
Este artigo engloba discussões de conceitos que consideramos basilares para práticas pedagógicas inclusivas voltadas a estudantes com deficiência intelectual. A justificativa que induziu esse estudo, no âmbito da educação inclusiva, foi a preocupação de ampliarmos entendimentos a respeito dos processos de aprendizagem de estudantes com deficiência intelectual, de modo a contribuir com a elaboração e estimulação dos processos mentais superiores desses indivíduos, amparando as ações pedagógicas na assimilação dos conceitos científicos por parte também desse alunado, que em muitos casos ainda tem se mantido à margem das possibilidades de formação do pensamento teórico.
Pessoas com deficiência intelectual, historicamente, foram segregadas do convívio e das interações sociais, inclusive nos espaços escolares. Uma das razões para isso era o entendimento de que tais indivíduos eram capazes de aprender apenas conceitos básicos e limitados. Assim, sua educabilidade era predominantemente baseada em categorias clínicas, a ter a área médica como influenciadora na educação especial, a tal modo que se instituiu um sistema de educação paralelo e substituível ao sistema de educação comum.
A educação voltada a alunos com deficiência começou a ser repensada a partir de três documentos principais, a Declaração Mundial de Educação para Todos (UNESCO, 1990), a Declaração de Salamanca (UNESCO, 1994) e a Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência (BRASIL, 2007). Esses documentos indicaram mudanças conceituais e históricas no âmbito da educação de pessoas com deficiência. No contexto brasileiro, diante do movimento que objetiva a educação especial na perspectiva da educação inclusiva, vivenciamos a elaboração de políticas públicas específicas. Entre os principais documentos, além dos já citados, destaca-se a Política Nacional da Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (BRASIL, 2008) e o Estatuto da Pessoa com Deficiência (BRASIL, 2015).
Diante dessas políticas públicas, ocorreu uma ressignificação no conceito de deficiência, historicamente baseado no corpo com defeito, na incompletude física e intelectual, na visão clínica e médica para um modelo social. A educação especial passou de segregacionista à inclusiva, de modo a contribuir com a inclusão de crianças com deficiência na escola comum. Os princípios que fundamentam atualmente a educação inclusiva, ou seja, o acesso, a permanência, a aprendizagem na escola comum, além de práticas pedagógicas adequadas a responder às necessidades também dos alunos com deficiência, são encontrados nos estudos relacionados à teoria Histórico-Cultural. Vygotski (2005), ao postular que todas as pessoas aprendem e que o conhecimento se elabora mediante as interações, possivelmente pensava em uma educação igual para todos, isto é, uma educação inclusiva. O autor defendia a não segregação escolar de alunos com deficiência e argumentava que a escola especial era movida por caridades, o que causaria morbidez e não superação da deficiência.
Com o objetivo de apresentar conceitos basilares relacionados aos fundamentos da defectologia propostos pela teoria Histórico-Cultural, buscamos responder a problematização: Quais conceitos discutidos pela teoria Histórico-Cultural fundamentam a educação de pessoas com deficiência intelectual no contexto da escola inclusiva?
Este estudo trata-se, portanto, de uma pesquisa bibliográfica, sustentada num corpus teórico, composto de dois textos de Vygotski (1997) publicados inicialmente em Obras Escolhidas, Volume V, “Fundamentos de Defectologia”: “A defectologia e o estudo do desenvolvimento e da educação da criança anormal” e “Acerca dos processos compensatórios no desenvolvimento da criança mentalmente atrasada”. Utilizam-se versões traduzidas desses textos que datam de 2011 e 2018, respectivamente, pelo fato de que são de domínio público, a terem como referência Vygotski (2011, 2018). Além desses dois textos, foi utilizado o texto “Aprendizagem e Desenvolvimento Intelectual na Idade Escolar” de Vygotski (2005) e o texto “Os Princípios do Desenvolvimento Mental e o Problema do Atraso Mental” escrito por Leontiev (2005), ambos publicados na obra “Psicologia e pedagogia: bases psicológicas da aprendizagem e do desenvolvimento”.
