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Pandemia e habitus de classe:
Análise
de práticas sociais de autocuidado durante a pandemia de
Co
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19 na região metropolitana do
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Rev. Sem Aspas
,
Araraquara
, v.
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e022024
,
2022
.
e
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ISSN
2358
-
4238
DOI:
https://doi.org/10.29373/sas.v11iesp.1.17628
1
PANDEMIA E
HABITUS DE CLASSE
: ANÁLISE DE PRÁTICAS SOCIAIS DE
AUTOCUIDADO DURANTE A PANDEMIA DE COVID
-
19 NA REGIÃO
METROPOLITANA DO RECIFE
PANDEMIA Y HABITUS DE CLASE: ANÁLISIS DE LAS PRÁCTICAS DE
AUTOCUIDADO SOCIAL DURANTE LA
PANDEMIA DE LA COVID
-
19 EN LA
REGIÓN METROPOLITANA DE RECIFE
PANDEMIC AND CLASS HABITUS: ANALYSIS OF SOCIAL SELF
-
CARE
PRACTICES DURING THE COVID
-
19 PANDEMIC IN THE METROPOLITAN
REGION OF RECIFE
Bruno Leonardo
FONSECA
1
RESUMO
:
Neste
artigo, por meio de etnografias e biografia sociológica realizada com Jiboia
–
um membro
das classes
populares brasileira
–
,
apresentamos que diante do contexto
pandêmico a utilização de máscaras, realização do isolamento social, vacinação e higienização,
não são apenas respaldadas pelas condições objetivas de vida, mas também, pelos
condicionantes subjetivos de existência quando estes estão associados à
desigualdade
existencial.
Este último, por vez, se estabelece na desigual alocação de respeito, dignida
de e
valorização da própria vida.
PALAVRAS
-
CHAVES
:
P
and
e
mia.
C
lasses populares.
D
esigualdade.
H
abitus de classe.
Pierre Bourdieu.
RESUMEN
:
En este artículo, a través de etnografías y biografía sociológica realizadas con
Jiboia
–
miembro de las
clases populares brasileñas
–
, presentamos que, ante el contexto de
pandemia, el uso de mascarillas, el aislamiento social, la vacunación y la higiene, no son sólo
sustentada en las condiciones objetivas de vida, pero también en las condiciones subjetivas d
e
existencia cuando éstas se asocian a la desigualdad existencial. Este último, a su vez, se
establece en la desigual asignación del respeto, la dignidad y el aprecio por la vida misma.
PALABRAS
CLAVE
:
P
andemia.
C
lases populares.
D
esigualdad.
H
abitus de c
lase. Pierre
Bourdieu.
ABSTRACT
:
In this article, through ethnographies and sociological biography carried out
with Jiboia
–
a member of the Brazilian popular classes
–
, we present that, in the face of the
pandemic context, the use of masks, social isolation, vaccination and hygiene, are not only
supported by the objective conditions of life, but also by the subjective condit
ions of existence
when these are associated with existential inequality. The latter, in turn, is established in the
unequal allocation of respect, dignity and appreciation of life itself.
KEYWORDS
:
Pandemic. Popular classes. Inequality.
Class habitus. Pie
rre Bourdieu.
1
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)
, Recife
–
PE
–
Brasil.
Arquiteto e Urbanista
,
mestrando em
Sociologia pelo Programa de Pós Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco
(PPGS/UFPE).
ORCID
:
https://orcid.org/0000
-
0001
-
7149
-
857X
.
E
-
mail: brunofonsecaln@gmail.com
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2
Introdução
Ao longo dos últimos três anos de pandemia, as práticas de utilização de máscaras,
higienização das mãos, isolamento social, vacinação, busca por atendimento médico quando
necessário, tem se tornado práticas cotidianas fundament
ais para lidar com os perigos e ameaças
advindos do Coronavírus. Tais práticas, nomeadas neste presente artigo de
práticas de proteção
pandêmica,
são atravessadas por questões relativas às desigualdades sociais concernentes à luta
de classes e, não estão,
sob nenhuma hipótese, acessíveis de modo socialmente justo para todas
e todos.
Amartya Sen (2001) nos ensina que para formularmos uma dada dimensão a ser
analisada de uma desigualdade social qualquer, carecemos da evocação do seguinte
questionamento:
“des
igualdade de que?”,
para assim, como estratégia de pesquisa,
formularmos os “espaços de avaliação", isto é, a seleção dos critérios relevantes que serão
utilizados para analisarmos uma determinada desigualdade social.
