Fri, 30 Sep 2022 in RPGE – Revista on line de Política e Gestão Educacional
NARRATIVAS LITERÁRIAS DESBOCADAS: INSPIRAÇÕES PARA (DES)FAZERES EDUCATIVOS E METODOLOGIAS QUEER
RESUMO:
No presente texto buscamos refletir sobre as potencialidades que narrativas literárias que abordam as dissidências de gênero e sexualidades podem trazer para a educação e para os currículos. Narrativas desbocadas, transviadas, sapatonas, estranhas, queer, obras de literatura que encantam e (des)encantam ao fazerem circular pelos imaginários de crianças e jovens, personagens plurais. Estabelecemos um paralelo entre um ‘mundo real’, esse no qual vivemos, atravessado por polarizações no campo político, por regulações e censuras no campo das artes e da educação e um ‘mundo imaginado’, um cenário aberto às possibilidades de ser, estar e sentir a vida, para além das imposições da cisheteronorma patriarcal e colonial. Nessa jornada, dialogamos com as produções teóricas advindas dos estudos feministas e queer em interface com a educação e apostamos nas alianças com essas personagens dissidentes para inspirar (des)fazeres educativos.
Main Text
(Des)fazeres educativos
Trazer para junto de nós e de nossos trabalhos a literatura e, mais especificamente, a literatura pensada para dialogar com as infâncias e adolescências, tem sido uma das inspirações e motivações para pensarmos as experiências educativas e as práticas curriculares embasadas em uma metodologia educativa queer. A pensadora Val Flores (2018) ao se implicar no que ela chama de pedagogia transtornada, ou metodologia queer, propõe uma forma de fazer pedagógico que interconecta “[...] de manera singular cuerpos, saberes, espacios, afectos, deseos, memorias, erotismos, sensibilidades, escrituras” (FLORES, 2018, p. 143). flores desenvolve seu pensamento político e pedagógico de maneira independente, numa espécie de “vagabundear queer”, como ela mesma nomeia. Uma vez que não tem suas práticas e produções teóricas vinculadas a uma instituição específica, ela não nos propõe, como estamos acostumadas na acadêmica, uma teoria de como fazer algo, um passo a passo de como aplicar um método, mais do que isso, seu trabalho se propõe a um “(des)hacer educativo” (FLORES, 2018, p. 146) que, nas atividades e oficinas que ela desenvolve, tem como proposta um fazer/pensar/escrever juntas, um processo de criação coletivo.
Essa ideia de feitura coletiva, em alguma medida, se contrapõe aos modos de fazeres acadêmicos que se baseiam em uma concepção de autoria mais individualizada. Também promove um deslocamento para além da verdade de que existiriam lugares mais legítimos para a produção de conhecimento; deixamos de lado essa forma de pensar para investirmos em uma amplitude de espaços, sujeites, fazeres, territórios que atuam na ampliação e criação de formas de vida. Com isso, estamos defendendo que o conhecimento, as formas de fazer, ou até mesmo um método educativo queer não podem ser apresentados como roteiro ou passo a passo e distribuídos para todes interessadas replicarem. Pensar uma metodologia educativa queer teria mais a ver com algo inacabado, algo que se dá nos (des)fazeres educativos do dia a dia, em nossos encontros, em nossas aulas, nas reuniões de docentes, nas coletivas, nas ruas, no trato com parentes num encontro de domingo e também nos conflitos advindos desses encontros. Tem a ver também com uma ética que prevê a ruptura dos silêncios que atuam cotidianamente na manutenção da norma ocultando inúmeras violências. Não há, necessariamente, um caminho único a ser ofertado, porque pode acontecer como um atalho, uma brecha, a partir de um bobear da norma hegemônica, se ela der uma bobeada a gente chega montada de princesa, ou de monstra maquiada, ou de borboleta transviada. É um pouco isso. Personagens dissidentes nos levam a percursos diferentes. Não se trata de acreditar que do encontro com essas personagens nascerá, magicamente, um novo mundo, mas de apostar nelas como parceiras desse fazer juntos, desse (des)fazer educativo cotidiano.
