image/svg+xmlO problema fundamental da política: Olhares antropológicos e o senso políticoRev. Sem Aspas,Araraquara, v.11, n.esp.1, e022016, 2022. e-ISSN2358-4238DOI:https://doi.org/10.29373/sas.v11iesp.1.170471O PROBLEMA FUNDAMENTAL DA POLÍTICA:OLHARESANTROPOLÓGICOSE O SENSO POLÍTICOEL PROBLEMA FUNDAMENTAL DE LA POLÍTICA: MIRADA ANTROPOLÓGICA Y SENTIDO POLÍTICOTHE FUNDAMENTAL PROBLEM OF POLITICS: ANTHROPOLOGICAL VIEWS AND POLITICAL SENSEAlexandre Aparecido dos SANTOS1Renata Medeiros PAOLIELLO2RESUMO:Esse artigo tem por objetivo apresentar caminhos teóricos que possibilitem analisar a prática política enquanto uma agência. Nesse sentido apresenta, uma discussão teórica que aproxima alguns momentos em que os estudos antropológicos se dedicaram a questões próprias ao universo político e as reflexões sobre as práticas políticas e seus modos de produção presentes na obra de Pierre Bourdieu. Desta aproximação, resultam os seguintes entendimentos: i) os modos de produção das práticas políticas permitem entender a existência de uma lógica própria a um possível campo político com regras e pensamentos definidos e legitimamente reconhecidos; ii) os modos de produção das práticas políticas revelam a existência de outras lógicas, outras regras e outros modos de pensar sobre a política e seu funcionamento que não são reconhecidos e, por isso, não são legitimados socialmente.PALAVRAS-CHAVE:Prática. Senso político. Pierre Bourdieu. Antropologia política. Sociologia política.RESUMEN:Este artículo tiene como objetivo presentar caminos teóricos que permitan analizar la práctica política como agencia. En ese sentido, ofrece una discusión que reúne algunos momentos en que los estudios antropológicos se dedicaron a cuestiones propias del universo político y las reflexiones sobre las prácticas políticas y sus modos de producción presentes en la obra de Pierre Bourdieu. De este enfoque resultan las siguientes comprensiones: i) los modos de producción de las prácticas políticas permiten comprender la existencia de una lógica propia de un posible campo político con reglas y pensamientos definidos y legítimamente reconocidos; ii) los modos de producción de las prácticas políticas revelan la existencia de otras lógicas, otras reglas y otras formas de pensar la política y su funcionamiento que no son reconocidas y, por tanto, no están socialmente legitimadas.PALABRAS CLAVE:Práctica. Sentido político. Pierre Bourdieu. Antropología política. Sociología política.1Universidade de São Paulo (USP), São Paulo SP Brasil. Faculdade de Educação. TRAMAS -Laboratório de pesquisa em educação, transmissão intergeracional, trabalho e política -USP.ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5901-8262.E-mail: alexandre.sociais@hotmail.com2Universidade Estadual Paulista (UNESP),Araraquara SP Brasil. Professora do Departamento de Ciências Sociais. ORCID:https://orcid.org/0000-0002-0640-276X. E-mail: renata.paoliello@unesp.br/reluz8@uol.com.br
image/svg+xmlAlexandre Aparecido dos SANTOSeRenata Medeiros PAOLIELLORev. Sem Aspas,Araraquara, v. 11, n. esp. 1, e022016, 2022. e-ISSN 2358-4238DOI: https://doi.org/10.29373/sas.v11iesp.1.170472ABSTRACT:This article aims to present theoretical paths that make it possible to analyze political practice as an agency. In this sense, it offers a discussion that brings together some moments in which anthropological studies were dedicated to questions specific to the political universe and the reflections on political practices and their modes of production present in the work of Pierre Bourdieu. The following understandings result from this approach: i) the modes of production of political practices allow us to understand the existence of a logic proper to a possible political field with defined and legitimately recognized rules and thoughts; ii) the modes of production of political practices reveal the existence of other logics, other rules and other ways of thinking about politics and its functioning that are not recognized and, therefore, are not socially legitimized.KEYWORDS:Practice. Political sense. Pierre Bourdieu. Political