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December 2018 in Revista on line de Política e Gestão Educacional
20 ANOS DE PRODUÇÃO CIENTÍFICA SOBRE O SARESP (1996-2016): REFLEXÕES ACERCA DOS DESDOBRAMENTOS NA PRÁTICA DOCENTE E DA PRIVATIZAÇÃO
RESUMO
Neste trabalho, socializamos os resultados da produção científica brasileira (dissertações e teses) sobre o SARESP (1996-2016), além das possíveis relações entre esta avaliação e as formas de privatização que permeiam o cenário educacional. Trata-se de uma pesquisa qualitativa com levantamento bibliográfico nos bancos de dados da CAPES, USP, UNESP e UNICAMP. Em síntese, identificamos os seguintes desdobramentos: uso dos resultados para planejar e replanejar o trabalho escolar; padronização e estreitamento curricular; direcionamento e controle do trabalho docente; limitação da autonomia docente; imposição de um ritmo único para a aprendizagem; incidência sobre as práticas avaliativas nas escolas e treinamento dos estudantes para o SARESP. A análise destes aspectos permitiu-nos evidenciar como a privatização vem se inserindo e permeando as escolas por meio das avaliações em larga escala.
Main Text
Percorrendo caminhos que subsidiaram o SARESP na política educacional paulista
Diante do cenário de crise do capital, a partir da década de 1970, o neoliberalismo ganhou centralidade como alternativa, particularmente, dos grupos ou classes dominantes, tendo em vista superá-la. Como forma de viabilizar políticas públicas assentadas sob a lógica neoliberal, as agências internacionais de financiamento adquiriram expressiva importância, possuindo um papel primordial no incentivo às reformas que ocorreram na década de 1990, na medida em que passaram a realizar empréstimos associados ao cumprimento de condicionalidades, por meio das quais se envolvem no delineamento das propostas implementadas pelos governos nacionais nos países. (RIBEIRO, 2008)
Neste contexto, a Reforma do Aparelho do Estado brasileiro, na década de 1990, pretendeu atender às determinações do movimento de rearticulação global do capital, sendo considerada como um requisito para o desenvolvimento e a inserção do país no mundo globalizado. (RIBEIRO, 2008)
O processo de reforma em foco, embora tenha sido iniciado durante o governo de Fernando Collor de Mello (1990-1992), filiado ao Partido da Reconstrução Nacional (PRN), ganhou maior robustez no governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) (FHC), pertencente ao Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), e concretizou-se com a Reforma do Estado conduzida pelo ministro Luiz Carlos Bresser Pereira, à frente do Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado (MARE) (1995-1998), fundamentando-se no Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado (PDRAE) (BRASIL, 1995). Dentre as mudanças propostas, destacamos: a) a reorganização do aparelho estatal por meio da publicização e da privatização; b) a implementação do modelo administrativo gerencial em detrimento do burocrático.
Na esfera pública, o modelo administrativo gerencial traz em seu bojo a ênfase no controle dos processos através dos resultados cobrados posteriormente. A esse respeito, Parente (2016) explicitou que o gerencialismo inspira-se na administração empresarial, adotando-a como padrão referencial no contexto da administração pública, inclusive no tocante à gestão educacional, o que se evidencia com a utilização de conceitos, tais como: eficiência, eficácia, produtividade, desempenho e resultado. Ao incorporar estes conceitos, o governo insere na rede pública educacional concepções, lógicas e mecanismos do mundo corporativo empresarial, como a comparação do usuário do serviço público com o cliente de uma empresa.
