Sun, 21 Jul 2024 in Revista Ibero-Americana de Estudos em Educação
APRENDIZAGEM E PENSAMENTO MATEMÁTICO: UM OLHAR A PARTIR DA RESOLUÇÃO E PROPOSIÇÃO DE PROBLEMAS POR CRIANÇAS DOS ANOS INICIAIS
RESUMO:
Este estudo tem o objetivo de analisar a associação entre a resolução e a proposição de problemas e seu potencial para promover a aprendizagem e ajudar a compreender o pensamento matemático dos estudantes. Para isso, foi realizada uma pesquisa qualitativa do tipo estudo de caso, envolvendo estudantes do 1º ao 5º ano do Ensino Fundamental na resolução de um problema que foi adaptado de modo a gerar diferentes resultados de aprendizagem em relação à operação de divisão, bem como associa-se à proposição de problemas a partir da solicitação de adicionar uma pergunta ao problema. Os resultados confirmam a importância de o professor fomentar discussões e compreender o pensamento matemático dos estudantes; eles também revelam que a dificuldade em interpretar o enunciado do problema pode, nem sempre, ser a razão pela qual os alunos não apresentam uma solução. Adicionalmente, os dados relevam o potencial da proposição de problemas para aprofundar ou avançar nas aprendizagens decorrentes da resolução de problemas.
Main Text
Introdução
Os currículos de diversos países ressaltam a resolução de problemas como uma parte importante do que significa ensinar e aprender Matemática (Brasil, 2018; National Council Of Teachers Of Mathematics, 2000) e, de fato, a resolução de problemas é o coração da Matemática (Polya, 1985; Cai; Hwang, 2021). No entanto, apesar da abundância de pesquisas, a implementação da resolução de problemas como um meio para ensinar Matemática ainda é um desafio para os professores, devido às crenças sobre o que significa aprender Matemática ou sobre o que é Resolução de Problemas.
O ensino através da resolução de problemas constitui um ambiente diferente de uma aula que inicia com o professor apresentando o conteúdo e alguns exemplos para, depois, apresentar problemas para os quais os processos de resolução já são conhecidos ou são prescritos pelo professor. Quando se ensina para resolver problemas o papel do estudante se resume a aplicar um conteúdo, repetindo o que foi ensinado. No ensino através da resolução de problemas os estudantes não são condicionados por exemplos, mas mobilizam seus conhecimentos prévios e estabelecem conexões, apresentando resoluções ou obtendo soluções que, por vezes, surpreendem o professor, podendo incluir estratégias não previstas. Isso pode ser, então, também, uma das causas da hesitação dos professores para o ensino através da resolução de problemas (Liljedahl; Cai, 2021).
Tal como a Resolução de Problemas, a Proposição de Problemas tem sido de interesse das pesquisas em Educação Matemática. Mais recentemente, também se tem a orientação de que os problemas a serem resolvidos sejam propostos não apenas pelos professores, mas, e especialmente, pelos estudantes (National Council Of Teachers Of Mathematics, 2020). Tanto a Resolução como a Proposição de Problemas são recursos importantes para que se avance do currículo prescrito para a implementação em sala de aula. Entretanto, apesar da extensa produção de pesquisas que tratam do ensino através da resolução e da proposição de problemas, a relação entre essas duas vertentes ainda não está explicitada de forma evidente nos materiais curriculares (Cai; Hwang, 2021; Possamai; Allevato; Strelow, 2023).
As atividades em questão, incluindo as dos livros didáticos, podem ser utilizadas de modo a constituir oportunidades para integrar a proposição de problemas às aulas de Matemática. Por exemplo, os professores podem retirar alguma informação de um problema original e pedir que os estudantes os completem ou complementem com novos dados ou informações (Cai; Hwang, 2021); ou podem, ainda, solicitar que os alunos criem ou modifiquem o problema original de modo que ele fique mais difícil (Allevato; Possamai, 2022; Cai et al., 2023).