anthropology. Political sociology.Introdução: A especificidade de uma abordagemApresentamos aqui uma reflexão sobre alguns dos momentos em que estudos antropológicos dedicaram-se a temáticas e questões próprias ao universo político, no intuito compreender como estas questões podem ser relacionadas a busca por entender a prática política enquanto uma agência (BOURDIEU, 2011a). A especificidade de uma abordagem antropológica da política pode ser ligada ao projeto da própria disciplina, uma vez que este diz respeito a uma tentativa de “[...] reunir o que a ideologia moderna separou(PEIRANO, 1997, p. 22). Nesse sentido, a “[...] abordagem da política pela antropologia pode ser definida de uma forma simples: explicar como os atores sociais compreendem e experimentam a política, isto é, como significam os objetos e as práticas relacionadas ao mundo da política” (KUSCHNIR, 2007, p.163). O que o conhecimento antropológico busca diante das questões da política é conhecer aquilo que os agentes concebem e vivem enquanto política.Operacionalizar essa busca por conhecer como as pessoas experienciam a política não se mostra uma tarefa simples. Ao contrário, diz respeito a:[...] uma proposta complexa de ser executada e que implica pelo menos dois pressupostos. O primeiro, de que a sociedade é heterogênea, formada por redes sociais que sustentam e possibilitam múltiplas percepções da realidade. O segundo, de que o “mundo da política” não é um dado a priori, mas precisa ser investigado e definido a partir das formulações e dos comportamentos de atores sociais e de contextos particulares (KUSCHNIR, 2007a, p.163).Diante das questões sobre política, o objetivo das pesquisas antropológicas não diz respeito à busca por um entendimento acerca das instituições políticas e de seu funcionamento, mas a conhecer como as relações de poder aparecem, ganham formas e significados para
image/svg+xmlO problema fundamental da política: Olhares antropológicos e o senso políticoRev. Sem Aspas,Araraquara, v.11, n.esp.1, e022016, 2022. e-ISSN2358-4238DOI:https://doi.org/10.29373/sas.v11iesp.1.170473agentes situados nos mais diversos contextos, construindo para isso um olhar em que “o poder (ou a política) estaria presente em todas as relações sociais onde existe algum tipo de assimetria” (KUSCHNIR, 2007b, p.7).Por isso, pensar as questões e os debates sobre a política a partir de um ponto de vista antropológico, tem por pressuposto que:A antropologia pode contribuir nesse debate porque sua principal tarefa é estudar não o que a política deve ser, mas o que ela é para um determinado grupo, em um contexto histórico e social específico. Compreender, “do ponto de vista do nativo”, práticas muitas vezes diferentes daquelas que idealizamos pode gerar incômodo, intelectual ou cívico, mas um incômodo necessário, pois, como disse Geertz, “se quiséssemos verdades caseiras, deveríamos ter ficado em casa” (KUSCHNIR,2007a, p.166, grifos do autor).A ideia de uma antropologia política entendidaenquanto área de conhecimento, pode ser vinculada aos estudos ingleses de antropologia social, uma vez que sua consolidação está ligada a um momento da disciplina em que os autores se afastaram das noções clássicas da disciplina, que concebiam o mundo social como um todo formado por vários sistemas interligados sistemas de parentesco, político, econômico, religioso, entre outros concepção pela qual um sistema não poderia ser compreendido sem se levar em conta todos os outros, para buscar entender de forma isolada as particularidades de cada sistema social.Em nossa leitura, dentre os principais pensadores do que hoje pode ser entendida como uma antropologia política encontra-se Leach (1995), que coloca em questão as disparidades entre as regras e os modelos de mundo construídos pela teoria antropológica e as práticas do mudo real. Leach (1995) discute a importância de se compreender a distância que existe entre a realidade empírica vivenciada pelos agentes e o mundo lógico proveniente da noção funcionalista de sistemas sociais. Em concordância com a leitura de Arruti, Montero e Pompa (2012, p. 110), pode-se dizer que:Em resumo, o trabalho de Leach proporciona alguns ganhos fundamentais para os desdobramentos sucessivos da antropologia política. Em primeiro lugar abandona a perspectiva que considera os sistemas políticos como as instituições sociais vicárias da política que, por meio da resolução de conflitos, tem por função manter sociologicamente as partes sociais unidas em uma totalidade estável. Em segundo lugar, avança a proposição de que a política é uma prática simbólico-ritual que tem como finalidade, por meio da manipulação das categorias, a mudança permanente no modo de perceber as distinções e relações de status e por meio dos rituais, a legitimação dessa percepção.As noções de sistemas sociais independentes, de uma prática política simbólico-ritual, e do conflito enquanto categoria estruturante da ordem social, são todas contribuições que
image/svg+xmlAlexandre Aparecido dos SANTOSeRenata Medeiros PAOLIELLORev. Sem Aspas,Araraquara, v. 11, n. esp. 1, e022016, 2022. e-ISSN 2358-4238DOI: https://doi.org/10.29373/sas.v11iesp.1.170474podem ser conectadas à antropologia social britânica. Ela também contribuiu para o desenvolvimento do campo do conhecimento antropológico como um todo, evidenciando assim a importância desta área de conhecimento ao longo da formação da disciplina.As antropologias da política e do políticoAo olhar para a antropologia produzida no Brasil, sem o intuito de ligá-la a tradição inglesa, encontramos, a princípio, os estudos das questões políticas ligados a uma abordagem conhecida por antropologia da política. Nesses estudos, existe uma preocupação central com o modo pelo qual as pessoas experimentam e vivenciam a política, que se desdobra em uma busca por compreender a ideia de política vinculada as relações de mediação construídas entre comunidades locais e às diversas instâncias de poder, dentre as quais ganhamdestaque as políticas de Estado e de governo.No contexto brasileiro, desenvolveu-se, na década de 1990, um conjunto de trabalhos autodenominados antropologia da política, que tiveram sua institucionalização mais importante no Núcleo de Antropologia da Política (NuAP), sediado no Museu Nacional da UFRJ, mas envolvendo grupos em outras universidades federais, como as de Brasília, Ceará e Rio Grande do Sul, entre outras (KUSCHNIR, 2007a, p.164).A abordagem da antropologia da política, entre outras coisas, permite pensar sobre os desdobramentos teóricos possibilitados pela noção etnográfica de “tempo da política”, recorte temporal marcado “pelo momento em que facções (partidos reais) são identificadas, e em que, por assim dizer, existem plenamente em conflito aberto, as municipalidades dividindo-se de uma maneira pouco habitual nas grandes cidades” (PALMEIRA;HEREDIA, 2006, p. 283). As análises construídas a partir da categoria etnográfica de “tempo da política” permitiram a essa abordagem desviar o foco desuas análises dos grandes centros urbanos, objetos caros à ciência política, e voltar-se para as comunidades locais.Esta mudança permitiu que os estudos de antropologia da política percebessem, por exemplo, como uma disputa eleitoral pode reorganizar as relações no dia a dia de diversos e distintos lugares. De forma sistemática, sobre essa abordagem antropológica e suas contribuições, temos que:Em análises centradas nos momentos eleitorais em pequenas cidades no interior do Brasil, Palmeira e Heredia (1993, 1995 e 1997) têm desenvolvido o conceito de tempo da política para designar os períodos em que a população percebe a política e os políticos como parte da sua vida social. Nessas sociedades, que teriam como valor a união e a estabilidade (representadas