Diante deste cenário, cabe frisarmos que sendo os fins das instituições educativas diferentes dos fins de uma empresa de bens e serviços, os meios de administração e gestão de ambos não poderiam ser iguais, o que torna essas transposições de conceitos, concepções, lógicas e mecanismos preocupantes. (PARO, 1999)
Na perspectiva de transpor fundamentos empresariais à educação, tratando-a como um serviço, uma mercadoria e os alunos com suas respectivas famílias como clientes, ao invés de - como acreditamos e defendemos - direito social, a função do Estado no que se refere à educação é a de estabelecer mecanismos de controle social sobre os serviços prestados, presumindo que dessa maneira pode-se garantir a qualidade do ensino. (RIBEIRO, 2008)
Desta forma, as avaliações de sistemas passaram a ser apontadas como necessárias, em face do modelo administrativo gerencial, para regular e fiscalizar os serviços prestados, buscando a qualidade atrelada aos interesses e lógicas do mercado (qualidade total). (BUENO, 2003)
Por este viés, o termo qualidade é alinhado aos mecanismos do processo produtivo, sendo considerada uma educação de qualidade aquela capaz de desenvolver habilidades, competências e conteúdos básicos em prol do trabalho na sociedade capitalista, intensificando o processo formativo do indivíduo para a manutenção e perpetuação do sistema vigente. (RIBEIRO, 2008)
Neste sentido, a concepção de qualidade educacional é caracterizada pelos parâmetros de eficácia, eficiência, produtividade e competitividade, sendo as avaliações em larga escala, por meio de testes quantitativos, instrumentos utilizados para mensurá-la. Portanto, têm-se como referência de qualidade somente os indicadores quantitativos baseados na proficiência em Língua Portuguesa e Matemática e o fluxo escolar dos estudantes.
Deste modo, difunde-se uma noção reducionista e mercadológica de qualidade, assentada, sobretudo, na quantificação de resultados e associada ao cumprimento de metas, preterindo outros determinantes da qualidade educacional detentores de pertinência social. (FILIPE; BERTAGNA, 2017)
Alinhadas às políticas de reformas que vinham sendo propostas em âmbito federal, no período do governo FHC, ocorreram também mudanças nas políticas educacionais estabelecidas no estado de São Paulo, cujo governador era Mário Covas, do PSDB, que teve o primeiro mandato entre 1995 e 1998 e, posteriormente, o segundo mandato entre 1999 e 2001, ano em que veio a falecer, sendo sucedido por Geraldo Alckmin, do mesmo partido.
Durante os mandatos de Mário Covas, a concepção e implementação da reforma no setor educacional estiveram sob o comando da Secretária Estadual da Educação Tereza Roserlei Neubauer da Silva, período no qual se projetaram as mudanças mais profundas na organização, gestão e ensino das escolas pertencentes à rede pública estadual paulista.
Dentre as modificações ocorridas no estado de São Paulo frente à reforma educacional promovida durante o governo de Mário Covas, sobressaíram-se: a) o enxugamento da máquina estatal e a redefinição das suas funções; b) a adoção da administração pública gerencial; c) a desconcentração e descentralização do financiamento e da gestão educacional, implicando na transferência de recursos financeiros para as escolas e na municipalização do ensino, ao mesmo tempo em que o Estado concentra as decisões estratégicas; d) a delegação de autonomia financeira, administrativa e pedagógica para as escolas, possibilitando tomadas de decisão frente aos seus projetos pedagógicos, embora tenham como contrapartida a responsabilidade pelo rendimento dos estudantes; e) a implementação do SARESP, considerado um eixo indispensável nas políticas educacionais, na medida em que auxilia na integração das ações escolares (controle pedagógico) e no alcance da qualidade da educação, nos moldes neoliberais, além de servir como norte para as reformas do ensino; f) o estabelecimento de parcerias com o setor privado e o terceiro setor, ampliando os recursos, a participação da sociedade civil no financiamento e gestão da escola pública, transferindo a responsabilidade do Estado com relação à execução dos serviços educacionais a estas instâncias sociais; dentre outras. (RIBEIRO, 2008)
Nesta conjuntura, destacamos a implementação do SARESP por meio da Resolução SE nº27, de 29 de março de 1996 (SÃO PAULO, 1996), e mediante a iniciativa da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo (SEE/SP), tendo em vista a ineficácia do sistema escolar, como corroborado nas elevadas taxas de repetência e evasão, devido à presumida má qualidade do ensino oferecido.
Esse sistema de avaliação tem por finalidade a obtenção de dados e evidências sobre o sistema de ensino da rede pública estadual paulista, partindo do rendimento escolar dos alunos nos níveis fundamental e médio, a fim de subsidiar intervenções de ordem política e técnico-pedagógicas no setor educacional para a melhoria da qualidade do ensino, orientada por uma perspectiva de qualidade total, segundo Ribeiro (2008).