Os dados empíricos foram produzidos a partir das obras já citadas, e do uso da ferramenta Voyant tools, através da qual foi possível identificar os conceitos mais utilizados pelos teóricos em seus textos, organizá-los numa nuvem de palavras (Figura 01) e analisá-los pela análise de conteúdo (BARDIN, 2011). Alguns conceitos e defesas de Vigotski e Leontiev, presentes no corpus de análise, que contribuem e trazem implicações para a inclusão escolar de pessoas com deficiência intelectual, são postos em debate. Destacamos os principais conceitos discutidos pelos teóricos: aprendizagem e desenvolvimento de crianças com deficiência intelectual; interação social; compensação; desenvolvimento cultural; processos; funções e capacidades mentais. Para tanto, a ter sustentação no pensamento dialético, não seria coerente discutir os conceitos de forma isolada e sem articulação.
Considerações Metodológicas
Para indicarmos as principais contribuições da teoria Histórico-Cultural na educação de pessoas com deficiência intelectual, foi realizada uma pesquisa bibliográfica em escritos de Vygotski (2005, 2011, 2018) e Leontiev (2005) que tratam sobre essa deficiência. Utilizamos o método da análise de conteúdo (BARDIN, 2011) pois este pode ter seu foco direcionado pela frequência de palavras de determinado texto (ALVES et al., 2015). A análise de conteúdo foi planejada a partir de três etapas, que são explicitadas a seguir (ALVES et al., 2015):
1) Pré-análise: nesta fase, os textos foram selecionados e as questões e objetivos formulados.
2) Exploração dos materiais: Ocorreu a leitura integral dos textos para que pudéssemos identificar os conceitos discutidos pelos teóricos. Para auxílio na identificação dos conceitos, foi utilizada a ferramenta virtual e gratuita Voyant tools, a partir da qual foi possível submeter os materiais pré-selecionados (VYGOTSKI, 2005; VYGOTSKI, 2011, 2018; LEONTIEV, 2005) e identificar a frequência em que os conceitos eram indicados. A partir desse movimento criou-se uma tabela de frequência e uma nuvem de palavras (Figura 01) com os trinta conceitos mais frequentes.
3) Tratamento dos dados: Nesta fase, os dados foram inferidos e interpretados a luz da teoria Histórico-Cultural.
As implicações da teoria na escolarização de pessoas com deficiência intelectual são discutidas a seguir.
Implicações da Teoria na escolarização de pessoas com deficiência intelectual
As implicações e as contribuições da teoria Histórico-Cultural, na educação de estudantes com deficiência intelectual são os aspectos aqui discutidos. Vigotski (1896-1934) e Leontiev (1903-1979) foram dois importantes teóricos da Psicologia Histórico-Cultural e sustentaram seus trabalhos no pensamento dialético, a considerar o processo e o movimento da realidade através de suas contradições. Mesmo que seus pressupostos sobre a defectologia tenham sido elaborados no início do século XX, ainda são atuais e movimentam o pensamento inclusivo contemporâneo, no século XXI. A partir da análise das obras já citadas, apresentamos os conceitos basilares da teoria organizados numa nuvem de palavras (Figura 01) que ilustra os conceitos mais frequentes no corpus de análise.