image/svg+xmlO problema fundamental da política: Olhares antropológicos e o senso políticoRev. Sem Aspas,Araraquara, v.11, n.esp.1, e022016, 2022. e-ISSN2358-4238DOI:https://doi.org/10.29373/sas.v11iesp.1.170475muitas vezes sob a forma do modelo familiar), a política é vivida como um fenômeno sazonal por estar identificada como a divisão e o conflito. Dessa forma, os autores chamam atenção para a política tal como ela é experimentada dentro de um universo cultural e histórico específico. Os eleitores deixam de ser “seres abstratos”, tão caros aos teóricos da democracia (KUSCHNIR, 2007b, p.8).Este conjunto de estudos vincula a ideia de uma ação política a questões que tentam ir além das discussões sobre o despreparo para o voto por parte dos cidadãos, ou sobre as tendências clientelistas de nossa política partidária, por exemplo, colocando em pauta uma visão em que “[...] a compreensão do comportamento eleitoral dependeria da adoção de uma perspectiva mais “sociológica”, em que as ações dos eleitores fossem percebidas segundo as estruturas “sociais e simbólicas” que as circunscrevem...” (KUSCHNIR, 2007b, p.8).Em síntese, pode-se dizer que os estudos em antropologia da política contribuíram para a estruturação das discussões antropológicas contemporâneas que tomam como objeto relações políticas no Brasil, principalmente no que toca aos estudos que buscam conhecer as práticas eleitorais, ao assumirem uma perspectiva que desnaturaliza a noção de política.Em nossaleitura, essa busca evidenciada pelos estudos de antropologia da política no Brasil, estaria na base da abordagem de uma antropologia do político (ARRUTI; MONTERO; POMPA, 2012) que “reposiciona a questão da alteridade, concebendo-a como um campo de relações prático-discursivas sobre as diferenças.” (ARRUTI; MONTERO; POMPA, 2012, p. 3). A abordagem teórica de uma antropologia do político tem por objetivo discutir a representatividade política, pensando sobretudo essa representação a partir das questões de alteridade, como pode se ver:Nesse sentido, sugerimos ser necessário um reposicionamento teórico da disciplina que tenha como foco, não o exame da alteridade pensada como um conjunto de especificidades que têm sentido nelas mesmas, nem mesmo a sua transformação ou o conflito entre os diferentes e suas diferenças, mas as dinâmicas sociais de sua produção e apropriação simbólica por agentes situados(ARRUTI, MONTERO; POMPA, 2012, p. 3).O mote central para uma antropologia do político encontra-se nos diversos agenciamentos sobre as questões da diferença, descolando ainda mais além da análise de um sistema político normatizado e institucional e colocando-a no contexto prático em que são construídas as mediações entre essa política institucional e a demanda dos agentes politicamente situados no cotidiano.Em termos metodológicos, essa abordagem aponta para uma análise interessada, de um lado, nas categorias nativas pensadas como terminologias
image/svg+xmlAlexandre Aparecido dos SANTOSeRenata Medeiros PAOLIELLORev. Sem Aspas,Araraquara, v. 11, n. esp. 1, e022016, 2022. e-ISSN 2358-4238DOI: https://doi.org/10.29373/sas.v11iesp.1.170476que expressam seus modos de percepção das regras e das relações sociais; e, de outro, os princípios lógicos e práticos das ações simbólico-rituais, responsáveis pelos agenciamentos das categorias sociais de visão e divisão do mundo, que disputam o controle do modo de perceber as distinções e relações de status e seus efeitos de poder (ARRUTI; MONTERO; POMPA, 2012, p. 28).Em síntese, a abordagem da antropologia do político apresenta a possibilidade de um olhar para as diversas formas de representatividades políticas estabelecidas pelas relações prático-discursivas sobre as diferenças e a mediação dessas diferenças em relação às políticas institucionais de Estado:As noções correntemente acionadas pela sociologia e pela historiografia, sustentadas nas noções de “invenção” e “manipulação”, apesar de terem cumprido sua função analítica em um momento inicial do debate, tornaram-se insuficientes. Para além do seu caráter tautológico (efetivamente toda tradição é inventada e toda identidade é manipulada segundo os contextos de interação), tais noções denunciam uma concepção racionalista e manipulatória dos agentes (e de sua “agência”). [...] Uma mediação que não é pensada apenas como uma ação que se estabelece entre agentes e agências, mas como um campo de produção de significados que trabalha na constituição dos próprios agentes (ARRUTI; MONTERO; POMPA, 2012, p. 