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Os capitais detidos por ministros e ministras dos governos
C
ardoso e
L
ula:
Mapeando
a distinção
Rev. Sem Aspas
,
Araraquara
, v.
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, n.
esp.
1
,
e022018
,
2022
.
e
-
ISSN
2358
-
4238
DOI:
https://doi.org/10.29373/sas.v11iesp.1.17627
1
OS CAPITAIS DETIDOS POR MINISTROS E MINISTRAS DOS GOVERNOS
CARDOSO E LULA: MAPEANDO A DISTINÇÃO
1
CAPITALES EN MANOS DE MINISTROS Y MINISTROS DE LOS GOBIERNOS DE
CARDOSO Y LULA: MAPEANDO LA DISTINCIÓN
CAPITALS HELD BY MINISTERS OF
CARDOSO AND LULA GOVERNMENTS:
MAPPING THE DISTINCTION
Maria Chaves
JARDIM
2
Márcio Rogério da
SILVA
3
RESUMO
:
O retorno de Lula como presidente da república, nas eleições de outubro de 2022,
revitaliza um tema que nunca esteve fora de moda nas ciências sociais, o estudo dos governos
Lula, especialmente em comparação com os governos Cardoso. O
artigo busca objetiv
ar os
principais capitais detidos pelos ministros e ministras do Estado dos períodos Cardoso e Lula,
especificando a posição ocupada no espaço socia e a distinção. O estudo dos capitais detidos
por estes pode somar esforços aos estudos que buscam entender
esse período da história
contemporânea. De forma geral, foi possível concluir que
os ministros do governo Cardoso, do
ponto de vista da posição, têm
capitais culturais, econômicos e simbólicos mais elevados sob a
ótica do
mainstream
econômico, configurando
um
habitus
de elite, ao passo que o os ministros
Lula possuem menor capital econômico, cultural e simbólico, constituindo um
habitus
mais
popular. Para tanto, realizamos estudo de trajetória desses ministros e em seguida, aplicamos a
ACM. Os dados foram a
nalisados a partir da sociologia relacional e praxiológica de Pierre
Bourdieu.
PALAVRAS
-
CHAVE
:
Governo
C
ardoso e
g
overno Lula
.
M
inistros
.
D
istinção
.
C
apitais
.
ACM.
RESUMEN
: El regreso de Lula como presidente de la república, en las elecciones de
octubre
de 2022, revitaliza un tema que nunca ha pasado de moda en las ciencias sociales, el estudio
de los gobiernos de Lula, especialmente en comparación con los gobiernos de Cardoso. El
artículo busca apuntar a las principales capitales ocupadas por los
ministros y ministros del
Estado de los períodos Cardoso y Lula, precisando la posición ocupada en el espacio social y
la distinción. El estudio de los capiteles que poseen estos puede sumar esfuerzos a los estudios
que buscan comprender este período de l
a historia contemporánea. En general, se pudo
concluir que los ministros del gobierno de Cardoso, desde el punto de vista de la posición,
tienen capitales culturales, económicos y simbólicos superiores desde la perspectiva de la
1
Esse artigo foi escrito a partir de pesquisas financiadas pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São
Paulo (Fapesp), Processo nº 2014/11804
-
6 e CNPQ. Agradecemos o apoio e suporte indisp
ensável
às nossas
atividades científicas.
2
Universidade Estadual Paulista (UNESP), Araraquara
–
SP
–
Brasil. Professora Livre Docente do Departamento
de Ciências Sociais. ORCID: https://orcid.org/0000
-
0001
-
5715
-
1430. E
-
mail:
majardim@fclar.unesp.br
3
Universidade Federal de São Carlos
(
U
FSC
ar
)
, Lagoa do Sino
–
SP
–
Brasil.
ORCID:
https://orcid.org/0000
-
0002
-
8176
-
1551
. E
-
mail:
mar
ciosilva@ufscar.br
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corriente económica dominan
te, configurando un habitus de élite, mientras que los ministros
de Lula tienen menos capital económico, cultural y simbólico, constituyendo un habitus más
popular. Para ello, realizamos un estudio de la trayectoria de estos ministros y luego aplicamos
la
ACM. Los datos fueron analizados a partir de la sociología relacional y praxiológica de
Pierre Bourdieu.
PALABRAS
C
LAVE
: Gobierno Cardoso y
g
obierno Lula
.
Ministros
.