A investigação apresentada neste artigo tem como objetivo analisar a associação entre a resolução e a proposição de problemas e o seu potencial para promover a aprendizagem e ajudar a compreender o pensamento matemático dos estudantes. Para tanto, na sequência, apresenta-se alguns aspectos teóricos que norteiam este estudo, para, então, expor os resultados e discussão.
Resolução e Proposição de Problemas
Apesar da importância de a resolução de problemas no ensino de Matemática ser inquestionável, nem sempre os professores têm um claro posicionamento acerca do que é um problema e do que é a sua resolução, impactando na forma como essas são desenvolvidas em aula (Allevato, 2014; Bailey, 2022; Lester; Cai, 2016).
A resolução de problemas é explorada no presente estudo com o entendimento de que um problema “é uma tarefa apresentada aos estudantes num contexto educativo que apresenta uma pergunta a ser respondida, mas para a qual os alunos não dispõem de um procedimento ou de uma estratégia de resposta imediatamente disponível” (Lester; Cai, 2016, p. 122) e que, por isso, não pode ser resolvido apenas por um esforço processual. Esse entendimento é importante porque se reflete na forma como a resolução é implementada na sala de aula, dado que, muitas vezes, os docentes incluem os problemas e a resolução apenas como um “complemento” que dá aos estudantes a oportunidade de aplicar ou praticar um procedimento específico previamente ensinado (Bailey, 2022; Allevato, 2014).
Essa concepção constitui a resolução de problemas, no âmbito da Matemática, como um tipo de atividade de caráter, não raro, semelhante ao pensamento do dia a dia, uma vez que, segundo Polya (1985, p. 13), “a maior parte da nossa atividade pensante, que não seja simplesmente sonhar acordado, se ocupa daquilo que desejamos e dos meios para obtê-lo, isto é, de problemas”.
Quando se ensina através da resolução de problemas, a aprendizagem ocorre durante o processo de busca pela solução, ao longo do qual são abordados conceitos, e habilidades matemáticas relevantes são incorporadas (Allevato, 2014; Lester; Cai, 2016), em um ambiente instrucional que possibilita aprender Matemática por meio de interações sociais, negociando e produzindo significado, e desenvolvendo sistemas cada vez mais conectados de conhecimento (Allevato, 2014; Allevato; Onuchic, 2021; Bailey, 2022).
Nessa perspectiva, o problema é considerado ponto de partida e oferece orientação para a aprendizagem de novos conceitos e procedimentos matemáticos (Allevato; Onuchic, 2021). No entanto, cabe enfatizar que não é o formato do problema que define seu potencial, mas sim as ações do professor, condicionando os resultados ao discurso (ou à falta dele) em sala de aula acerca dos processos de resolução utilizados. É importante reiterar que
[...] o critério mais importante para que um problema matemático valha a pena é que o problema sirva com o um meio para os estudantes aprenderem matemática importante. Tal problema não precisa ser complicado ou ter um formato sofisticado. Desde que um problema promova a aprendizagem de matemática importante pelos estudantes, é um problema que vale a pena (Lester; Cai, 2016, p. 123).
Mas de onde vêm ou podem vir tais problemas? Nessa vertente, Getzels (1979) distinguiu três tipos de problemas: os apresentados, os descobertos e os criados, sendo que nas aulas de Matemática geralmente se solicita que os estudantes resolvam problemas que lhes são apresentados, cabendo-lhes a tarefa de resolvê-los e, aos professores, de criá-los ou de selecioná-los ou de adaptá-los de livros didáticos ou outros materiais.
Porém, o incentivo à proposição de problemas também pelos estudantes se faz presente em documentos e orientações curriculares atuais e tem sido foco de pesquisas em Educação Matemática, ao se perceber que é cognitivamente mais exigente e, ao mesmo tempo, mais acessível que a Resolução de Problemas (Cai, 2022; Possamai; Allevato, 2023). Vieira, Possamai e Allevato (2023) ressaltam que a proposição de problemas é considerada uma atividade cognitivamente mais exigente do que a resolução de problemas, porque estimula processos de pensamento mais sofisticados, compreendendo o pensamento crítico, lógico, reflexivo, metacognitivo e criativo.