Iniciamos com alguns princípios da aprendizagem (frequente 90 vezes) e do desenvolvimento (frequente 372 vezes) de crianças (frequente 497 vezes) com deficiência intelectual, uma vez que foram conceitos recorrentes nos textos analisados. Na ótica histórico-cultural, aprendizagem e desenvolvimento são dois processos inter-relacionados (VYGOTSKI, 2008). Ao propor a teoria sobre a zona de desenvolvimento potencial, Vygotski (2005) expõe relação fundamental entre o desenvolvimento e a aprendizagem potencial da criança, a indicar análise de dois níveis de desenvolvimento para, assim, ser possível compreender a sua capacidade potencial. O primeiro nível é denominado nível de desenvolvimento real ou efetivo, ou seja, é o nível do desenvolvimento que a criança já alcançou (VYGOTSKI, 2005). Para Vygotski (2005), a definição desse nível é feita a partir da consideração por testes psicológicos e clínicos responsáveis por avaliar e definir se uma criança possui deficiência intelectual. Tal abordagem de diagnóstico e medida de inteligência é criticada pelo teórico, pois interpretam sempre o desenvolvimento efetivo da criança e não consideram sua capacidade potencial de aprendizagem. Assim, o nível efetivo isolado não indica o desenvolvimento total da criança, uma vez que são necessárias considerar, também, as ações possíveis de se fazer com o auxílio de outros indivíduos.
Leontiev (2005) também discorda da utilização de testes psicológicos e clínicos para determinar o desenvolvimento de alunos com deficiência intelectual, principalmente pelo fato de não permitir a descoberta da natureza da deficiência intelectual. O teórico reflete sobre esses testes que, em muitos países, são responsáveis pela discriminação de crianças com deficiência intelectual, além de excluir da escola não apenas os alunos que possuem déficits orgânicos, como, também aqueles que ainda não superaram dificuldades elementares, e, a partir dessas concepções avaliativas, não terão oportunidade de superá-las (LEONTIEV, 2005)
O nível de desenvolvimento real, ao ser considerado por professores como desenvolvimento estático, não superável, empobrece e limita as atividades pedagógicas voltadas a estudantes com deficiência intelectual. Assim, pois, ao proporcionar apenas situações que os alunos são capazes de fazer de modo independente, não contribuem para o desenvolvimento dos processos mentais e nem para as suas capacidades potenciais.
Como consequência de sustentação apenas no desenvolvimento real, as práticas pedagógicas são estabelecidas na ideia de que o pensamento abstrato, nesses estudantes, é limitado. Retomando a nuvem de palavras (Figura 01), faz-se necessário indicarmos que o conceito pensamento teve frequência no corpus de análise 45 vezes. Vygotski (2018) indica que, ao adotar tal ideia redutora, as escolas, ao excluírem tudo a respeito do pensamento abstrato, a apostar o ensino somente aos meios visuais e táteis, no treinamento das funções elementares, não ajudam no desenvolvimento da criança e consolidam, por sua vez, a visão sobre a incapacidade e o déficit intelectual dos seus alunos com deficiência (VYGOTSKI, 2005).
Se fundamentarmos as ações pedagógicas nos pressupostos da teoria Histórico-Cultural, a educação especial só seria entendida a partir do pensamento inclusivo. Nesse aspecto, as práticas voltadas a alunos com deficiência intelectual considerariam a capacidade potencial dos estudantes, a ofertar mediações, ações, estratégias, interações de qualidade, que estimulem os processos mentais, a formação conceitual e o pensamento abstrato, com ênfase no desenvolvimento mental das funções psicológicas superiores e não apenas nas elementares.
Por sua vez, Leontiev (2005) apresenta o que considera os princípios do desenvolvimento mental e do atraso mental. O desenvolvimento mental do sujeito com deficiência intelectual é determinado por fatores internos e biológicos e por fatores externos, ambientais e sociais (LEONTIEV, 2005). O autor (2005) destaca três princípios do desenvolvimento, que auxiliam professores, que atuam junto a alunos com deficiência intelectual, a entender e agir sobre as necessidades de aprendizagem apresentadas por estes estudantes. O primeiro princípio versa sobre o desenvolvimento mental da criança como processo de apropriação da experiência humana (LEONTIEV, 2005). O segundo sobre “O desenvolvimento das ‘aptidões’ como processo de formação de sistemas cerebrais funcionais” (LEONTIEV, 2005, p. 96) e o terceiro princípio sobre “O desenvolvimento mental da criança como processo de formação das ações mentais” (LEONTIEV, 2005, p. 101).