D
istinción
.
Capital
.
ACM
.
ABSTRACT
: Lula's return as president of the republic, in the October 2022 elections,
revitalizes a theme that has never been out of fashion in the social sciences, the study of the
Lula governments, especially in comparison with the Cardoso governments. The articl
e seeks
to aim at the main capitals held by the ministers of the State of the Cardoso and Lula periods,
specifying the position occupied in the social space and the distinction. The study of the capitals
held by these can add efforts to studies that seek t
o understand this period of contemporary
history. In general, it was possible to conclude that the ministers of the Cardoso government,
from the point of view of position, have higher cultural, economic and symbolic capitals from
the perspective of the eco
nomic mainstream, configuring an elite habitus, while the Lula
ministers have less economic, cultural and symbolic capital, constituting a more popular
habitus. Towards this objective, we conducted a study of the trajectory of these ministers and
then appl
ied the ACM. The data were analyzed from the relational and praxiological sociology
of Pierre Bourdieu.
KEYWORDS
: Cardoso government and Lula government.
Ministers. Distinction. Capital.
ACM.
Introdução
O retorno de Lula como presidente da república,
nas eleições de outubro de 2022,
revitaliza um tema que nunca esteve fora de moda nas ciências sociais, o estudo dos mandatos
presidenciáveis de Lula, especialmente em comparação com os governos Cardoso. O interesse
por esses dois períodos é tão grande, q
ue já existe uma tradição de estudos sobre os mesmos,
muitas vezes comparando esses dois momentos da história democrática do Brasil. Nosso artigo
se interessa por estudar esses dois governos, por meio da comparação dos capitais detidos pelos
seus respectiv
os ministros.
Importante dizer que no âmbito da sociologia são raras as iniciativas em estudos sobre
ministros, tema que tem interessado, sobremaneira, à ciência política, especialmente pesquisas
sobre o processo de seleção e sobre as trajetórias política
s e sociais de ministros. Segundo
Codato e Franz (2017), esses estudos procuram levantar o perfil da elite ministerial de seus
respectivos países, considerando variáveis padrões, tais como, idade, sexo, herança familiar,
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formação escolar, trajetória profis
sional, orientação ideológica do partido, experiência em
cargos legislativos e ocupação de posições no alto escalão do Estado ou em firmas privadas.
Codato e Franz (2017) acrescentam que no presidencialismo brasileiro, os ministros
cumprem uma dupla funçã
o: assegurar que a formulação e a implementação de políticas
públicas estejam de acordo com as diretrizes do presidente da República e do programa do seu
partido; e garantir, através de transações políticas, o apoio partidário para que esses projetos
tenha
m sustentação e chances de aprovação pelo Congresso Nacional. Nesse sentido, a seleção
de ministros e a formação de gabinetes teria um papel estratégico político e para a boa condução
do governo do presidente da República.
Os mesmos autores afirmam que as
pesquisas sobre gabinetes do regime
semipresidencialista francês, têm observado a ocupação de ministérios por indivíduos cada vez
mais acostumados com as lógicas do campo político. François e Grossman (2012) têm
percebido a presença de novos tipos profissi
onais, com a diminuição no número de tecnocratas,
experts
e ministros não partidários e o consequente incremento de quadros políticos com
treinamento e carreiras cumpridas em entidades de representação, seja em cargos eletivos, seja
na burocracia dos parti
dos políticos e mesmo em movimentos sociais (FRANÇOIS;
GROSSMAN, 2012).
No Brasil, D’Araújo (2009) fez uma radiografia do Executivo após a redemocratização
e identificou que os “ministros são pessoas experientes na vida política, com forte
enraizamento
em atividades parlamentares e executivas em todos os níveis de governo” (D’ARAUJO, 2009,
p.
25). De acordo com Costa e Codato (2013), isso seria um indicativo da existência de
expertise
política e administrativa como condição básica para nomea
ção ao ministério. Apesar de serem
postos de nomeação e não posições eletivas, ministérios também podem ser um espaço de
profissionalização política, a exemplo das casas legislativas.