33).Por fim, a partir desse balanço teórico, temos que a prática política pode ser pensada enquanto uma agência (BOURDIEU, 2011a): i) por ser polissêmica, tendo em vista a multiplicidade de sentidos que podem ser atribuídos a ela; ii) por estar intimamente ligada às questões de alteridade, ou seja, uma mesma prática pode ter significados totalmente diferentes dependendo do contexto em que se situa e se realiza; iii) por não ser o resultado de uma relação de manipulação ou como simples conformidade diante do contexto de sua produção. O olhar relacional e o problema fundamental da políticaAo ler a obra de Pierre Bourdieu, é muito comum que os inúmeros e possíveis entendimentos sejam construídos a partir do conceito de habitus apresentamos a seguir o modo pelo qual entendemos esse conceito, sem perderde vista que esse entendimento é um dentre os muitos possíveis sobre ele noção aristotélica discutida e aplicada por vários outros autores (WACQUANT, 2007; 2017), mas que, repensada criticamente, para questionar os modos escolásticos de conhecimento, aparece nos trabalhos de Bourdieu reformulada e operacionalizada enquanto um:
image/svg+xmlO problema fundamental da política: Olhares antropológicos e o senso políticoRev. Sem Aspas,Araraquara, v.11, n.esp.1, e022016, 2022. e-ISSN2358-4238DOI:https://doi.org/10.29373/sas.v11iesp.1.170477[...] sistemas de disposiçõesduráveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes, isto é, como princípio gerador e estruturador das práticas e das representações que podem ser objetivamente adaptadas a seu fim sem supor a intenção consciente dos fins e o domínio expresso das operações necessárias para atingi-los e coletivamente orquestradas, sem ser o produto da ação organizadora de um regente (BOURDIEU, 1983a, p. 60).Ao ser assim anunciado, o conceito de habitus ganha grande aplicabilidade em análises que se disponham a trabalhar apartir da ideia de uma mediação entre as experiências vivenciadas por cada agente e o contexto social que o engloba. Essa possibilidade analítica se sustenta porque, teoricamente, o conceito de habitus, segundo Bourdieu, remete a:[...] uma capacidade infinita de engendrar em toda a liberdade (controlada) produtos pensamentos, percepções, expressões, ações que sempre têm como limites as condições historicamente e socialmente situadas de sua produção, a liberdade condicionada e condicional que ele garante está tão distante de uma criação de imprevisível novidade quanto de uma simples reprodução mecânica dos condicionamentos iniciais (BOURDIEU, 2007a, p. 91).Essa noção de liberdade condicionada diz respeito à capacidade que cada agente tem de produzire reproduzir, a partir de seu habitus (BOURDIEU, 2007a),inúmeras e distintas práticasdiante das limitações socioeconômicas de seu contexto social. É nesse sentido que o conceito de habitusencontra-se na base do que Bourdieu constrói como um conhecimento praxiológico (BOURDIEU, 1983a).Segundo o autor, para conhecer algo praxiologicamente, temos sempre que buscar compreender:[...] não somente o sistema das relações objetivas que o modo de conhecimento objetivista constrói, mas também as relações dialéticas entre essas estruturas e as disposiçõesestruturadas nas quais elas se atualizam e que tendem a reproduzi-las, isto é, o duplo processo de interiorização da exterioridade e de exteriorização da interioridade: este conhecimento supõe uma ruptura com o modo de conhecimento objetivista, quer dizer, um questionamento das condições de possibilidades e, por aí, dos limites do ponto de vista objetivo e objetivante que apreende as práticas de fora, enquanto fato acabado, em lugar de construir seu princípio gerador situando-se no próprio movimento de suaefetivação (BOURDIEU, 1983a, p. 47).É nesse “[...] duplo processo de interiorização da exterioridade e de exteriorização da interioridade” (BOURDIEU, 1983a, p. 47) que se encontraria a liberdade controlada das práticas, uma vez que por meio desse processo todo o agente seria, por intermédio de seu habitus,um consumidor e um produtor de sentido objetivo de mundo. (BOURDIEU, 1983a).