No presente texto, convidamos vocês a imaginarem conosco possibilidades de espaços de fuga frente às normatizações de gênero e sexualidades. Para tanto, acionamos histórias infantis, produções literárias que apresentam narrativas e personagens de destoam da norma, textos desbocados, produções artivistas que, de alguma maneira, contribuem na luta pela vida e preservação das singularidades em contraponto às forças que lutam pela preservação da sociedade cisheteropatriarcal e colonial. São muitas e diferentes forças em atuação, não acreditamos que estejamos diante de um binário bom e mau, mais do que isso, vivemos em meio às disputas, e nesses entremeios, encontramos lugares nos quais os respingos ou as enxurradas das vidas dissidentes podem emergir, irromper, florescer, sobreviver e se recriar.
Compreendemos a literatura como um artefato importante nos processos de produções de sentidos, uma vez que ela atua política e culturalmente e está situada social e historicamente. As personagens das histórias falam sobre nós, falam sobre modos de ser, estar, viver e, portanto, performar gêneros e sexualidades. Exatamente por isso abrem caminhos para a invenção de outros imaginários políticos e sociais no campo da educação e dos estudos de gênero e sexualidades. Também compreendemos esses escritos como produções artivistas, produções artísticas que, a partir de um engajamento político, questionam as formas hegemônicas de organizações e relações sociais e buscam criar outros espaços de compartilhamentos e difusão de conhecimentos (COLLING, 2018; LESSA, 2015; RAPOSO, 2015). Como aponta Raposo (2015, p. 5) “[...] a sua natureza estética e simbólica amplifica, sensibiliza, reflete e interroga temas e situações num dado contexto histórico e social, visando a mudança ou a resistência”.
Crianças viadas, malditas, inocentes
(Cena 1). Fevereiro de 2014. Alex, 8 anos, caminhava e andava solto pela casa, gostava de brincar com maquiagens, gostava de lavar a louça, era um menino muito delicado, diziam...Alex tinha viajado do Rio Grande do Norte para o Rio de Janeiro para viver com o pai, um de seus sonhos era conhecê-lo, saber se eram parecidos. Alex brincava, corria, pulava. Alex lavava a louça. Alex era uma criança de 8 anos. Alex era um menino muito delicado, diziam…
(Cena 2). Janeiro de 2021. Keron caminhava pelas ruas como quem flutuava, como quem partilhava sonhos com vizinhos imaginários. Ela imaginava mundos. No mundo fictício imaginado por ela, não havia espaço para o ódio, ela não era vista a partir de uma única e limitada lente. Nesse mundo multicolor, ela performava feminilidades plurais ao som de Anitta e Pabllo Vittar. Quicava alegremente, embalada pelas batidas do som e pelo movimento leve do sorriso. Tímida nas cenas do mundo, sonhava, assim como muites jovens sonham, em ser influenciadora digital. Keron sonhava.
A Cena 2 é parcialmente fictícia, criação livre feita por nós em memória de Keron Ravach, uma adolescente trans de 13 anos, assassinada em janeiro de 2021 em uma cidade do interior do Ceará. No mês da visibilidade trans, Keron se tornou a mais jovem trans nas estatísticas de assassinatos do Brasil. Aos 13 anos, vivia o início de seu processo de transição, o início de sua travessia subitamente interrompida. 17 anos. Essa era a idade do jovem identificado como responsável pela morte de Keron. Duas vidas cujas rotas seguiram sentidos outros ou deixaram de seguir seu curso. Travessias interrompidas. Nesse caso, o preceito de que haveria uma retaguarda institucional e legal, seja de dimensão estatal ou não, que minimamente protegesse us sujeites, e lhes assegurasse direitos básicos como o de ir e vir e seguirem vivos, cai por terra, sucumbe perante o conjunto de normas impostas pelo regime da diferença sexual (PRECIADO, 2020b).
A Cena 1 foi escrita em memória de Alex, um menino de 8 anos morto após ser espancado pelo pai. A criança viajou do Rio Grande do Norte para o Rio de Janeiro para viver com ele em 2013. A mãe, que vivenciava sua quarta gestação, pediu ao pai que cuidasse do filho por um tempo até que ela se estabilizasse novamente e pudesse levá-lo de volta. Alexandre Soeiro admitiu que batia no filho cotidianamente. De acordo com ele, “era para ensiná-lo a ser homem”. O menino era “acusado” de ser muito afeminado, por isso apanhava. Um crime brutal. Uma narrativa bastante difícil de ser escrita e uma história que reaviva muita dor ao ser contada.