Desde a sua implementação, vem sendo realizado anualmente, exceto em 1999 e 2006, ocorrendo modificações praticamente em todos os anos e tendo como base para a sua estruturação as Matrizes de Referência para a Avaliação, as Diretrizes e Parâmetros Curriculares Nacionais e a Proposta Curricular do Estado de São Paulo. Atualmente, são avaliadas obrigatoriamente as escolas estaduais, podendo abranger as redes municipais, particulares, do Centro de Educação Tecnológica “Paula Souza” (CEETEPS), do Serviço Social da Indústria (SESI) e as demais escolas estaduais não administradas pela SEE/SP, conforme a adesão e desde que assumam os custos, com exceção de 2001 e 2002, quando só foram avaliadas as escolas estaduais.
A consulta aos documentos referentes ao SARESP nos sítios eletrônicos relativos às suas diferentes edições evidenciou que desde o ano de 2015 abrange estudantes matriculados nos 3º, 5º, 7º e 9º anos do Ensino Fundamental e no 3º ano do Ensino Médio, por meio da aplicação de provas de Língua Portuguesa e Matemática. Também são aplicados questionários contextuais aos estudantes e suas respectivas famílias, aos professores das disciplinas mencionadas e à equipe gestora, por intermédio dos quais é possível coletar informações sobre os perfis dos estudantes e dos responsáveis pela gestão escolar, bem como aferir os fatores intra e extraescolares que interferem no desempenho destes estudantes. (RIBEIRO, 2008)
Deste modo, segundo os documentos da SEE/SP, cria-se um diagnóstico da situação de aprendizagem da rede pública estadual de ensino paulista, ao passo em que se tornam visíveis as maiores dificuldades dos estudantes e os fatores que interferem em seus rendimentos. A partir disso, são empreendidas ações visando à melhoria da qualidade do ensino oferecido.
No entanto, partimos do entendimento do SARESP como ação política planejada de um Estado pautado em ideias neoliberais, cujo interesse consiste na padronização e controle do processo de ensino por meio da ênfase nos resultados, para que este esteja alinhado aos pressupostos definidos por uma dada ideologia materializada pelas intervenções das agências internacionais de financiamento, em favor do mercado e da manutenção do sistema capitalista. (RIBEIRO, 2008)
Segundo Alcantara (2010), o funcionamento dessa lógica de controle é mantido através da comparação das escolas por meio de rankings definidos com base no cálculo do Índice de Desenvolvimento da Educação do Estado de São Paulo (IDESP), cuja composição considera as variáveis de desempenho e fluxo escolar, por intermédio do qual se definem as metas de curto e longo prazo dirigidas às escolas e atreladas a incentivos na remuneração dos profissionais da educação (política de bonificação).
Ainda, como apontado por Lammoglia e Bicudo (2014), ocorre a responsabilização unilateral da comunidade escolar por parte do poder público, tendo em vista alavancar esse índice, em detrimento de melhorias produzidas de forma conjunta. Destarte, a pressão pelo progresso recai sobre as escolas, desconsiderando a realidade histórico-social que contextualiza o trabalho pedagógico desenvolvido.
Considerando o protagonismo do SARESP na política educacional paulista e sua permanência durante um percurso de 22 anos, no presente artigo, apresentaremos os resultados do mapeamento da produção científica brasileira (dissertações e teses) a respeito do SARESP (1996 a 2016), bem como as possíveis relações entre essa avaliação e as formas de privatização que permeiam o cenário educacional.
Procedimentos metodológicos
Com o intuito de realizarmos o mapeamento e a análise da produção científica acerca do SARESP, desenvolvemos uma pesquisa de natureza qualitativa, sendo que dentro do escopo de metodologias atreladas a este tipo de abordagem optamos pela efetivação de um levantamento bibliográfico.
A busca foi realizada abrangendo dois níveis: a) Nacional: por meio do banco de teses e dissertações da CAPES; b) Estadual: por meio das bases de dados de três universidades estaduais paulistas (USP, UNESP e UNICAMP), em ambos os casos considerando o período de 1996 a 2016. Utilizamos como critério para o levantamento dos trabalhos a presença dos descritores ‘Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São Paulo’, ‘SARESP’, ‘avaliação externa’ ou ‘avaliação em larga escala’ em todos os campos disponíveis, tais como o título, as palavras-chave e o assunto, para ampliar a nossa busca.