Retornando a Figura 01, temos os conceitos mental e mentalmente, que apareceram 76 e 89 vezes respectivamente no corpus de análise. Para Leontiev (2005) e Vygotski (2011, 2018), o desenvolvimento mental da criança é atribuído a apropriação da experiência acumulada no decurso da história social, das conquistas das gerações passadas, a diferir-se, qualitativamente, do desenvolvimento dos animais. Para ambos os pesquisadores, a experiência de se apropriar do conhecimento acumulado no decurso da história social, dos objetos e dos fenômenos criados, a partir da linguagem e da interação social, permitem que o homem desenvolva funções mentais superiores. Um exemplo indicado trata-se da linguagem, já que a criança, no decorrer de seu desenvolvimento, se apropria desse produto objetivo em interação social. A fala e a compreensão das palavras não são inatas, mas funções que surgem, pois a linguagem está presente no cotidiano da criança. No entanto, para ouvir e falar, são necessárias características biológicas (LEONTIEV, 2005) próprias do ser humano. Nesse sentido, Leontiev (2005, p. 93) ensina que “[…] para que se desenvolvam na criança o ouvido e a palavra é necessário que possua os órgãos do ouvido [...]. Mas só a existência objetiva dos sons da linguagem no ambiente da criança pode explicar por que se desenvolve a função auditiva”.
Se para a criança com deficiência intelectual não é oportunizada a apropriação dos conceitos e conhecimentos que são passados de geração a geração, também não são oportunizadas interações com diferentes indivíduos pela concepção errônea de que o déficit define o que ela é, inclusive o lugar que ocupa na sociedade. Com esta ideia, certamente o desenvolvimento de suas funções psicológicas superiores é prejudicado.
O segundo princípio sobre o desenvolvimento mental, discutido por Leontiev (2005, p. 96) versa sobre “O desenvolvimento das "aptidões" como processo de formação de sistemas cerebrais funcionais”. O teórico constata que as capacidades mentais formadas durante toda a vida do indivíduo não são heranças biológicas, são desenvolvidas no processo histórico e cultural. Apesar de as funções e as capacidades mentais necessitarem de órgãos específicos inatos, as funções adquiridas no desenvolvimento histórico e social não possuem direta dependência da hereditariedade.
Ao continuarmos a análise da nuvem de palavras (Figura 01), temos o conceito funções como frequente 104 vezes nos textos analisados. Leontiev (2005) discute a formação das funções psicológicas superiores e as funções cerebrais, a partir de uma relação, ao indicar que “[…] simultaneamente à formação dos processos mentais superiores, especificamente humanos, se formam também na criança os órgãos cerebrais essenciais para o seu funcionamento […]” (LEONTIEV, 2005, p. 97). Portanto, o autor argumenta que os órgãos das crianças não estão preparados já durante seu nascimento para cumprir determinadas funções. Eles e os sistemas funcionais cerebrais desenvolvem-se a partir da apropriação da experiência histórica humana e durante toda a vida.
O terceiro princípio do desenvolvimento humano apontado por Leontiev (2005) aborda “O desenvolvimento mental da criança como processo de formação das ações mentais” (LEONTIEV, 2005, p. 101). O autor argumenta que a linguagem é essencial para o desenvolvimento mental da criança, já que representa a generalização do conhecimento histórico do homem, pois, a partir da linguagem que a criança se apropria dos conceitos e dos conhecimentos acumulados pela humanidade. Leontiev (2005) indica que a ação pedagógica começaria com ações com objetos, materiais manipuláveis, recursos visuais para que, em seguida, o aluno transforme as ações externas em linguagem e posteriormente em ações internas. As ações mentais, portanto, aparecem primeiramente na forma de ações externas, ações voltadas aos objetos, depois são relacionadas à linguagem, ao se tornarem, então ações internas (LEONTIEV, 2005).