As duas cenas, como já mencionado acima, expõem o quão violento é o aparato de normas impostas pelo regime da diferença sexual frente às dissidências de gênero e sexualidades. Por regime da diferença sexual, a partir do diálogo com o pensamento do filósofo Paul B. Preciado (2020b), compreendemos esse conjunto de normas e regras sociais e epistemológicas de doutrinação dos corpos vivos dentro dos limites da binariedade ou, como metaforicamente sugere o autor, dentro da jaula da binariedade. Falamos de um conjunto de representações que, principalmente ao longo do século XIX, vêm agindo e definindo aquilo que é tomado como legítimo/verdadeiro ou falso. O regime da diferença sexual aparece também como uma epistemologia, baseada nos preceitos e códigos sociais binários que dividem o mundo dos viventes entre masculino e feminino (no singular mesmo). Para Preciado (2020b) este regime entra em crise a partir do momento em que os corpos e existências dissidentes passam a existir e reivindicar status de humanos. Viveríamos, portanto, em uma espécie de contexto de colapso de um regime político-social-epistemológico patriarcal-colonial que, como sugere Deborah Britzman, luta para assegurar “[...] la estabilidad y la base fundamentalista de categorías como masculinidad, feminidad, sexualidad, ciudadanía, nación, cultura, alfabetismo, consentimento, legalidade”, dentre outras categorias que são importantes para a sua manutenção (BRITZMAN, 2018, p. 11).
Ao desafiar os binarismos, ao ousar mirar bonitezas para além das regulações impostas pela norma, algumas subjetividades são apagadas, retiradas da cena pública, eliminadas. Esses processos reguladores do gênero são, portanto, todos esses aparatos, as leis, normativas, regras sociais e políticas públicas oficiais que vão tentar garantir que todas as pessoas estejam na norma. Toda essa série de códigos vai assegurar que homens sejam homens e mulheres sejam mulheres, dentro daquilo que é esperado. Atuarão nesse processo de regulação, instituições e campos de conhecimentos variados: a pedagogia, a escola, a medicina/psiquiatria, a psicologia, os setores militares, as famílias etc. (BUTLER, 2014).
Essa possível crise do sistema da diferença sexual apontada por Preciado (2020b) pode ser facilmente compreendida quando analisamos o nosso contexto social e político atual. Nos últimos anos, gênero e sexualidades vêm ocupando a cena pública, têm feito parte dos discursos no contexto dos espaços oficiais de decisões políticas como Câmaras Municipais, Congresso Nacional, Conselhos, Ministérios. O atual governo, eleito em 2018, se apropriou do conceito de gênero e o deturpou e criminalizou a fim de fortalecer suas pautas conservadoras e angariar mais eleitores. No campo das artes, acompanhamos uma sequência de movimentos de censura que atuaram no sentido de proibir e impedir que produções dissidentes aparecessem, como exemplo dessas investidas podemos citar o fechamento da exposição Queermuseu em 2017 na cidade de Porto Alegre; a exposição foi fechada após a disseminação de notícias falsas que diziam que algumas obras do catálogo faziam apologia à zoofilia e pedofilia. Além disso, no cenário da educação, acompanhamos uma série de movimentos que levaram à retirada do termo gênero do Plano Nacional de Educação aprovado em 2014. Temos sido testemunhas do efeito que essas investidas e políticas antigênero tiveram e têm em nossas vidas cotidianas.
Umas das principais estratégias dos setores mais conservadores tem sido a afirmação de defesa de crianças e da família (tradicional) como argumento para legitimar suas investidas em favor da norma e, em casos mais extremos, como justificativas para as sentenças e execuções das pessoas dissidentes. Como apontam Souza, Salgado e Mattos (2022, p. 4):
A infância, como temporalidade da vida humana e categoria histórica que demarca e diferencia a existência social das crianças, aparece e funciona, no auge da modernidade do Ocidente, a partir do século XVII, como um dos mais importantes dispositivos de poder dessa sociedade. Com o expurgo da sexualidade dos corpos infantis e das relações das crianças com o mundo, a inocência consagra-se como uma pedra angular que sela o nascimento da infância nas sociedades modernas ocidentais.