Ao realizarmos este levantamento, foi possível verificar que no banco de dados da CAPES aparecem 724 dissertações e teses, enquanto nos catálogos das referidas universidades públicas paulistas foram disponibilizados: a) 42 trabalhos pela USP; b) 70 trabalhos pela UNESP; c) 197 trabalhos pela UNICAMP.
Posteriormente, iniciamos um processo de depuração e triagem a fim de compor o escopo teórico da pesquisa, o que foi feito a partir da leitura dos resumos e, quando necessário, consultando os trabalhos na íntegra. Deste modo, selecionamos os estudos que abordam o SARESP de forma específica, os que tratam das avaliações em larga escala de um modo geral, mas com foco no estado de São Paulo, e que se encontram disponíveis online na íntegra.
Com base nestes critérios, foram selecionados para o presente artigo: a) 80 trabalhos na base de dados da CAPES; b) 7 trabalhos na base de dados da USP; c) 20 trabalhos na base de dados da UNESP; d) 6 trabalhos na base de dados da UNICAMP. Destes, 65 são dissertações de mestrado acadêmico, 7 são dissertações de mestrado profissional e 9 são teses de doutorado.
A seguir, exibiremos uma síntese elaborada a partir de dissertações e teses selecionadas pela relação que possuem com os desdobramentos do SARESP na prática de docentes dos anos iniciais do ensino fundamental.
SARESP: da padronização curricular à homogeneização das aprendizagens
Um dos aspectos destacados nos trabalhos analisados diz respeito à incidência do SARESP nos momentos de planejamento e replanejamento do trabalho pedagógico. Nestas ocasiões, bem como nas Aulas de Trabalho Pedagógico Coletivo (ATPCs), os professores e a equipe gestora empenham-se na busca por estratégias para atingir as metas estabelecidas pela SEE/SP. Usufrui-se dos resultados do SARESP objetivando identificar as habilidades nas quais os estudantes demonstraram dificuldades para desenvolver um trabalho pedagógico com o intuito de superá-las, almejando resultados mais elevados (ARCAS, 2009; FERNANDES, 2015; MARTINS, 2015; MELLO, 2014; PEIXOTO, 2011). Nesse sentido, é importante sublinhar que o trabalho pedagógico realizado para superar as dificuldades constatadas é com vistas à avaliação em larga escala abordada. Deste modo, o foco deixa de estar na formação humana ampliada dos estudantes e concentra-se no alcance de índices.
Mello (2014), ao abordar o planejamento e o replanejamento na escola, salientou o fato de que nestas oportunidades não se discutem os fins da educação, as questões políticas e sociais que estão em seu bojo, mas sim as metodologias de ensino que possam favorecer o atendimento às demandas exigidas pelas avaliações externas.
Nessa mesma direção, Arcas (2009) identificou o uso de diferentes metodologias de ensino e o incentivo ao trabalho pedagógico no que diz respeito aos conteúdos avaliados no teste, o que foi motivado pelos resultados insatisfatórios obtidos pelas escolas e por sua associação com o bônus, os ranqueamentos das unidades escolares e a imagem dos profissionais que é disseminada para a sociedade.
Diante de um contexto de submissão às demandas do SARESP, os professores e a equipe gestora acabam, frequentemente, abrindo mão das especificidades, expectativas e necessidades dos estudantes ao organizarem o planejamento escolar, pois o que deve ser priorizado, do ponto de vista dos órgãos centrais, encontra-se descrito nos documentos oficiais que regularizam o ensino, fortemente marcados por um reducionismo dos conteúdos e voltados ao atingimento de metas. (BALSAMO, 2014)
Em vista do exposto, é possível observar que quando os professores e a equipe gestora reúnem-se com a finalidade de planejar o trabalho pedagógico, os objetivos e os conteúdos educacionais já foram determinados anteriormente. Neste sentido, entendemos que se perde a oportunidade de, no planejamento e replanejamento, problematizar as concepções de educação e práticas escolares, fortalecer o trabalho da equipe escolar, colocar as demandas e necessidades dos estudantes e ainda fomentar a mobilização da equipe para exercitar o protagonismo na elaboração e execução do trabalho pedagógico, expresso no Projeto Político-Pedagógico (PPP).