Além disso, “a proposição de problemas como um objetivo do ensino de Matemática está ligada à promoção de atividades matemáticas ou de relação positiva (curiosidade matemática, interesse, prazer) que encoraja alunos e professores a proporem novos e melhores problemas” (Cai; Leikin, 2020, p. 297).
Cabe ressaltar que a proposição de problemas refere-se à atividade em que os estudantes são os responsáveis por criar um problema e apresentá-lo a um potencial resolvedor, diferentemente de resolver uma dada questão, geralmente apresentada pelo professor, como usualmente se configura a resolução de problemas em sala de aula. Desse modo, enquanto nesta a aprendizagem se constitui no processo de busca pela solução, no ensino através da proposição de problemas a aprendizagem ocorre durante o processo de criação e discussão dos problemas criados; reitere-se, formulados pelos estudantes. Entretanto, mesmo sendo atividades distintas, elas se complementam e, podem, desse modo, potencializar a aprendizagem matemática, uma vez que, ao analisar os problemas elaborados pelos discentes, é possível identificar falhas de aprendizagem conceitual que precisam ser trabalhadas (Possamai; Allevato, 2023).
Existem diferentes possibilidades para integrar as atividades de proposição de problemas em sala de aula, e uma estratégia simples envolve essa associação com a resolução de problemas, realizando pequenas alterações ou inserções nos problemas disponíveis nos livros didáticos. Investigações recentes (Cai, 2022; Cai; Hwang, 2021) têm mostrado que essas estratégias, mesmo que modestas, podem encorajar e aumentar significativamente a habilidade dos professores de incluir a proposição de problemas em suas aulas.
Neste estudo, analisa-se a proposição de problemas, pelos estudantes, realizada adicionando uma pergunta a um problema já resolvido e discutido em sala, conforme se apresenta na sequência.
Caracterização Metodológica
O estudo apresentado neste artigo é qualitativo, com o objetivo de atribuir um significado para o fenômeno investigado (Amado; Freire, 2014), e, especificamente, analisar a associação entre a resolução e a proposição de problemas e o seu potencial para promover a aprendizagem e ajudar a compreender o pensamento matemático dos estudantes.
A pesquisa envolveu 14 estudantes do 1º ao 5º ano do Ensino Fundamental de uma escola pública localizada em Santa Catarina, no Brasil. A escolha dos estudantes foi aleatória, realizada por uma professora da escola que ajudou as pesquisadoras na coleta de dados. Os estudantes foram solicitados a resolver um problema gerador5 e, na sequência, a propor uma nova pergunta para o problema, com o intuito de desenvolver aprendizagens relacionadas à divisão e avançar para a proposição de problemas. O problema gerador foi adaptado ao nível escolar dos estudantes, sendo que para os estudantes do 1º e 2º ano a implementação se deu a partir da atividade apresentada na Figura 1.
A resolução do problema exigiu que os estudantes construíssem estratégias para realizar a divisão, em particular para a ideia de metade, que ainda não havia sido discutida em sala de aula. Esse problema foi adaptado para os outros anos escolares, alterando o anunciado, conforme mostra o Quadro 1, e por consequência as alternativas do item (a).
O problema gerador para o 3º ano envolve uma subtração com recurso à ordem superior e a divisão envolve números maiores. O problema para o 4º ano envolve uma divisão por 4, avançando para além da ideia de metade. Finalmente, o problema do 5º ano envolve uma divisão com resto ou com resultado decimal.
O item (b) pretendeu evidenciar como a proposição de problemas se associa à resolução de problemas, nestes casos como possibilidade de aprofundar aprendizagens decorrentes do problema já resolvido ou de avançar em novas aprendizagens.