image/svg+xmlAlexandre Aparecido dos SANTOSeRenata Medeiros PAOLIELLORev. Sem Aspas,Araraquara, v. 11, n. esp. 1, e022016, 2022. e-ISSN 2358-4238DOI: https://doi.org/10.29373/sas.v11iesp.1.170478Nesse sentido, enquanto uma mediação estabelecida através de experiências cotidianas, o conceito de habitus ocupa um lugar central nos estudos bourdieusianos, sobretudo porque o mesmo pode ser pensado enquanto uma:História incorporada, feita natureza, e por isso esquecida como tal, o habitus é a presença operante de todo o passado do qual é o produto: no entanto é o que confere às práticas sua independência relativa em relação às determinações exteriores do presente imediato. [...] Espontaneidade sem consciência nem vontade, o habitus não se opõe menos à necessidade mecânica do que à liberdade reflexiva, às coisas sem históriadas teorias mecanicistas do que aos sujeitos “sem inércia” das teorias racionalistas. (BOURDIEU, 2009, p. 93).Considerando esse objeto, as práticas políticas de agentes profanos, o conceito de habitus se faz estratégico por permitir equacionar a ideia de uma “mediação universalizante que faz com que as práticas sem razão explícitas e sem intenção significante de um agente singular sejam, no entanto, ‘sensatas’, ‘razoáveis’ e objetivamente orquestradas” (BOURDIEU, 1983a, p. 73).Assim, ao pensar os discursos de agentes profanos sobre a política pois “Como o campo religioso, o campo político repousa sobre uma separação entre os profissionais e os profanos.” (BOURDIEU, 2011b, p. 195) enquanto práticas políticas do dia a dia, apresentamos o pressuposto deque a construção de um entendimento praxiológico (BOURDIEU, 1983a) sobre estes discursos só se mostra possível:[...] com a condição de relacionar as condições sociais nas quais se constituiu o habitus que as engendrou às condições sociais nas quais ele é posto em ação, ou seja, com a condição de operar pelo trabalho científico a relação desses dois estados do mundo social que o habitus efetua, ao ocultá-lo, na e pela prática (BOURDIEU, 2009, p. 93).Nesse sentido os discursos políticos dos agentes leigos ao campo político seriam uma prática possibilitada pela relação dialética entre dois estados do mudo social, as experiências vivenciadas em suas trajetórias pessoais e o contexto social de produção desses discursos. (BOURDIEU, 1983a). Por isso, assumimosque ser:[...] preciso abandonar todas as teorias que tomam explícita ou implicitamente a prática como uma reação mecânica, diretamente determinada pelas condições antecedentes e inteiramente redutível ao funcionamento mecânico de esquemas preestabelecidos, “modelos”, “normas” ou “papéis(BOURDIEU, 1983a, p. 64).Ao pensar a produção dos discursos políticos dos agentes profanos (BOURDIEU, 2011b) como uma agência, ou seja, um momento particular de produção de sentidos, temos por
image/svg+xmlO problema fundamental da política: Olhares antropológicos e o senso políticoRev. Sem Aspas,Araraquara, v.11, n.esp.1, e022016, 2022. e-ISSN2358-4238DOI:https://doi.org/10.29373/sas.v11iesp.1.170479objetivo a compreensão desses como uma prática que, em uma perspectiva praxiólogica,seria “ao mesmo tempo, necessária e relativamente autônoma em relação à situação considerada em sua imediatidade pontual, porque ela é o produto da relação dialética entre uma situação e um habitus”(BOURDIEU, 1983a, p. 65).Os campos sociais e o problema fundamental da políticaPensar a partir da teoria dos campos sociais é pensar necessariamente sobre estruturas prático-simbólicas uma vez que a noção de campo é apresentada como o espaço social onde se manifestam as relações de disputas simbólicas em que as posições dos agentes se encontram estabelecidas a priori, como resultado da disputa pelo acesso e pelo acúmulo de capital cultural. (BOURDIEU, 2002). Uma vez