Para o ensino de estudantes com deficiência intelectual, os aspectos referentes a apropriação e formação das ações mentais adequadas apresentam implicações relevantes, já que é essencial ao professor compreender a maneira como a criança procede, como age diante dos conceitos trabalhados. Esta conduta permite que o docente interfira no processo da formação de operações mentais de forma satisfatória, no momento adequado.
Outro conceito que apresenta como destaque na nuvem de palavras (Figura 01) é compensação (58 vezes). Vygotski (2011) discute sobre formas de compensação da deficiência intelectual, a indicar que caminhos indiretos de desenvolvimento são possibilitados quando os caminhos diretos estão impedidos. Essa compensação por caminhos indiretos ocorre principalmente pela esfera cultural.
Vygotski (2011) ensina que, quando as crianças contam nos dedos para conseguir responder a uma operação de adição, estão utilizando caminhos indiretos, pois as mãos passam a ser instrumentos, já que o caminho direto para responder à pergunta está impedido, ainda. A estrutura do caminho indireto surge ao se ter um obstáculo ao caminho direto. Portanto, somente por meio de uma necessidade o desenvolvimento das funções superiores acontece. Dessa forma, senão houver a necessidade de pensar, refletir, conjecturar, a criança não realiza tais processos (VYGOTSKI, 2011).
A partir dessas considerações, a escola, diante de estudantes com deficiência intelectual na organização de situações que fazem a criança a pensar, resolver problemas, abstrair e generalizar, promoveria o desenvolvimento dos caminhos indiretos para a compensação do déficit intelectual.
Articulado com o conceito de compensação, temos os conceitos cultural (40 vezes) e social (39 vezes). A cultura, nessa perspectiva, reconstrói o desenvolvimento que era natural na criança. Os planos de desenvolvimento, o natural e o cultural, necessitam ser pontos de partida para uma prática pedagógica que visa o desenvolvimento de alunos com deficiência intelectual. Por estar inserido num contexto histórico, social e cultural, o desenvolvimento da criança passa de natural para cultural, no entanto, entregue a si mesma, tal desenvolvimento seria incompleto (VYGOTSKI, 2011).
Vygotski (2011) orienta que o aparato cultural humano está adaptado a pessoas sem deficiência. Para ele, “Toda a nossa cultura é calculada para a pessoa dotada de certos órgãos [...] Todos os nossos instrumentos, toda a técnica, todos os signos e símbolos são calculados para um tipo normal de pessoa” (VYGOTSKI, 2011, p. 867). As linhas natural e cultural, no caso da criança com deficiência intelectual, encontram-se em disparidade, por isso a criança necessita de técnicas, métodos, formas, abordagens, estratégias especiais de instrumentos e signos culturais adaptados, são caminhos alternativos para a apropriação do conhecimento histórico e cultural. Um ponto é saliente: a criança não pode ser deixada a seu próprio desenvolvimento natural, pois, dessa forma não desenvolveria suas capacidades intelectuais. Sobre isso, Vygotski (2011, p. 868) afirma que “[…] as formas culturais de comportamento são o único caminho para a educação da criança anormal. Elas consistem na criação de caminhos indiretos de desenvolvimento onde este resulta impossível por caminhos diretos”. Nessa perspectiva, a deficiência intelectual exerce duas influências sobre o desenvolvimento da criança, a primeira enquanto obstáculo, dificuldades, falta; a segunda, como estímulo para que caminhos alternativos sejam desenvolvidos.
Para Vygotsky (2011), a criança com deficiência intelectual apresenta geralmente atrasos no desenvolvimento das funções psicológicas superiores, tanto em relação aos meios externos, como a fala, tanto em relação aos meios internos, como pensamento abstrato, memória e atenção voluntária e apropriação conceitual. Todavia, o teórico indica que o desenvolvimento psíquico superior só é possível pelos meios culturais. Esses argumentos levam a elaboração da tese de que “[...] o desenvolvimento cultural é a principal esfera em que é possível compensar a deficiência. Onde não é possível avançar no desenvolvimento orgânico, abre-se um caminho sem limites para o desenvolvimento cultural” (VYGOTSKI, 2011, p. 869).