No caso desta pesquisa, analisamos no
s “espaços de avaliações” a reconstrução dos
sentidos que os agentes sociais atribuem aos seus atos. A
prática de proteção pandêmica
aqui
analisada a partir das desigualdades sociais que residem entre as
condições objetivas de vida
e
as
condicionantes subj
etivas de existência
. Esta última, posta no sentido bourdiesiano de
ethos
de classe
2
,
compreendido aqui sob o conceito de Therborn (2011) de
desigualdades existenciais
-
relativo às questões de baixa dignidade,
autoestima
social e valorização da própria vida.
Para tanto, utilizamos como metodologia as análises etnográficas e, principalmente,
biografias sociológicas fincadas em Bernard Lahire (2004), na qual utilizamos, além dos
conceitos que serão apresentados em breve, t
rês roteiros de entrevistas
semiestruturados
. A
pesquisa revela que as práticas
de proteção pandêmica
não são apenas respaldadas por
desigualdades materiais e econômicas. Ao reconstruir os sentidos que os agentes atribuem a
tais práticas, inferimos que os
condicionantes subjetivos relativos à desigualdade
existencial
são determinantes sociais. Assim, após apreendermos as disposições subjetivas de Jiboia em
diversos contextos sociais, diacrônicos e sincrônicos, compreendemos que no contexto
pandêmico
as ques
tões relativas à baixa valorização da própria vida figuram
como
determinantes para as baixas
práticas de proteção pandêmica
no caso de Jiboia.
2
O conceito
bourdieusiano
de
habitus
é aqui fragmentado para atender com melhor precisão os interesses desta
pesquisa, embora Pierre Bourdieu ao longo da sua trajetória acadêmica tenha abdicado desta fragmentação.
Tratamos do conceito de
habitus
a partir de três partes constitutivas: o
eidos
,
conjunto de esquemas lógicos de
avaliação e ação; o
hexis
relativo à corporificação, no sentido das disposições que se tornaram corpo, posturas,
gesto; e o
ethos,
como um conjunto axiológico e sistemático de disposições da dimensão ética, nas formas de s
er
e estar no mundo social. Nesta pesquisa utilizamos especialmente
habitus
e
ethos.
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As três entrevistas foram realizadas ao longo dos anos de 2021 e 2022, contou com um
gravador de áudio e um blo
co de papel para tomadas de notas, ambos autorizados por Jiboia. A
entrevista ocorreu em sua casa, mais especificamente no espaço destinado para o seu
mercadinho, enquanto atendia os poucos clientes. Jiboia foi informado que a pesquisa tratava
da vida dos
moradores de ocupações urbanas e que os dados colhidos não seriam
necessariamente utilizados; além disso, o entrevistado foi informado que qualquer questão que
levasse ao reconhecimento de sua verdadeira identidade seria
mantida
sob sigilo.
Desigualdade
Existencial e Habitus de classe no Brasil
Acerca da disposição na sociologia disposicionalista, de acordo com Pierre Bourdieu
(2001, p. 171), após um jogo de palavras
heideggeriano, “disposição é exposição”
e, isto
ocorre, justamente porque o corpo está exposto às exterioridades do espaço social: aos perigos,
aos acolhimentos, às complacências ou constrangimentos do mundo social que o cerca, a
começar pelas imposições das condições materiais de existência, c
omo por exemplo, os agentes
sociais residentes nos bairros populares
–
os quais apresentam os baixos índices das
práticas
de proteção pandêmica
–
que carecem de toda uma condição material que os distanciam do
cumprimento das recomendações do isolamento s
ocial, uso de máscaras, vacinação etc.
Assim, é a partir de uma determinada
posição objetiva
-
principalmente através da classe
social
-
ocupada no espaço social que os agentes sociais compreendem o espaço social que os
engloba, e assim vão se condicionand
o a uma classe de
habitus
que os orientam pelos
condicionantes deste mundo social específico. O
habitus
se encontra ajustado às regularidades
da posição no mundo social, funcionando como estrutura estruturante e estrutura estruturada,
isso porque as estrut
uras sociais utilizadas pelos agentes para compreender o mundo são ao
mesmo tempo o produto incorporado desse mesmo mundo estruturado e estruturante que o
cerca, pois, como se sabe, os agentes sociais apenas compreendem o mundo social que os
engloba, engen
drando neste sentido
“produtos de uma sistematicidade não desejada e
inconsciente a si mesma”
(BOURDIEU, 2007, p. 45); e que, por vez, estão aptas a orientar os
indivíduos por práticas sociais comuns e cotidianas, sendo estas mais ou menos homólogas
entre
os membros da mesma fração e classe social. Isso significa que os agentes sociais ao
tomarem suas decisões acerca das
práticas de proteção pandêmica
não escolhem o princípio
de suas escolhas, que é o
habitus classe.