Os dados de pesquisa se constituíram, inicialmente, dos registros escritos dos estudantes, que foram coletados pela professora colaboradora. Após a análise das resoluções dos estudantes para os problemas propostos, as pesquisadoras realizaram entrevistas com alguns estudantes, visando melhor compreensão dos processos envolvidos nas suas decisões e resoluções. Os dados são apresentados com os estudantes identificados pelo código “aluno-ano escolar”; por exemplo, 1-5 refere-se ao Estudante 1 do 5º ano.
Esta investigação é do tipo estudo de caso, pois, ao ser conduzida com esse grupo de estudantes e o relato dos resultados, não se tem intenção de produzir generalizações, ou seja, de sugerir que outros alunos desenvolvendo essas atividades se igualem nos dados emergentes, mas possibilitar que indícios ligados a aspectos relevantes sejam considerados em outras investigações e em práticas educativas de sala de aula.
Condicionados por esses aspectos metodológicos delineados para o estudo foram constituídos os dados, que são apresentados e analisados na próxima seção.
Relato e Análise de Dados
A atividade, da Figura 1 foi realizada por duas crianças do 1º ano e uma do 2º ano. As 3 crianças conseguiram determinar quantas páginas faltavam para terminar a leitura do livro, e realizaram uma subtração. Porém, apenas uma das crianças conseguiu identificar que poderia responder quantas páginas deveriam ser lidas por dia para terminar a leitura do livro e apresentou uma solução. A resolução é apresentada na Figura 2.
É importante reafirmar que a operação de divisão ainda não havia sido abordada em sala de aula. Contudo, essa criança conseguiu responder à pergunta utilizando estratégias relacionadas com a decomposição de números, por um caminho que fez sentido para ela. Quando questionada sobre sua resolução a criança explicou: “eu sei que 4 é 2 + 2 e 10 é 5 + 5; então eu sei qual é a metade de cada um, e depois eu junto as metades, 5 + 2 é 7”. Isso enfatiza a importância da resolução de problemas como um “[...] processo ativo e construtivo em que os estudantes realizam as atividades de sala de aula à luz de suas crenças e assimilam as informações dentro de suas estruturas de conhecimento pré-existentes. Resulta que cada estudante constrói um tipo de matemática ‘personalizada’” (Allevato; Onuchic, 2019, p. 2).
As outras duas crianças não identificaram que a questão “quantas páginas deveriam ser lidas por dia” poderia ser respondida, e também foram entrevistadas. A pesquisadora perguntou, reduzindo o número que constava no problema: “E se tivesse sobrado apenas 10 páginas, seria possível saber quantas deveriam ser lidas por dia?”. Mesmo assim as crianças não conseguiram estruturar uma estratégia. A pesquisadora continuou: “Se eu lesse uma página hoje e outra amanhã, eu terminaria o livro?”. As crianças responderam que não, mas não conseguiram avançar e estabelecer uma estratégia para resolver a questão e determinar quantas páginas deveriam ser lidas por dia. Possivelmente, ainda faltavam a esses estudantes experiências para o desenvolvendo do senso numérico, que possibilitaria pensar com flexibilidade sobre os números e avançar sobre a construção de estratégias que envolvessem a divisão.
Todos os 3 estudantes do 3º ano foram capazes de determinar quantas páginas faltam para terminar a leitura, estruturando o algoritmo padrão da subtração. Porém, nenhum estudante respondeu à questão “Quantas páginas ele deve ler por dia?”. Verifica-se no registro dos estudantes que 2 deles marcaram que a pergunta poderia ser respondida, mas, sem conseguir apresentar a resolução, apagaram o que haviam marcado. Após analisar esses registros, as pesquisadoras inicialmente entrevistaram a professora da turma a que pertenciam esses alunos do 3º ano:
Pesquisadora: Percebemos aqui que os estudantes marcaram que conseguiriam responder à questão, mas apagaram. Conhecendo os estudantes e o contexto da sala de aula, por qual motivo você acredita que eles marcaram que poderiam resolver, mas não o fizeram?