Nesse contexto, portanto, a possível inocência das crianças é apresentada como algo que estaria sob ameaça. E no jogo binário de ser ou não ser (homem/mulher, heterossexual/homossexual etc.), as pessoas autodenominadas “de bem” têm se baseado na “[...] vantagem de a criança não ser considerada capaz de rebelar-se politicamente contra o discurso dos adultos”, para garantir a manutenção do governo sobre elas, seja por meio das ações do Estado, das família ou das igrejas (PRECIADO, 2019, p. 70). Destituídas de qualquer direito sobre si e sobre seus corpos, raramente é dada às crianças a chance de falarem sobre si, sobre seus corpos, seus sentimentos, suas percepções, seus desejos. Na maioria das vezes, “a criança é dita [ou maldita] pelo adulto”, (SOUZA; SALGADO; MATTOS, 2022, p. 6, grifo nosso).
Preciado problematiza o papel do Estado na garantia das condições de exercício da cidadania e proteção dus sujeites (DELUCA; PASSOS, 2021); para o autor, muitas vezes, quando o Estado se apresenta como nosso defensor, ele pode estar nos oprimindo e violentando. As Cenas 1 e 2, apresentadas no início, falam sobre isso, sobre a incapacidade dos aparelhos institucionais do regime da diferença sexual binário, de cumprirem preceitos constitucionais de defesa da vida. Nas palavras de Preciado “[...] viver além da lei patriarco-colonial, viver fora da lei da diferença sexual, viver fora da violência sexual e de gênero” deveria ser um direito assegurado a qualquer pessoa, mas isso não está previsto nas leis de sobrevivência do heteropatricarcado colonial (PRECIADO, 2020b).
Desrespeitar os códigos da masculinidade cisheteropatriarcal e colonial pode ser passível de punição letal. É o que nos mostra a Cena 1. Quando nos deparamos com essa trágica notícia nos indagamos: por que uma criança tem sua vida interrompida? Por que alguém morre em decorrência do modo que anda, ou por lavar a louça, ou por não querer cortar os cabelos? Por que foi necessário para esse pai acionar a violência até seu limite máximo na tentativa de defender uma ideia de verdade sobre sujeites, corpos e subjetividades tidas como normais? Talvez porque o modelo de pedagogia normativa vigente, baseado na imposição de hierarquias identitárias, fundamentado em relações binárias, regulador e apagador dos corpos e corporeidades plurais, tenha conseguido retirar desse sujeito, o pai, qualquer possibilidade de imaginação que o permitisse avistar um mundo com uma ética baseada nas diferenças.
O aparato pedagógico que sustenta as ações de extermínio das dissidências nas duas cenas, nos leva a pensar que uma pedagogia antinormativa (FLORES, 2018), que esteja atenta as reiterações cotidianas de produção e reiteração de normas e pensamentos binários de existência e convívio, deve ser uma preocupação central em nossas práticas educativas. Quando mobilizamos a teoria queer como tecnologia para ampliar nossos olhares e sensibilidades para as cenas cotidianas, conseguimos estar mais atentas a essas movimentações reguladoras. Como aponta Britzman (2018, p. 15) “La teoría queer ofrece a la educación técnicas para dar sentido y remarcar lo que descarta o lo que no puede soportar conocer”. Para crianças e jovens dissidentes de gênero e/ou sexualidades, o contexto disciplinar da educação pode atuar como um instrumento de regulação e apagamento de singularidades, mais do que isso, as ações disciplinares cotidianas, que buscam colocar todos os corpos, desejos e estéticas nas formatações binárias já conhecidas e aceitas, podem fazer emergir vulnerabilidades; muitas vezes, a negação e o silêncio diante das diferenças, podem ser cúmplices da morte. Por mais fatal que possa soar tal afirmação, essa é uma das leituras possíveis para as cenas mobilizadas nesse diálogo.