Codato e Franz (2017) defendem que no caso do Brasil, isso decorre da i
mportância do
critério partidário no recrutamento ministerial. No presidencialismo multipartidário, o partido
do presidente da República dificilmente consegue ser o partido majoritário no Congresso
Nacional, forçando o chefe do governo a fazer alianças com
outras legendas para conseguir
apoio político e aprovar seus projetos de lei, emendas legislativas e medidas provisórias. Para
garantir essa sustentação, o presidente precisa atrair os demais partidos, que não o seu, para o
governo, alocando
-
os nos minist
érios ou nas burocracias a eles subordinadas. Essa barganha
entre cargos políticos de alto escalão e apoio parlamentar nas duas Casas do Congresso
Nacional Brasileiro, impacta significativamente na composição dos ministérios
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(ABRANCHES, 1988) e revela as e
stratégias perseguidas pelo recrutamento ministerial no
Brasil.
Em nossa agenda de pesquisa, o tema dos ministros tem ganhado destaque. Em Jardim
e Rosa (2021) foi feito um estudo
da biografia de 151 ministros que atuaram entre 1994 e 2010
nas
pastas titulares. Após apresentar uma cartografia do perfil de todos os ministros, por meio
de diversas
variáveis, o artigo deu destaque
para
três delas: ocupação dos pais e avós dos
ministros
, universidade pelas quais passaram e a circulação internacional
desses. Os resultados
indicam existir homologia entre as trajetórias individuais dos ministros e as crenças econômicas
vigentes do período, expressa, sobretudo, a partir de crenças neoliberais ou
desenvolvimentistas, divulgadas nas universidades pelas qua
is passaram, em formato de teoria
econômica; e
m Jardim e Moura (2022) foram comparadas
as tomadas de posição de ministros
ligados à área econômica dos governos Lula da Silva e Dilma Rousseff, por meio de suas
orientações econômicas. O fio condutor do artig
o foi entender as tomadas de decisão
econômicas dos governos petistas, por meio do estudo da biografia dos ministros ligados à
economia do período estudado, partindo do princípio de que decisões econômicas e pol
í
ticas
estão enraizadas em elementos sociocul
turais, a saber, a visão de mundo dos ministros
tomadores de decisões, cuja visão de mundo seria fabricada socialmente.
S
ilva (2017) e Silva e Grün (2019) mostram como os diretores dos Bancos Centrais,
nomeados no âmbito do presidencialismo de coalizão, ap
resentam posições e tomadas de
posição a partir de uma perspectiva mais monetarista (governo Cardoso) ou mais
neokeynesiana, mas ampliam o olhar para a economia das narrativas dos economistas chefe de
instituições financeiras, que, em vários momentos, atra
vés de uma pressão performativa,
conseguem criar ou ainda, performar nos
diretores
tomadas de posição divergentes das
expectativas acerca de suas posições e disposições.
Dando sequência a essa agenda de estudo já
iniciada
por nós, sobre ministros, o
artigo que ora
apresentamos busca objetivar quais capitais detinham os ministros e ministras do Estado dos
períodos Cardoso e Lula, especificando as distinções entre eles.
Para tanto, realizamos estudo
de trajetória desses ministros e em seguida, aplicamos
a ACM.
Acreditamos que o estudo dos
seus capitais e da distinção pode nos ajudar a localizar suas posições no espaço social e o perfil
desses ministros. Ainda que não seja nosso objetivo central, isso poderá, em alguma medida,
nos ajudar a entender o perf
il dos projetos nos quais estiveram engajados.
O artigo está dividido da seguinte forma: além desta
introdução e da conclusão, no
próximo item
discutimos
o referencial teórico que inspira essa pesquisa, baseado na
sociologia
relacional e praxiológica de Pi
erre Bourdieu; em seguida apresentaremos uma breve síntese
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sobre os governos Cardoso e Lula, buscando destacar o perfil dos projetos existentes em
cada
governo (se mais neoliberal ou mais intervencionista); finalmente,
apresentamos e analisamos
nossos dado
s de pesquisa.
A Distinção enraizada em elementos sociais: a posse de capitais e a definição do
habitus
Para Bourdieu, o estudo de trajetória, em diálogo com a ACM, nos ajuda a mapear os
capitais detidos por um agente social.
Para o autor as
trajetórias seriam o resultado
construído
de
um sistema dos traços pertinentes
de
uma
biografia
individual
ou
de
um
grupo de
biografias
(BOURDIEU, 1998); ou seja, uma
trajetória
é a objetivação das relações
entre
os
agentes e as forças presentes no campo;
um conjunto de relações pode provocar distinção e
fronteiras simbólicas no grupo estudado.