Para a criança com deficiência intelectual, especificamente, deve-se criar um caminho indireto para que as funções superiores sejam desenvolvidas. Nesse caso, o autor indica que algo que apresente um caminho indireto para a apropriação e desenvolvimento cultural, algo como o Braille, linguagem usada por pessoas cegas. No caso da deficiência intelectual, algo que contribua para o desenvolvimento das funções e capacidades mentais (VIGOTSKI, 2011).
As condições sociais da criança com deficiência intelectual interferem no seu desenvolvimento, já que os caminhos indiretos estão relacionados ao ambiente, a cultura e ação pedagógica promovida. Para Vygotski (2018), os objetivos educacionais traçados aos alunos com deficiência seriam os mesmos daqueles propostos para os alunos sem deficiência. O autor é enfático ao afirmar que a prática pedagógica não se apoiaria nas dificuldades dos alunos, naquilo que lhe falta.
Na história clínica e pedagógica voltadas aos alunos com deficiência intelectual, “A dificuldade na compreensão do desenvolvimento da criança atrasada surge porque o atraso foi tomado como coisa e não como processo” (VYGOTSKI, 2018, p. 4). Com base no pensamento dialético, não é possível estabelecer o desenvolvimento de crianças com deficiência intelectual como estático. Para Vygotski (2018, p. 5), a deficiência primária, “aquilo que surge no estágio inicial de desenvolvimento, é repetidamente removido pelas novas formações qualitativas que surgem”. Por sua vez, o conceito de remoção é entendido por Vigotski como superação, não significa, contudo, que o orgânico deixou simplesmente de existir, “[…] mas sim que em algum lugar ela está preservada, encontra-se em segundo plano [...]” (VYGOTSKI, 2018, p. 5), o biológico não foi destruído, foi removido do processo de desenvolvimento (VYGOTSKI, 2018).
Outro termo que aparece na nuvem de palavras (Figura 01) é o conceito de processos (223 vezes). Sobre os processos no desenvolvimento da criança com deficiência intelectual, favoráveis ao trabalho pedagógico, Vygotski (2018) ressalta alguns, como a compreensão das formas de desenvolvimento da criança, os processos compensatórios de desenvolvimento e a interação social. O primeiro processo está relacionado à compreensão das formas de aprendizagem e ao desenvolvimento da criança com deficiência intelectual, não tanto em relação ao tipo e ao nível de deficiência, mas, em relação a forma como responde a situações de dificuldade que decorrem da deficiência que possui. O importante é conhecer a criança que possui determinada deficiência e não apenas o que nela falta, o tipo de deficiência.
Os processos compensatórios também são compreendidos como favoráveis ao desenvolvimento da criança com deficiência intelectual. Esses processos surgem quando a criança se depara com dificuldades no processo de desenvolvimento. Diante desse fato, a criança “[...] é obrigada a percorrer um caminho indireto para superá-las” (VYGOTSKI, 2018, p. 7). Esses caminhos indiretos necessitam ser o cerne da atividade pedagógica voltada a alunos com deficiência intelectual, pois, com suporte na capacidade potencial de aprendizagem, o professor proporia situações que desafiem o aluno a potencializar esses caminhos.