Na
praxiologia bourdieusiana
a
prática
é
o lugar da dialética entre as
posições objetivas
e
disposições subjetivas,
cabendo ao primeiro, a exterioridade objetivada das estruturas sociais
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que condicionam a percepção e a ação dos agentes sociais, como uma espécie de uma
“tabela
rigorosa das catego
rias historicamente constituídas
” (BOURDIEU, 2007, p. 436), ou seja, de
um
espaço social
que se constitui no e pelo sistema de oposições
relacionais
das diferentes
posições sociais e das diferentes distribuições das condições de vida; enquanto o segundo,
encontra
-
se abrangido pelo conceito de
habitus
, definido como o princípio unificador das
disposições subjetivas
que, embora se formem no decorrer da
história coletiva de uma
sociedade.
Neste sentido, por meio da incorporação no decorrer da história individual dos agentes
sociais, de acordo com as diferentes posições objetivas dos agentes em um dado espaço social,
que se pré
-
condicionam as diferentes p
ercepções e as ações destes agentes em cada contexto
socializado e socializante, tornando o
habitus
um produto da aquisição histórica por um legado
das
lutas históricas
entre as diferentes classes sociais.
Na obra
“Subcidadania brasileira”
(2018), o sociól
ogo reconstrói o modelo
bourdieusiano
de classe social no Brasil, considerando as diferenças fundamentais entre as
sociedades de países centrais e as de países periféricos. Em sua interpretação sociológica das
classes sociais brasileiras, a noção burdieusi
ana de luta de classes e de habitus de classe se soma
a noção
tayloriana de hierarquias
valorativas das sociedades modernas, as quais são fundadas
em fontes de instituições fortes, como o mercado e o Estado, e que acabam classificando apenas
como cidadão o
s agentes capazes de lidar com as exigências modernas, como a prospecção,
produtividade, racionalidade
.
Esse reconhecimento de cidadania moderna, concedida apenas
aos agentes racionais dignamente produtivos, respaldadas pelas “fontes morais” das instituiçõ
es
fortes na modernidade, é definido como
habitus primário
.
Neste sentido, Jessé Souza (2018) argumenta que o
habitus
pensado por Pierre Bourdieu
não pressupõe uma condição fundamental da sociedade francesa: o reconhecimento
socialmente compartilhado, de m
odo transclassista, na qual todos os franceses são cidadãos
franceses. Por outro lado, a ausência dessas mesmas pré
-
condições sociais caracterizam o
conceito de
habitus precário
, correspondendo ao conjunto das disposições subjetivas
interiorizadas
-
de aco
rdo com as posições e condições objetivadas
-
que segundo Souza (2018,
p. 240) “
não atendem às demandas objetivas para que um indivíduo ou um grupo social possa
ser reconhecido como produtivo e útil numa sociedade de tipo moderno e competitivo
”, sendo
assi
m, reconhecidos socialmente como
subprodutores e subcidadãos
e, portanto,
sub
-
humanos
.
O resultado é a construção de toda uma gama simbólica de estigmatizações e noções
preconceituosas que apresentam correlatos de estruturas cognitivas dos agentes sociais:
desqualificando, criminalizando e abolindo o reconhecimento da dignidade social de uma classe
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social inteira, inclusive tendo esse reconhecimento pejorativo compartilhado entre as próprias
vítimas da violência simbólica exercida.
Dito isso, Souza (2018) d
efine as classes populares brasileiras, em sua condição social
peculiar de subcidadania, pela produção e reprodução de um
habitus precário
ao longo do
tempo e do espaço, sendo essa a condição peculiar para a produção e reprodução da
ralé
estrutural
brasile
ira. Neste sentido, na tese central da obra, é explicado que cerca de 1/3 da
população brasileira, devido à ausência das pré
-
condições sociais mínimas para dar conta das
exigências da dignidade do “agente racional” moderno, encontra
-
se na posição de exclus
ão e
desclassificação perante toda a sociedade como “subprodutores” e, portanto, classificados pela
hierarquia valorativa moderna como
subcidadãos.
Cabe ressaltar ainda, que esse enorme
contingente de brasileiras e brasileiros foi primeiramente nomeado por
Florestan Fernandes
(2008) como primeira
ralé urbana
e
ralé secular,
justamente
pela ausência das condições
psicossociais
necessárias
para integrarem a uma sociedade moderna e competitiva.