Em Bourdieu (1998), não existe análise de ACM sem
um estudo sistematizado das trajetórias.
Por sua vez, a Análise de Correspondência Múltipla (ACM) é parte de uma té
cnica mais
ampla chamada Análise Geométrica de Dados (AGD), abordagem estatística elaborada pelo
matemático francês Jean Paul Benzécri nos anos 1970, com o qual Bourdieu trabalhou. Esses
trabalhados foram importantes para contrabalançar os modelos confirma
tórios da estatística
(
GREENACRE; BLASIUS
, 2006).
Segundo Le Roux e Rouanet (2010), a análise descritiva precede a modelagem
probabilística, não dependendo do tamanho dos dados. Complementar a essa ideia, para
Bertoncelo (2022
, p.
17) “a causalidade social
consiste nos efeitos globais de uma estrutura
complexa de inter
-
relações, que não se reduz à combinação dos múltiplos efeitos”.
Concretamente, a ACM é uma representação espacial no plano cartesiano de variáveis
de grande variância e indivíduos em posição
relacional entre essas variáveis e entre eles, de
maneira que isso permite uma redução de dimensionalidade de dados, em que a distância entre
indivíduos representa distâncias normalizadas de propriedade social, sendo, nesse sentido, de
cunho exploratória (
BERTONCELO, 2022).
Assim sendo, a ACM
é preditiva, pois uma vez que foi reconstruída a estrutura de
finalidades e contrastes, os indivíduos podem ser projetados nesse espaço de dispersão
(
HUSSON; JOSSE
, 2014).
Por fim, Bertoncelo
(2022) afirma que a ACM tem bons resultados quando produzimos
diferenciações qualitativas, em que as categorias não podem ser ordenadas de maneira direta.
Isso quer dizer que no nosso caso, por exemplo, o número e a complexidade das variáveis que
compõe o
s capitais dos ministros dirigentes não podem ser hierarquizadas entre variáveis
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dependentes e independentes de maneira clara, dado seu volume e complexidade.
Com base
nesses pressupostos, Bourdieu pôde, em seus estudos, reconstruir o espaço das posições s
ociais
(
BOURDIEU
, 2008), objetivando capitais e distinções.
No que se refere ao conceito de capitais em Bourdieu (1996; 2006), primeiramente é
necessário dizer que capital, é, em Bourdieu, um “recurso” que pode ser possuído e transmitido
por um indivíduo,
um casal, um estabelecimento, uma comunidade, ou mesmo um país. Para o
autor, existem quatro tipos de capitais: econômico, cultural, social e simbólico, sendo que o
capital de origem estaria ligado à família e o capital de chegada teria a ver com a reconv
ersão
no espaço social.
O capital econômico
corresponde à noção
de patrimônio e é avaliado em termos
monetários.
Dinheiro na perspectiva de Pierre Bourdieu, é simbólico. Capital econômico em
Bourdieu, pode ser convertido em capital simbólico, social e cult
ural.
O capital social
é o conjunto de relações pessoais possuído por um agente, família e
empresa, constituindo uma rede de relacionamento.
O capital cultural
foi acionado por Bourdieu para explicar as desigualdades sociais em
matéria educativa e cultura
l. Trata
-
se de um conjunto multidimensional de competências (por
exemplo, o domínio da língua e do cálculo), e de disposições (certa sensibilidade para o mundo),
que constitui a versão incorporada do capital cultural. Existem três estados incorporado do
ca
pital cultural em Bourdieu: 1
)
Hexis corporal; 2)
Institucionalizado (por meio de diplomas,
obras de arte etc.) e
;
3) Objetivado: obra de arte, pintura, música etc. O capital cultural seria o
responsável por formar o gosto, que por sua vez, promove distinç
ão e revela dominação.
O quarto e último capital,
o capital simbólico
é definido pelo “olhar” depositado (o
valor dado) pela sociedade a um agente social, família, empresa. Há, portanto, uma dimensão
relacional e coletiva, já que o capital simbólico signif
ica reconhecimento e prestígio. Em
Bourdieu (1996) os capitais existem de forma relacional, uma vez que um pode reforçar o outro.
Segundo o método de Bourdieu, para mensurar a origem social de um agente
e,
portanto,
seu capital de origem, é fundamental obj
etivar a profissão dos pais, sobretudo do pai, visto que
no texto
As contradições da herança
, do livro
A miséria do mundo
(1993), Bourdieu mostra o
papel da família na transmissão da herança cultural, com destaque para o pai, que segundo o
autor,
seria o maior responsável por transmitir a herança ao herdeiro.