Estudos sobre os quais nos debruçamos (ARCAS, 2009; COLA, 2015; COSSO, 2013; FERNANDES, 2015; MARTINS, 2015; MELLO, 2014; PEIXOTO, 2011) também demonstraram que a organização curricular das escolas públicas estaduais paulistas está fortemente relacionada e expressa no Currículo Oficial do Estado de São Paulo e, portanto, focaliza determinados conteúdos, competências e habilidades presentes nas matrizes de referência do SARESP, em detrimento de uma proposta de formação humana ampliada.
Diante disso, depreendemos que o SARESP converteu-se em indutor do currículo escolar, delimitando e padronizando o ensino na rede pública estadual paulista. Esta tendência revelada nos trabalhos sinaliza a possibilidade da introdução de materiais e/ou estratégias do setor empresarial (privatista) no trabalho escolar. (BERTAGNA; BORGHI, 2011)
Conforme assinalado por Peixoto (2011), o cenário explicitado decorre da pressão para que se atinjam índices mais elevados, materializada na forma como os resultados são divulgados, por meio de relatórios de desempenho, boletins públicos e estabelecimento de rankings enfatizados pela mídia, difundindo uma representação negativa da escola que não cumpre as metas estipuladas, bem como atrelados às políticas de responsabilização, que acabam por resultar em consequências materiais e simbólicas para as escolas.
Destarte, induz-se o engessamento do trabalho pedagógico e os professores acabam direcionando suas práticas ao teste: preparam aulas pautadas nos conteúdos que serão exigidos, fazendo uso recorrente de exercícios de edições anteriores do SARESP, como forma de treinamento para esse processo avaliativo. (BALSAMO, 2014; COSSO, 2013; MARTINS, 2015; MELLO, 2014; PEIXOTO, 2011)
No entanto, é preciso destacar que os resultados obtidos por meio da prática do treinamento podem indicar somente que os estudantes memorizaram os exercícios apresentados previamente, não constituindo uma aprendizagem significativa e efetiva.
Constatamos ainda que os conteúdos dos componentes curriculares Língua Portuguesa e Matemática acabam sendo enfatizados em sala de aula, almejando-se um desempenho satisfatório no teste. Ao mesmo tempo, os conteúdos referentes às áreas de História, Geografia e Ciências, não mais exigidos nas últimas edições do SARESP, são colocados em segundo plano, resultando no estreitamento curricular (COLA, 2015; COSSO, 2013; MELLO, 2014). Evidentemente, os conteúdos focalizados são importantes para a formação dos estudantes, porém não são suficientes quando o que se almeja é uma formação humana ampliada.
A limitação da autonomia dos professores em sala de aula foi outro aspecto enfatizado de modo recorrente nos estudos analisados. Nesse sentido, averiguamos que os professores podem trabalhar o que desejam com os estudantes, desde que atendam ao solicitado e exigido no SARESP. (BALSAMO, 2014; MELLO, 2014)
Em face destas evidências, inferimos que apesar de no discurso oficial os professores disporem de autonomia em relação às suas práticas pedagógicas, não se pode desconsiderar o contexto mais amplo sob o qual essas práticas se assentam e que, ao final, serão cobrados resultados dos professores e estudantes, tanto pelos gestores das escolas quanto dos órgãos centrais.
Cabe ressaltarmos que assegurar a aprendizagem dos conteúdos mínimos sistematizados nas matrizes de referência do SARESP não é uma tarefa simples, sobretudo, em razão das condições de trabalho na rede pública estadual de ensino paulista, as quais dificultam sobremaneira a garantia de condições para um ensino de qualidade. Ademais, de acordo com Cola (2015) e Peixoto (2011), muitos estudantes não aprendem no ritmo previsto nos materiais didáticos disponibilizados pela SEE/SP, do Programa Ler e Escrever e do Projeto Educação Matemática nos Anos Iniciais (EMAI), mas os professores costumam avançar no ensino dos conteúdos exigidos no SARESP, principalmente, próximo às datas previamente estabelecidas para o mesmo, independentemente do andamento do trabalho pedagógico, impondo um ritmo único de aprendizagem aos estudantes.