Imaginar uma pedagogia antinormativa nos desloca para muitos campos de reflexões no cenário da educação e da vida. As problematizações que emergem no presente texto, no entanto, produzem ressonâncias diretas produção de conhecimento sobre currículo. Quando falamos em currículo buscamos por modelos que nos afastem da ideia de ensinar a ser algo, de buscar formatações e construções identitárias essencialistas. Em diálogo com Paraíso (2010, p. 602) imaginamos os currículos como territórios “[...] que desterritorializam, contagiam e provocam sensações”, que produzem e estão abertos aos acontecimentos, que não se deixem capturar totalmente pela norma, como espaços de recriações e movências constantes. Como enfatiza Ranniery (2017, p. 60), nos cabe o exercício e esforço cotidianos de tentarmos “descer o currículo ao mundo [...], suspender a determinação e não lhe roubar a multiplicidade [...]”. Ainda segundo o autor, “[...] enviar o currículo ao mundo é insistir que não se existe nele sem torcê-lo para, ao dar suporte a modos de vida, enviesá-lo, enviar-descer”. Enviar o currículo ao mundo, torcer o currículo, “[...] tornar o currículo mais desfigurado, menos sufocante e sufocado” (RANNIERY, 2017, p. 62), deixar que ele se manifeste como organismo vivo e instável, eis alguns dos compromissos que seguimos buscando estabelecer.
Infâncias purpurinadas
(Cena 3). Titiritesa sonhava explorar o mundo num cavalo azul, contrariava muito os desejos da mãe, a rainha Mandolina, que sonhava ver a filha casada. Ervilinha não queria ser casada, não queria ser princesa, desejava mesmo era seguir camponesa, cuidando de seu rebanho. No meio da travessia mesclada de realidade e sonho, uma princesa se apaixonava pela costureira e abria pequenas fissuras que ampliavam as possibilidades de ser e estar no mundo. Soninha, a Pior Princesa do Mundo, abandonava o castelo montada no dorso de seu novo amigo dragão. Na espontaneidade de quem vive o que sente, elas criavam um lugar seguro para existir. Entre os reinos de Hoje e de Anteontem, a princesa Joana se apresentava ao mundo como mulher. Viajando na companhia do burro Bufaldino, o príncipe Cinderelo encontrava possibilidades de performar uma masculinidade queer, estranha, magrela, uma masculinidade inspirada na potência do sensível que há em cada um/uma/ume de nós. Correndo livremente avistamos o pequeno Julián, Julián é uma sereia, passa por nós dançando e sorri1.
Atos e performances desobedientes. A cena acima, é um pot-pourri de histórias infantojuvenis, nela várias personagens de contos infantis se cruzam. O que há em comum entre elas é o exercício de outras performatividades de gênero. Todas elas propõem e praticam um deslocamento de lugar de existência. Em alguma medida, recusam a subjugação às normas e regulações de gênero, são desobedientes. O ato de desobedecer a política normativa hegemônica dá a elas algo potente, uma celebração das vidas em sentido plural. Obviamente que elas gozam de algo bastante significativo: liberdade. Um tipo de liberdade que só tem quem habita esse outro mundo, o da imaginação, um cenário de possibilidades e aberto à construção coletiva dos pensamentos e dos sentimentos, um espaço aberto às incertezas.
Princesas, príncipes, bruxas, dragões, monstros que tocam flautas, personagens que contam com recursos que nós, pobres mortais, não contamos. Infelizmente não podemos acionar uma fada que cai direto da chaminé para agilizar nossos desejos, infelizmente não podemos fugir e viajar pelo mundo no dorso de um dragão, não conseguimos desfazer opressões apenas no ato de desmanchar um bordado. Nosso desafio é mais complexo, porque diferente desses mundos encantados da ficção, são cheios de verdades fabricadas e endurecidas.