A mesma argumentação aparece
em Bourdieu
e Passeron (2014, p.
28) para quem: “(...),
a origem social é, de todos os determinantes, o único que estende sua influência a todos os
domínios e a to
dos os níveis da experiência dos estudantes e primeiramente as condições de
existência”.
Assim, a escola transforma
-
se no agente único e total da transmissão das posições
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sociais. A ideia de que a origem social, bem como os marcadores de legitimidade (capi
tais
simbólicos, processos de socialização) é natural, perde relevância diante das teses de Bourdieu
(1996; 2006), que mostra o trabalho “mágico” da escola, reproduzindo e valorizando a cultura
formada na classe dominante.
Como demonstra Bourdieu (2006),
a familiaridade com a cultura legítima
–
a cultura
legitimada, dominante
–
traz ganhos na vida escolar, no campo universitário e no mercado de
trabalho, favorecendo aqueles que em tenra infância tiveram acesso a essa cultura legítima,
“como uma experiência
direta”, um “simples deleite”, a princípio, “fora das disciplinas
escolares”, marcadas como “pedantes”. Assim, “a aquisição da cultura legítima pela
familiarização insensível no âmago da família tende a favorecer uma experiência encantada da
cultura, que
implica o esquecimento da aquisição e a ignorância dos instrumentos de
apropriação” (BOURDIEU, 2006
, p.
10).
Outro quesito importante na sociologia de Bourdieu, diz respeito à educação formal
recebida pelos agentes sociais. A trajetória educacional dos ind
ivíduos, formação básica,
superior e as instituições nas quais estudaram, são constitutivas
–
embora não exclusivamente
–
daquilo que Bourdieu intitulou capital cultural legítimo.
Em Bourdieu (2014) existiria uma correlação entre a classe de origem e os a
nos de
estudos, que é refletida em aspectos como idade que iniciou os estudos, sexo e a questão
geográfica. Para o caso da França, Bourdieu informa que os herdeiros legítimos ingressam em
cursos prestigiados das melhores universidades francesas, enquanto o
s filhos das classes
populares
-
quando ingressam no ensino superior
-
acabam frequentando cursos sem muito
prestígio. Para o autor, as aspirações escolares desdobram
-
se em objetividades referentes à
realidade de cada agente social, ou seja, as escolhas sã
o delimitadas em função das trajetórias
Sobre o argumento acima, Bourdieu defende no livro
La Noblesse d´Etat: Grandes
écoles et esprit de corps
(1989)
,
que nos cursos superiores de elite, existe uma ação de
“consagração” e um rito que produz um grupo sep
arado e sagrado, que se dá de forma
mascarada, produzindo e reproduzindo a nobreza. Portanto, para Bourdieu (2007), o sistema
escolar antes de ser caracterizado por uma marca libertadora, é uma das formas mais intensas
de conservação social, pois tende a l
egitimar as desigualdades sociais a partir da herança
cultural.
Nessa perspectiva, um ato ou uma escolha de um agente não se explica por si só, pois,
de acordo com o autor, esses atos estão ligados ao contexto social: além de sofrerem os
constrangimentos s
ociais de um grupo, estão associadas às suas
experiências individuais,
familiares (origem social) e também a sua socialização secundária (universidade e demais
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espaços sociais). As escolhas, portanto, se dão não só subjetivamente, mas estão circunscritas
a
elementos históricos, culturais e, principalmente, a um campo dado de possibilidades. As
prioridades se darão de acordo com os recursos herdados e construídos socialmente dentro de
histórias singulares de vida.
Habitus: expressando visões de mundo
Em
Bourdieu, a posse dos capitais ajuda a gerar um
habitus
, que por sua vez forma a
visão de mundo de um agente, que é constituída socialmente. Para tanto, a trajetória individual
dos agentes ajuda a construir seu
habitus
, que são pré
-
disposições IN
-
corporada
s
(colocadas no
corpo e na mente) pelos agentes sociais ao longo de seu processo de socialização. Nesse
contexto, o
habitus
integra experiências passadas e atua como uma matriz de percepções, de
apreciações, de ações, de gosto e de tomadas de decisões. Ess
a “matriz”, ou conjunto de
disposições, fornece esquemas necessários para a intervenção dos agentes sociais na vida diária,
de forma não necessariamente consciente.