As veias abertas pelo SARESP: lapidando práticas avaliativas e forjando uma ‘qualidade educacional’
Nas pesquisas que analisamos, identificamos também que o SARESP tem incidido sobre as práticas avaliativas desenvolvidas nas escolas. É importante salientarmos que as alterações indicadas se referem, particularmente, a um dos instrumentos avaliativos utilizados: a prova escrita. Todavia, pouco se avançou em relação à concepção de avaliação que embasa essas práticas ou ainda no que concerne à função que a avaliação historicamente exerceu no contexto escolar.
Verificamos que as provas escritas são os principais instrumentos utilizados para avaliar os estudantes nos diferentes componentes curriculares. No caso de Língua Portuguesa e Matemática, estas provas costumam ser elaboradas tendo como parâmetro os testes de proficiência do SARESP, evidenciando sua centralidade no trabalho pedagógico desenvolvido na rede pública estadual de ensino paulista.
Nesse sentido, sobressaíram-se: a semelhança entre os conteúdos dessas provas com os exigidos no SARESP, ocorrendo, inclusive, o emprego de questões de edições anteriores, sendo estas, eventualmente, transformadas em questões dissertativas; a reprodução do formato do teste, incluindo o tipo de questão e a extensão; a adoção dos mesmos procedimentos de aplicação, tais como: a maneira de conduzir a organização do tempo, o preenchimento de gabaritos e a troca de professores entre as turmas.
Ressaltamos que nos trabalhos analisados foi assinalada a prática de simulados nas realidades investigadas, como forma de treinamento para a prova oficial, ocorrendo variações na frequência em que acontecem e nas turmas avaliadas, pois em alguns casos a aplicação se dirigiu somente às turmas abrangidas no SARESP, enquanto em outros contemplou também as demais turmas. Por meio desse treinamento, os estudantes foram orientados em relação a como se respondem as questões, como se preenche o gabarito, como proceder em caso de dúvida na escolha das alternativas e como lidar com o tempo de duração da prova, familiarizando-se com esse instrumento de avaliação.
Ademais, os simulados são utilizados para identificar as dificuldades dos estudantes e procurar saná-las, de forma a possibilitar a melhoria da aprendizagem na medida em que auxiliam na reorientação e adequação das atividades de ensino, embora tendo como preocupação principal o exame oficial. Em contrapartida, Cola (2015) alertou sobre um dos riscos quando as práticas avaliativas se voltam de modo constante ao treinamento para o SARESP, salientando que desta maneira pode-se comprometer a diversidade de instrumentos utilizados na avaliação da aprendizagem.
Segundo Arcas (2009), as provas têm se apresentado como instrumentos que orientam os estudantes a responderem os testes de proficiência e, no que se refere aos professores, se o que se propuseram a desenvolver está sendo alcançado, deixando de servir somente para a atribuição de notas e decisão sobre a promoção ou reprovação dos estudantes, fortalecendo a cultura de atingimento de metas, como no modelo gerencial.
De acordo com Arcas (2009), o SARESP, ao servir de parâmetro para as práticas avaliativas na escola, acaba reforçando o modelo de avaliação pautado numa concepção de ensino-aprendizagem tradicional, no âmago do qual se valoriza a transmissão e memorização de conhecimentos, inibindo uma proposta de avaliação formativa, voltada para a emancipação humana. Isto porque se estimula a aplicação de provas, exames e simulados objetivando treinar os estudantes para a avaliação em pauta e suas rotinas específicas, e, ao mesmo tempo em que se enfatiza a busca de índices satisfatórios, não significa que o objetivo do trabalho pedagógico esteja voltado para a aprendizagem destes estudantes.
Os processos de recuperação e reforço escolar em articulação com o SARESP foram citados por autores como Arcas (2009) e Fernandes (2015). Nesse sentido, inferimos que com base no diagnóstico proporcionado pelas provas, exames e simulados verifica-se quais estudantes necessitam desses tipos de encaminhamentos.