Em um dos contos trazidos nesse pot-pourri de histórias, a personagem central é a princesa Joana, a narrativa é de autoria da escritora Janaína Leslão. De maneira encantada, adentramos à narrativa exatamente na ocasião do nascimento do primeiro filho do rei e da rainha do Reino de IlhaAnã, a criança chega ao mundo e logo é identificada como menino devido a marca vermelha que trazia no alto da testa. Ela tinha a mesma marca que o pai e todos os meninos do Reino. A mãe e as meninas traziam uma marca marrom nas mãos. O bebê então recebeu o nome de João e, tempos depois, conforme ia se percebendo no mundo, pediu aos pais que a chamassem de Joana, era assim que ela gostaria de ser chamada, afinal, seu nome havia crescido de tamanho, assim como seu corpo. A aventura vivida por Joana Princesa é atravessada por intervenções reguladoras de sua existência; no meio do caminho ela encontra personagens que tentam a todo custo impedi-la de ser quem ela é - colegas de escola, a própria família. Mas no meio do caminho também aparecem alguns aliades como seu melhor amigo Pedro e a feiticeira Valderez. Juntes, Joana e Pedro partem em busca de um arco-íris mágico que, segundo uma lenda, teria o poder de transformar rapazes em garotas e, depois de vivenciarem muitas intempéries pelo caminho, os dois vão compreendendo as dimensões dos laços de afeto, da amizade entre eles, e vão se dando conta que Joana não precisava de nenhum ritual mágico para ser quem ela era. De acordo com a sabedoria da feiticeira Valderez, não era a existência de uma marca impressa no corpo que dizia se alguém era menino ou menina. Joana sabia quem era. Caberia ao Rei, à Rainha e a todo o povoado, acolherem Joana. E assim aconteceu. Rei e Rainha organizaram uma cerimônia e apresentaram ao povo sua filha, Joana Princesa. O desfecho do conto traz a princesa bastante segura e alegre, compartilhando sua história com toda a comunidade escolar (LESLÃO, 2016).
Diferentemente da narrativa construída pela autora de Joana Princesa, no texto Uma escola para Alan, Paul Preciado (2020a) nos conta uma história cujo final é outro. O autor problematiza e tece uma crítica à instituição escolar, instituição esta que, muitas vezes, atua como aliada no processo de doutrinação de sujeites e subjetividades. Nas palavras do autor “[...] a escola é um espaço de controle e domínio, de escrutínio, diagnóstico e sanção, que pressupõe um sujeito unitário e monolítico que deve aprender, mas não pode nem deve mudar” (PRECIADO, 2020a, p. 197). No texto, o autor traz a história de Alan, o primeiro adolescente trans a mudar de nome na Espanha, um adolescente de dezessete anos. Alan vivenciou os três anos de sua transição em alguns espaços escolares que foram cenários de opressões, violências e negação cotidiana de sua existência. Ao fim desses três anos, um dia depois do Natal, ele cometeu suicídio. Na análise de Preciado (2020a) a escola falhou ao não conseguir proteger a vida de Alan, falhou ao não se configurar como espaço seguro para ele, para o seu trânsito e, ao falhar, a instituição acabou por converter-se em cúmplice de sua morte. Quando somente acompanhamos caladas as diversas manifestações de preconceitos, opressões e violências ao nosso redor, talvez, em alguma medida, nos tornemos também cúmplices de muitas atrocidades.
Trazemos esta crítica à escola não porque acreditamos que somente ela é responsável por proteger pessoas como Karen, Alan e Alex ou porque acreditamos que somente ela seja responsável por tanta opressão. A escola é apresentada aqui como um espaço complexo, porque, ao mesmo tempo que ela se apresenta como “uma fábrica de subjetivação”, “uma fábrica de produção de identidade de gênero e sexual” (PRECIADO, 2020a, p. 196), ela poderia ser subvertida, transformada em espaço que atua em favor da valorização das diferenças, em espaço aberto ao exercício de identidades abertas, e não de identidades binárias e essencializadas. Essa escola a favor da vida que Preciado tenta imaginar, seria um espaço trans-feminista-queer. Seria um espaço que oferecesse uma prática pedagógica que atuasse como espécies de “ilhas reparadoras” que os protegessem da morte (PRECIADO, 2020a, p. 196).
Como sugere Butler (2014, p. 253):
[...] gênero é o mecanismo pelo qual as noções de masculino e feminino são produzidas e naturalizadas, mas gênero pode muito bem ser o aparato através do qual esses termos podem ser desconstruídos e desnaturalizados.