Professora da turma: Eu acredito que na hora da leitura eles ficaram na dúvida. Por isso, quando eu faço uma avaliação com eles, eu faço as questões o mais simples possível e eu falo para eles que a resposta está no texto e peço para lerem com atenção. Às vezes eles fazem na pressa e ficam nervosos, e acabam não respondendo como deveriam. O problema deles é a interpretação do enunciado.
Pesquisadora: Eles já tinham aprendido sobre divisão quando resolveram esse problema?
Professora da turma: Não tinham aprendido. Mas eles têm muita dificuldade de interpretar os problemas.
Esse relato corrobora com o que já foi verificado em outras pesquisas (Lester; Cai, 2016), de que, não raro, os docentes eliminam os desafios de uma tarefa matemática, mostrando aos estudantes como resolver o problema ou reduzindo o nível de dificuldade para conduzi-los à solução. Isso decorre de uma formação em que o professor foi ensinado a “ajudar seus estudantes”, reduzindo o nível de dificuldade da resolução de problemas para os estudantes, que é baseada na concepção tradicional de ensino.
A esse respeito, Polya (1985, p. 15) adverte que:
Se encararmos o desenvolvimento da inteligência do aluno como o objetivo principal (ou um dos mais importantes) do ensino a nível secundário e o trabalho do aluno para resolver problemas como o meio principal (ou um dos mais importantes) para atingir esse fim, então a principal (ou uma importante) preocupação do professor deverá ser a de conduzir o aluno a descobrir a solução por si mesmo.
Observe-se ainda que, ingenuamente, a professora atribui, insistentemente, a dificuldade manifestada pelos alunos à sua “dificuldade de interpretação” do problema/enunciado, descuidando-se, inclusive, do fato especificamente ligado à Matemática - de que os alunos ainda não tinham trabalhado com a divisão nas aulas.
Na sequência, as pesquisadoras entrevistaram os estudantes. Primeiro, os alunos são solicitados a ler novamente o problema e depois a pesquisadora pergunta:
Pesquisadora: Eu vi aqui que você marcou que poderia responder e apagou. Quantas páginas ele pode ler por dia? Por que você apagou? Você lembra?
Estudante 1-3: É que eu não sabia resolver. Eu não consegui resolver e aí eu apaguei.
Pesquisadora: Mas você consegue perceber que é possível resolver com os dados do problema? [O estudante acena com a cabeça que sim] Você conseguiria responder se não precisasse montar a conta?
Estudante 1-3: Eu acho que para ler em dois dias ele tem que ler 33 por dia.
Pesquisadora: Por que você acha isso?
Estudante 1-3: Porque a metade de 60 é 30 e a metade de 6 é 3. E 33 + 33 dá 66.
Pesquisadora: Isso você sabia, mas não respondeu porque não sabe montar a conta de divisão ainda? [O estudante concorda acenando com a cabeça]
Outro estudante (2-3), que também marcou que a pergunta poderia ser respondida, ao ser entrevistado não tinha ideia de como responder à questão. Ele tentou buscar em seus conhecimentos alguma operação que se encaixasse na demanda, respondendo que deveria fazer 66 - 2.
Esses dados dão indícios de que, estando condicionados a apresentar a conta padrão (algoritmo) ao professor, os alunos se sentiram incapazes de resolver o problema por desconhecer o algoritmo. Esse tipo de resultado é documentado consistentemente por diversos pesquisadores ao verificarem, conforme indicado por Lester e Cai (2016, p. 126), que “as crenças dos estudantes sobre a natureza da resolução de problemas não se restringem a como os problemas devem ser resolvidos. Muitos também têm convicções firmes sobre o que se espera deles quando seus professores lhes dão problemas para resolver”.