Fernandes (2015), ao discorrer sobre as ações de recuperação e reforço escolar, pontuou que no contexto investigado estas se deram contando com a colaboração de parcerias com o setor privado, referindo-se ao Instituto de Qualidade de Ensino (IQE), uma associação da sociedade civil sem fins lucrativos, mantida por empresas privadas, e ao Mathema, uma instituição que pesquisa e desenvolve métodos pedagógicos direcionados ao ensino da Matemática, ambas tendo como finalidade a melhoria da qualidade do ensino. Dentre as atuações das parcerias, foram elencadas: o financiamento da elaboração e aplicação de testes padronizados; o financiamento de ações de formação continuada para os docentes; o auxílio para o cumprimento de metas.
Em vista do exposto, evidencia-se a abertura para a entrada do setor privado na educação pública por meio de lógicas inerentes às avaliações externas (competitividade, individualismo, desempenho e metas), bem como do direcionamento de recursos para tal setor, em função do alcance de metas estabelecidas mediante o desempenho dos estudantes em testes de proficiência como o SARESP.
Considerações finais
Os autores estudados demonstram que o SARESP foi se engendrando progressiva e acentuadamente no contexto escolar, “[...] influenciando práticas, definindo metas, estabelecendo rumos, orientando o trabalho pedagógico”. (ARCAS, 2009, p. 152)
Urge considerar ainda que essa política, do modo como tem sido efetivada, propicia o desmonte do sistema público de ensino, na medida em que repercute na qualidade e credibilidade social das escolas ligadas a esse sistema educativo e impulsiona a adoção da lógica de gestão privada nas unidades de ensino, conduzindo à privatização. (FREITAS, 2012)
Nesse sentido, tem-se a clareza de que essa lógica de controle, imposição de metas, uso de incentivos e comparações, por meio do ranqueamento das escolas, configuram-nas como empresas e, segundo Ball e Youdell (2008), podemos considerar como uma forma de privatização do setor público. Isto porque, para esses autores, existem duas formas de privatização da educação pública: a endógena e a exógena.
A primeira (endógena) consiste na “[...] importación de ideas, métodos y práticas del sector privado a fin de hacer que el sector público se asemeje cada vez más a uma empresa y sea tan eficiente como una empresa”. Em alternativa, a segunda (exógena) aparece caracterizada pela “[...] apertura de los servicios de educación pública a la participación del sector privado [...]”, quase sempre com benefício econômico, “[...] y la utilización del sector privado em cuanto a la concepción, la gestión o la provisión de diferentes aspectos de la educación pública”. (BALL; YOUDELL, 2008, p.8)
Os mesmos autores assinalam que a privatização endógena prepara um caminho para a privatização exógena, pois a introdução das ideias, métodos e práticas do setor privado torna o ambiente mais dócil para que se produza uma privatização de maior alcance e com maior participação do setor privado.
No mais, não podemos nos desviar do fato de que a responsabilização e a meritocracia são pilares fundamentais para a privatização do sistema público de ensino, tanto do processo educativo quanto da gestão das escolas, na medida em que também visam criar a ambiência necessária para o alcance dessa condição. (FREITAS, 2012)
Em face desses apontamentos, destacamos que os processos de privatização estão avançando de forma significativa no campo da educação pública e guardam relação com as políticas de avaliação externa que permeiam esse contexto.
O campo precisa, portanto, ser disputado em diversos âmbitos, tais como na micropolítica da escola e no campo teórico que perpassa pela qualidade que referencia a educação pública, balizando as ações no âmbito escolar.
Não temos a intenção de esgotar o assunto, mas sim de impulsionar novos estudos em torno da temática, tendo em vista que há muito a ser explorado. Existem outras formas de privatização sendo inseridas na escola, na maioria das vezes, de forma encoberta e estas não podem passar despercebidas pela ameaça que representam ao irrefutável direito à educação de todos os cidadãos e à democracia. (FREITAS, 2012)
RESUMO
Main Text
Percorrendo caminhos que subsidiaram o SARESP na política educacional paulista
Procedimentos metodológicos
SARESP: da padronização curricular à homogeneização das aprendizagens
As veias abertas pelo SARESP: lapidando práticas avaliativas e forjando uma ‘qualidade educacional’
Considerações finais