Relacionado aos processos compensatórios, temos a ação direta da interação com o meio, com o social. É a partir dessas interações que é possível a criança avançar pelo processo de compensação. A depender da situação criada, da qualidade das interações sociais propostas, das dificuldades impostas pelo meio, a compensação ocorre em diferentes direções. O social ou coletivo é compreendido por Vygotski (2018) como imprescindível no desenvolvimento das funções psicológicas superiores também da criança com deficiência intelectual. Assim, “[…] a fonte, o meio que alimenta o desenvolvimento das funções psicológicas superiores, é o coletivo infantil, composto por crianças com certa diferença de nível intelectual ótimo” (VYGOTSKI, 2018, p. 11). O essencial no coletivo é entendido pelo teórico como a diversidade, a heterogeneidade dos indivíduos que o compõe, pois “[…] A composição homogênea de um coletivo apenas por crianças mentalmente atrasadas, com nível de desenvolvimento altamente semelhante […] é um ideal pedagógico falso. Ele contradiz a lei fundamental do desenvolvimento” (VYGOTSKI, 2018, p. 12). Por essas afirmações, é possível compreender a defesa da teoria Histórico-Cultural pela frequência de crianças com deficiência na escola comum, local onde interagirá socialmente com a diversidade e criará formas de compensar a deficiência intelectual.
Outro ponto importante destacado por Vygotski (2018) a convergir a teoria Histórico-Cultural com a atual perspectiva de escola inclusiva, está no fato de que as funções do intelecto da criança com deficiência intelectual não são igualmente afetadas, pois uma função compensaria a outra, uma vez que o desenvolvimento compensatório da criança com deficiência intelectual é caracterizado pelas substituições de funções. A memória seria um exemplo dessas substituições. No caso de um estudante cego, pensemos sobre a forma que lê, pois na base desse processo, está o princípio de substituição, que permite a leitura ser feita a partir do braile, por meio do tato. O modo habitual de ler não é a única forma, dessa maneira ao ter esse modo ausente, a criança o substitui por outro, a partir de artefatos culturais (VYGOTSKI, 2018).
Apesar de elencarmos muitos aspectos positivos assentados em nossas ações para contribuir com o desenvolvimento intelectual do aluno com deficiência, Vygotski (2018) ainda argumenta que há também outros que fazem parte do desenvolvimento dessa criança. O primeiro é em relação ao ambiente social em que está inserida, um ambiente sem estímulos, com fracas interações entre outros indivíduos contribui para que se acentue a deficiência primária. O desenvolvimento insatisfatório das funções superiores está relacionado a incompletude do desenvolvimento cultural, da segregação do social, da falta de interações e de estímulos, da influência do meio que a criança com deficiência “[…] não vivenciou no momento adequado […] em consequência disso, seu atraso se acumula, acumulam-se propriedades negativas e complicações adicionais na forma de um desenvolvimento social incompleto, de negligência” (VYGOTSKI, 2018, p. 15). Como discutimos no decorrer deste texto, as questões de ordem secundária (sociais e culturais) acarretam intensos prejuízos na educação desses estudantes, em especial. A influência do meio no desenvolvimento da criança com deficiência intelectual necessita fazer parte do foco da educação, a fim de ser possível reconhecer o que é deficiência primária e o que no desenvolvimento da criança com deficiência intelectual foi interferido por situações secundárias, passíveis de compensação.
Considerações finais
A teoria Histórico-Cultural apresenta contribuições que se mostram atuais para o desenvolvimento de escolas inclusivas e de modo particular para a educação de pessoas com deficiência intelectual. Citam-se, de modo sintético, alguns conceitos basilares debatidos pelos teóricos para pensarmos a escolarização desses estudantes: aprendizagem e desenvolvimento de crianças com deficiência intelectual; interação social; compensação; processos; desenvolvimento cultural e funções e capacidades mentais.
As discussões a respeito dos conceitos propostos por Vygotski (2005, 2011, 2018) e Leontiev (2005) não se esgotam aos abordados aqui, nem nas explanações oferecidas. A teoria é complexa e necessita ser estudada e revista constantemente para melhor e maior compreensão dos seus pressupostos. Os estudos desses teóricos são fontes inestimáveis de conhecimento que contribuem com muitas implicações para a prática pedagógica voltada também a alunos com deficiência intelectual.
RESUMO:
Main Text
Introdução
Considerações Metodológicas
Implicações da Teoria na escolarização de pessoas com deficiência intelectual
Considerações finais