Destacamos duas resoluções desenvolvidas entre as três dos estudantes do 4º ano. Um deles estruturou o algoritmo da divisão (Estudante 3-4), e o outro utilizou seus conhecimentos sobre números e sobre as relações entre as operações para obter a solução, confirmando com o registro de contadores, como mostra a Figura 3:
Outro estudante utilizou apenas registro de contadores desenhados, conforme mostra a Figura 4:
Analisando a Figura 4, percebe-se que o estudante distribui corretamente 19 contadores em cada coluna, mas conta erroneamente no momento de apresentar a solução. Esses estudantes do 4º ano tiveram mais flexibilidade em realizar seus registros, o que possivelmente reflete o tipo de abordagem e de mediação do professor em sala de aula, permitindo que eles resolvam os problemas utilizando estratégias que consideram coerentes e que tenham significado para eles.
É importante que as diferentes estratégias sejam discutidas e compartilhadas em sala de aula uma vez que “à medida que os alunos explicam e justificam o seu pensamento e desafiam as explicações de seus colegas e professores, eles também estão engajando-se no esclarecimento de seu próprio pensamento e tornando-se donos do saber” (Lester; Cai, 2016, p. 124, tradução nossa).
Dentre os estudantes do 5º ano, dois não identificaram que seria possível determinar quantas páginas seriam lidas por dia (Estudantes 4-5 e 5-5). Os outros três estruturaram o algoritmo da divisão, obtendo como respostas: “Ele deve ser 15,2 páginas para acabar o livro” (Estudante 1-5); “15 páginas por dia (Estudante 2-5)” [esse estudante obteve resto 1 e o ignorou] e um deles interpretou erroneamente a questão de modo a dividir 264 por 5 (Estudante 3-5).
O estudante que respondeu 15,2 foi entrevistado:
Pesquisadora: O que você entendeu por 15,2 na sua resposta? O que ela significa?
Estudante 1-5: Como tinha sobrado eu pedi para a prof. se eu podia colocar vírgula, aí eu coloquei a vírgula, né? Aí eu pensei que esse “vírgula 2” seria a metade de uma página, então ele teria que ler cada dia 15 páginas e meia.
O estudante que respondeu com resto 1 também foi entrevistado:
Pesquisadora: O que significa esse 1 aqui embaixo?
Estudante 2-5: É que sobrou.
Pesquisadora: Daria para continuar a conta? O que você acha que ele significa?
Estudante 2-5: Significa 1 página.
Pesquisadora: E o que a gente faz com ela?
Estudante 2-5: Será que eu tenho que colocar a vírgula?
Pesquisadora: Se eu não colocar a vírgula, o que eu faço com esse 1?
Estudante 2-5 Ele teria que ler uma parte da página por dia a mais. [O estudante pega o papel e continua usando a vírgula e chega em 15,2]
Pesquisadora: E aí? Se eu pegasse o livro para ler, eu ia ler 15 página e o que faria com o “vírgula 2”?
Estudante 2-5: Eu olharia as linhas. Eu teria que ler 2 linhas... ou metade da metade.
O estudante não consegue expressar seu entendimento para o resto, que implicaria em algum dia ler 16 e não 15 páginas. Quando ele avança para o resultado 15,2 ele percebe que o 0,2 é menos da metade da página, mas não consegue expressar exatamente seu significado. Essas entrevistas relevam o potencial desse problema para se avançar na aprendizagem dos números racionais na forma decimal, uma vez que, apesar de saberem operar com a divisão, não há claro entendimento do seu significado.
No momento da discussão dos resultados e busca de consenso sobre a melhor resolução ou a correta solução, por professor em conjunto com os alunos, e até mesmo na formalização do conteúdo, pelo professor, essas soluções possibilitam que o professor conduza os estudantes a estabelecer relações entre os números racionais na forma decimal, frações e porcentagem, produzindo significado para o resultado encontrado e avançando na aprendizagem de ideias unificadoras dos números racionais. Isso reitera a Resolução de Problemas como “[...] profícua na construção do conhecimento das grandes ideias presentes na Matemática” (Allevato; Onuchic, 2019, p. 4), que possibilitam estabelecer conexões matemáticas importantes.