que:O capital cultural pode existir sob três formas: no estado incorporado, ou seja, sob a forma de disposições duráveis no organismo; no estado objetivado, sob a forma de bens culturais quadros, livros, dicionários, instrumentos, máquinas, que constituem indícios ou a realização de teorias ou de críticas dessas teorias, de problemáticas, etc., e, enfim, no estado institucionalizado, forma de objetivação que é preciso colocar à parte porque, como se observa em relação ao certificado escolar, ela confere ao capital cultural de que é, supostamente, a garantia propriedades inteiramente originais (BOURDIEU, 2007b, p. 74).O conceito de campo social permite que a sociedade seja entendida como espaço de disputa por um poder que é objetivamente estratificado (BOURDIEU, 2002). Uma vez que “Para que um campo funcione, é preciso que haja objetos de disputas e pessoas prontas para disputar o jogo, dotadas de habitusque impliquem no conhecimento e no reconhecimento das leis imanentes do jogo, dos objetos de disputas, etc.” (BOURDIEU, 1983b, p.120).Neste sentido o conceito de campo social exprime ideia de um espaço onde não haveria neutralidade de ações e que, enquanto espaço de disputa, encontra-se dividido entre ortodoxia (dominantes) e heterodoxia (dominados) em meio a um jogo no qual os agentes da ortodoxia produziriam mecanismos e instituições capazes de legitimar bens simbólicos, para assim gerenciar a dinâmica e a hierarquia social, mantendo sua posição de poder dentro dele (BOURDIEU, 2002).Olhar para a sociedade enquanto um espaço objetivamente estratificado permite pensar essa sociedade estruturada por diversos campos sociais distintos, porém interligados por relações de homologias estruturais, uma vez que “A homologia pode ser descrita como uma semelhança na diferença. Falar de homologias [...] significa afirmar a existência de traços
image/svg+xmlAlexandre Aparecido dos SANTOSeRenata Medeiros PAOLIELLORev. Sem Aspas,Araraquara, v. 11, n. esp. 1, e022016, 2022. e-ISSN 2358-4238DOI: https://doi.org/10.29373/sas.v11iesp.1.1704710estruturantes equivalentes o que não quer dizer idênticos em conjuntos diferentes” (BOURDIEU, 2004, p. 170). A ideia de uma semelhança pela diferença diz respeito às disputas por poder internas aos campos sociais. Disputas essas responsáveis pelos mecanismos através dos quais esses campos se estruturam, reproduzem e relacionam (BOURDIEU, 2004). Sobretudo porque: A estrutura do campo é um estado da relação de força entre os agentes ou as instituições engajadas na luta ou, se preferirmos, da distribuição do capital específico que, acumulado no curso das lutas anteriores, orienta as estratégias ulteriores. Esta estrutura, que está na origem das estratégias destinadas a transformá-la, também está sempre em jogo: as lutas cujo espaço é o campo têm por objeto o monopólio da violência legítima (autoridade específica) que é característica do campo considerado, isto é, em definitivo, a conservação ou a subversão da estrutura da distribuição do capital específico (BOURDIEU, 1983b, p.120).Então, por essa perspectiva, pensar sobre o campo político significa refletir sobre um contexto composto pela relação entre agentes, por regras legitimadas e reconhecidas, pelos distintos capitais simbólicos em disputa e por uma concorrência pela condição de porta-voz legítimo dos discursos e das opiniões políticas de uma parcela significativa da população contemplada de alguma maneira pelas dinâmicas deste campo (BOURDIEU, 2002):O campo político é o lugar em que se geram, na concorrência entre os agentes que nele se acham envolvidos, produtos políticos, problemas, programas, análises, comentários, conceitos. Acontecimentos entre os quais os cidadãos comuns, reduzidos ao estatuto de “consumidores”, devem escolher, com possibilidades de mal