Conforme trata o autor, essas disposições não são fixas. Ademais, não são nem a
personalid
ade e nem a identidade dos indivíduos: “
habitus
é um operador, uma matriz de
percepção e não uma identidade ou uma subjetividade fixa” (BOURDIEU, 2002, p. 83). Sendo
produto da história,
o habitus
é um sistema de disposições aberto, permanentemente afrontado
a experiências novas e permanentemente afetad
o por elas. Ele é durável, mas não imutável
(BOURDIEU, 2002, p. 83). Trata
-
se de um
marcador simbólico
que pode expressar distinção
ou desclassificação (BOURDIEU, 1979). Mostra distinção quando expressa a
cultura
dominante, que por sua vez contribui para a
integração da classe dominante, por meio do
habitus,
assegurando a comunicação imediata entre todos os seus membros e os distinguindo
das demais classes sociais. Expressa
desclassificação
quando apresenta a cultura dos
dominados.
Considerando as contribuições de Pierre Bourdieu (2002), podemos definir o conceito
de
habitus
como um instrumento conceptual que nos auxiliará a pensar a relação e a mediação
entre os condicionamentos sociais exteriores e a subjetividade dos ministros est
udados, levando
em conta que o
habitus
é uma matriz cultural que predispõe os indivíduos a fazerem suas
escolhas, sendo que a semelhança ou a afinidade de
habitus
forma
o
habitus
de classe (feixe
de relações semelhantes).
Importante nessa discussão é o con
ceito de Estado em Bourdieu, que passaremos a
apresentar.
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O Estado em Pierre Bourdieu
Para Bourdieu (2007), o Estado seria resultante das categorias de pensamento dos
agentes que nele atuam. Nessa perspectiva, os agentes, por meio de suas visões de
mundo
influenciam e são influenciados pelo Estado. No caso dos ministros dos períodos estudados,
estes teriam poder de atuação no Estado, ajudando a construir categorias de pensamento
reproduzidas por este. Para além de um Estado abstrato, o Estado em Bour
dieu é um Estado
encarnado e objetivado em agentes sociais; que influencia e sofre a influência de outros agentes
e do Estado.
Em complemento, os agentes sociais que participam do Estado são representados como
encarnadores do Estado; um Estado constituído
como um espaço relativamente autônomo em
relação às forças sociais em luta pelo poder, e assegurando uma posição de árbitro nos conflitos
políticos. Dizer que o Estado é legítimo em Bourdieu, é dizer que ele pode obter a submissão
da ordem que impõe, tendo
como única forma de constrangimento, o poder simbólico. Assim,
a obediência generalizada não passa pela coerção em Bourdieu. O reconhecimento da
legitimidade da obediência é um ato de conhecimento, que é um ato de submissão inconsciente
à ordem social, ou
seja, é um ato de crença, mais ainda, de crença coletiva.
Nessa perspectiva, Bourdieu nos alerta para o fato que o Estado não tem,
necessariamente, a necessidade de dar ordens, ou de exercer coerção física para produzir um
mundo social ordenado, “pelo me
nos enquanto puder produzir estruturas cognitivas
incorporadas que estejam em consonância com as estruturas objetivas, assegurando assim a
crença da qual falava Hume, a submissão
dóxica
à ordem estabelecida” (BOURDIEU, 1996
, p.
119). Ou seja, o poder do Es
tado é produzir e impor categorias de pensamento aos agentes do
mundo social, cujas categorias são aplicadas a todas as coisas do mundo, inclusive para falar
do próprio Estado. Portanto, Bourdieu nos chama a atenção para o fato que pensamos o Estado
a part
ir do próprio pensamento criado pelo Estado, pois o Estado é ele mesmo nosso próprio
pensamento. Mais concretamente, o pensamento do Estado não é somente um discurso ou um
metadiscurso. Este pensamento se inscreve no mundo social, já que o Estado seria o m
undo
social em forma de discurso. Assim, o Estado produz e inculta estruturas cognitivas, segundo
as quais a ordem social é percebida e incorporada, especialmente pelo sistema escolar, que
inculta as estruturas cognitivas comuns, contribuindo de forma impl
ícita para a produção e a
reprodução da ordem social. Essas estruturas são tão naturalizadas, que os agentes sociais nem
se dão conta do processo de produção de crenças.
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