Esses dados também reforçam a importância do professor frente à Resolução de Problemas que, segundo Lester e Cai (2016), pode ter dois objetivos: (i) resolver o problema; (ii) incentivar os estudantes a raciocinarem e a refletirem sobre se raciocínio, demonstrando compreensão dos conceitos matemáticos incorporados no problema. Quando o objetivo do professor se reduz a os estudantes resolverem o problema, ele aceita as soluções que consistem em sequências de cálculo sem questioná-las. Porém, na segunda perspectiva o professor é mais persistente em sondar o pensamento dos estudantes e o significado atribuído aos cálculos apresentados (Lester; Cai, 2016).
Quanto a criar uma pergunta que pudesse ser respondida, essa foi uma demanda que gerou estranheza aos estudantes, e uma criança do 1º ano, dois estudantes do 3º ano e um estudante do 4º ano deixaram em branco esse item. O Quadro 2 apresenta as perguntas criadas, em resposta ao item (b) do problema.
A pergunta apresentada pela criança do 1º ano “Se ele ler o livro em só dois dias, quantas páginas ele lerá por dia”, se constitui de uma modificação interessante do problema original e envolve a divisão das 28 páginas em 2 dias. A indagação evidencia que o estudante, apesar de não conseguir apresentar uma estratégia para realizar a divisão, conseguiu perceber que é uma questão que poderia ser abordada pelo problema. Ou seja, a pergunta se constituiu como um problema para o próprio aluno propositor, uma vez que ele já não soube responder o problema original que consistia em dividir 14 páginas em 2 dias.
Isso revela o potencial da proposição de problemas para se avançar e aprofundar nas aprendizagens e compreensões produzidas pela resolução de problemas, uma vez que
[...] tanto experiências com a resolução de problemas auxiliam os estudantes a compreenderem a estrutura de um problema para, então, criarem seus próprios problemas, como a proposição de problemas melhora os processos de leitura, interpretação e resolução de problemas, uma vez que os estudantes precisam analisar a estrutura e o objetivo do problema no seu processo de criação (Possamai; Allevato; Strelow, 2023, p. 151).
Além disso, cabe enfatizar a importância da proposição de problemas para que os estudantes se envolvam na interpretação pessoal do problema, expressando seu próprio pensamento matemático e estimulando, ainda, o pensamento crítico e criativo (Cai, 2022; Possamai; Allevato, 2024; Vieira; Possamai; Allevato, 2023).
A criança do 2º ano perguntou “Quantas páginas ele leria se fosse em 3 dias?”, pergunta que também foi apresentada por um estudante do 5º ano. Esse também é um problema interessante, pois envolve uma divisão com resto, possibilitando avançar sobre novas aprendizagens. Cabe enfatizar que o repertório de conhecimentos e conteúdos matemáticos do estudante do 5º ano, supostamente, é maior que o do 2º ano e, ainda assim, ambos os estudantes geraram problemas semelhantes. Isso reitera a ideia de que:
Apesar de as atividades de proposição de problemas serem tarefas cognitivamente exigentes, elas são adaptáveis às habilidades dos estudantes e, portanto, podem aumentar o acesso dos estudantes de tal forma que estudantes com diferentes níveis de compreensão ainda podem participar e propor problemas potencialmente produtivos com base em sua própria produção sensorial (Cai, 2022, p. 32).
As perguntas propostas envolveram alterar a quantidade de páginas, de dias ou de páginas lidas por dia, mantendo-se associadas ao problema original. Apenas um estudante, do 5º ano, constituiu um novo problema: “Ricardo quer ler um livro de 595 páginas em 4 dias. Quantas páginas por dia ele deve ler?”, como uma extensão do problema original.