A feitura de uma pedagogia antinormativa passa pelo movimento de esperançar, assim mesmo, como verbo, como ação, mas para fazê-la acontecer, também precisamos de movência, de mobilização. Mobilizações que promovam desaprendizagens das programações de gêneros e sexualidades. Se os portões das instituições hegemônicas como a escola e alguns espaços como galerias tradicionais de artes não são facilmente abertos às personagens dissidentes de gênero e sexualidades, que possamos criar outras veredas para que elas possam se manifestar. Preciado (2020b) acredita que “[...] os processos que levam à mudança epistemológica envolvem profundas mudanças tecnológicas, sociais, visuais, sensoriais” (PRECIADO, 2020b), essas narrativas outras lançam essa possibilidade. Para o autor:
Nos próximos anos teremos que desenvolver coletivamente uma epistemologia capaz de responder pela multiplicidade radical dos vivos e que não reduza o corpo à sua força reprodutiva heterossexual, que não legitime a violência heteropatriarcal e colonial (PRECIADO, 2020b).
A literatura e as artes, de maneira geral, nos conduzem a deslocamentos, nos atravessam de maneira diferente, com elas conseguimos perceber o mundo para além dos recursos da nossa racionalidade, podemos olhar e perceber com a pele, com o sorriso, com a emoção, corazonando, como sugere Patricio Guerrero Árias (ano). Modos de existências ancorados em sentimentos como medo, repulsa, discriminação, violência, são produções do sistema sexo-gênero e, precisam ser desafiados, deslocados, desuniversalizados. Para Preciado (2019), uma transformação desse sistema somente poderia ser possível se levarmos em conta a dimensão da imaginação, a dimensão poética da existência. Essas narrativas desbocadas poderiam ser lidas como rotas possíveis nos percursos de mudanças de imaginários.
Por mais espantos e encantamentos
Recentemente acompanhando uma fala da pesquisadora Megg Rayara durante o “Seminário Infâncias e pós-colonialismo”2, nos conectamos bastante com as reflexões trazidas por ela. Rayara compartilhou fragmentos de uma entrevista realizada com uma jovem trans, na qual ela relatava as inúmeras violências sofridas na infância: aos 9 anos de idade, ela se recordava de apanhar tanto de sua mãe, que aquilo se tornava insuportável. Essa narrativa nos convidava a pensar sobre as infâncias dissidentes, sobre as infâncias que não são reconhecidas como universais, ou seja, as infâncias trans, pobres, pretas, das pessoas com deficiência, das pessoas LGBTI+ etc. Nem todas as infâncias são acolhidas e protegidas nos terrenos das famílias. Algumas delas e, especificamente as infâncias das pessoas trans, são interditadas pela violência produzida no ambiente doméstico e também fora dele. Para Rayara, nas vidas das pessoas trans, principalmente daquelas de sua geração, a infância é uma temporalidade cheia de lacunas, de interdições, de negações. Nem todo mundo tem ou teve o mesmo acesso e direito à infância.
Rayara relata que, muitas pessoas trans e travestis de sua geração, têm feito movimentos de busca pelas memórias das infâncias, têm buscado relatar, escrever e publicizar aquelas experiências e vivências muitas vezes proibidas, vetadas. Vivências que se deram nas famílias, nas escolas e naqueles bastidores de fuga dos cotidianos vigiados. Trouxemos relatos duros ao longo do texto, falamos sobre abusos, interdições, violências, morte, e o fizemos porque não nos cabe mais o silêncio. A relação entre crianças, adolescentes e adultos é permeada por hierarquias de poder que levam à negação de direitos básicos, como por exemplo, o direito de dizerem quem são. As infâncias e as adolescências são malditas pelos adultos, como já dissemos anteriormente.
Por meio das narrativas literárias mobilizadas ao longo do texto, sugerimos um alargamento da ideia de infância, uma desuniversalização, uma descolonização do conceito, da experiência. As personagens dissidentes e os recursos mágicos acionados por elas no decorrer dos enredos, nos provocam a imaginar as crianças e adolescentes como sujeitas de si, como capazes de opinar sobre quem são, sobre como se sentem e percebem. Nosso sonho é que possamos habitar um mundo sem violências e, mais especificamente, sem violências sexuais e de gênero, um mundo no qual essas práticas causem espantos e os percursos agreguem mais cores e encantamentos.
RESUMO:
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(Des)fazeres educativos
Crianças viadas, malditas, inocentes
Infâncias purpurinadas
Por mais espantos e encantamentos