Diferentes estratégias podem ser usadas pelo professor para promover a discussão desses problemas propostos em sala, como: pedir para que as crianças troquem as perguntas entre elas; ou o professor compilar todos as questões em uma lista, solicitando que as crianças escolham as duas que acharem mais interessantes para resolver; ou os estudantes escolherem uma que consideram fácil e outra difícil para resolverem; dentre outras possibilidades. O importante é reconhecer o potencial dessas questões para avaliar, aprofundar ou ampliar as aprendizagens decorrentes do problema inicialmente resolvido (Cai, 2022; Possamai; Allevato, 2023).
Finalmente, concluímos que essa atividade trata de uma situação rica e verdadeiramente desafiadora para os estudantes, permitindo que analisem quais questões fazem sentido, e que gerem e explorem ideias matemáticas, podendo, também, produzir seus próprios questionamentos, ou seja, propor problemas. Também fica evidenciado que a abordagem do professor é fundamental no sentido de melhorar os resultados (Lester; Cai, 2016), especificamente em como ele promove a discussão e como possibilita e incentiva os estudantes a buscarem diferentes estratégias para resolver o problema original e os novos problemas constituídos a partir das questões propostas.
Considerações finais
Este estudo teve como objetivo analisar como a associação da resolução à proposição de problema pode promover a aprendizagem e melhor compreender o pensamento matemático dos estudantes, a partir de um estudo de caso. Os dados revelam a importância de se realizar pesquisas desse tipo para que se possa avançar no entendimento e na compreensão das resoluções matemáticas dos estudantes, apontando para questões importantes a serem consideradas no trabalho em sala de aula.
Os resultados ressaltam o importante papel do professor em fomentar as discussões e realizar intervenções que possibilitem aos estudantes expressarem seus entendimentos acerca da Matemática envolvida no problema, valorizando suas diferentes formas de resolução e de raciocínio matemático. Quando a sala de aula se restringe à análise das respostas e dos cálculos, sem explorar os significados inerentes e decorrentes, tem-se reduzido o potencial de estabelecer conexões e avançar na aprendizagem matemática.
Os dados também indicam que atribuir a falta de solução de um problema por parte dos estudantes a dificuldades de interpretação do problema, discurso recorrente na fala dos professores, é uma conclusão ingênua do que, de fato, está acontecendo ou pode acontecer com os estudantes. Como verificado, os estudantes podem, também, não apresentar a solução por considerarem que o modo com que conseguem resolver o problema difere do que eles acreditam que o professor espera como registro, em particular, que é limitado ao uso de algoritmos. Além disso, pode ser que eles não tenham desenvolvidas as compreensões conceituais mínimas de aspectos centrais da Matemática envolvida no problema.
Isso reforça a ideia de que não é o formato ou a sofisticação do problema que garante bons resultados em relação à aprendizagem dos estudantes, mas sim o tempo e o discurso que se possibilita (ou não) que aconteça em sala de aula, incentivando e possibilitando que os estudantes compartilhem o que e como pensam e construam significado à Matemática.
Este estudo demonstra o potencial da proposição de problemas mesmo quando incorporada como uma exigência aparentemente simples, como pedir que uma pergunta adicional seja proposta ao problema. Cabe enfatizar que apesar do apelo das pesquisas e de documentos curriculares para integrar a proposição de problemas à Matemática escolar, tem havido pouco progresso no que se refere à sua presença nos livros didáticos e muito menos no currículo implementado em sala de aula.
Os resultados deste estudo revelam a proposição de problemas como um caminho para aprofundar ou avançar nas aprendizagens decorrentes da resolução de problemas, permitindo que os estudantes criem problemas de diferentes níveis de complexidade, dando possiblidade para que se envolvam na atividade, mesmo possuindo diferenças no domínio de conhecimentos matemáticos. Estes dados indicam a necessidade e a possibilidade de que os professores desempenhem um papel de protagonistas na implementação do currículo e que a proposição de problemas seja efetivamente incorporada na Matemática escolar, com base em modificações simples dos materiais disponíveis, como os livros didáticos, e da prática docente.
RESUMO:
Main Text
Introdução
Resolução e Proposição de Problemas
Caracterização Metodológica
Relato e Análise de Dados
Considerações finais