Acerca da baixa dignidade social, da condição de subcidadania, da
negação de
reconhecimento social como agente produtor e válido que atinge grupos sociais e classes sociais
inteiras. O sociólogo Goran Therborn (2011, p. 21
-
22) propõe perspectivas analíticas entre
diferentes tipos de desigualdade. Para o nosso interesse,
destacamos a noção de
desigualdade
existencial
, estabelecida na
negação de uma igualdade entre todas as pessoas humanas, por meio
das desiguais alocações de respeito, reconhecimento social, dignidade, humilhação, ignorância
e marginalização.
Deste modo,
ao tratarmos do habitus de classe, ou mais precisamente, do
ethos de classe
da
ralé estrutural
brasileira, estamos falando de um
ethos precário,
ou seja, uma concepção de
ser e estar no mundo constituída de modo precarizado; devido à ausência das pré
-
condi
ções
sociais necessárias para obter o reconhecimento social de cidadania moderna e a dignidade
social; restando a estes indivíduos e classes sociais inteiramente marginalizadas e
estigmatizadas uma ausência do reconhecimento da dignidade humana, resultando
em
concepções identitárias de baixa autoestima e dignidade individual e coletiva, assim como, por
tantas outras condições que correspondem ao
polo
deficitário da
desigualdade existencial.
Entretanto, cabe ressaltar que que o habitus de classe não está pos
to aqui de maneira
mecanizada por coerções externas, e sim de um
habitus
adaptável, sendo transponível aos
diversos contextos sociais das diferentes práticas sociais. Como propõem por Bernard Lahire
(2004) ao assumir uma postura sociológica dentro do campo
disposicionalista da ação que
considera a pluralidade dos diferentes meios sociais sendo rebatido na pluralidade da
socialização dos indivíduos, que por fim, desdobra
-
se na pluralidade disposicional dos agentes
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sociais a partir da particularidade de cada
trajetória social. Lahire elabora da obra bourdieusiana
constrói o entendimento de que a heterogeneidade do mundo social está incorporada na
construção social dos indivíduos, ou ainda, que toda ideia de
campo
-
que compõem as múltiplas
externalidades do es
paço social
-
opera também na dimensão individual interiorizada nos
agentes sociais. Assim, nesta biografia sociológica aqui apresentada, utilizamos conceitos
disposicionais como inclinações, pluralidade de disposições, aptidões, variações
intraclasse
,
rup
turas
biográficas etc.
Jiboia
Mais conhecido como Jiboia, Antônio da Silva é um dos moradores mais antigos da
Ocupação Dandara na periferia do Recife. Jiboia tem 62 anos, divorciado diversas vezes, pai
de 18 filhos sem estabelecer relação firme com nenhum. É pedreiro e proprietário de
duas
pequenas “barracas” onde se comercializa produtos higiene, limpeza, alimentos básicos,
bebidas alcoólicas, que funcionam dentro das suas duas casas localizadas em duas ocupações
urbanas.
Proprietário de um patrimônio de capacidades no que diz respeit
o às práticas da
construção civil, Jiboia é reconhecido frequentemente como o “engenheiro da ocupação”,
prestando serviços tanto quando a questão é coletiva, como também na ajuda pontual aos
vizinhos. Jiboia é solidário e suas habilidades de provimento da
vida cotidiana diante de
condições objetivas tão precarizadas estão, por muitas vezes, a serviço da ajuda comunitária.
Apesar das queixas pela falta de reconhecimento por suas ações coletivas e da falta de
colaboração financeira dos demais, Jiboia se orgul
ha dos serviços prestados.
Em sua trajetória como militante por direito à moradia, foi por mais de duas décadas
presidente da associação de moradores de uma famosa comunidade do Recife, conhecida no
campo do direito à cidade pelo histórico de resistência
contra os despejos fundiários.
"Olhe, dos 13 anos pra trás eu sofri demais"
Jiboia é natural da zona rural de Aliança
-
um pequeno município localizado na zona da
mata norte pernambucana. Jiboia nasceu, como costuma dizer,
dentro de um partido de cana,
inclusive,
lugar no qual também sofreu a exploração do trabalho infantil na lav
oura
.
Jiboia
permaneceu neste trabalho relativamente análogo à escravidão até que decidiu fugir para o
Recife
-
"Olhe, dos 13 pra trás eu sofri demais".
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Jiboia é o único filho de seu pai com sua mãe; "
Meu pai era Durval Caetano, chamava
ele de Durval, meu
pai era de Exú. Foi pra usina ficar trabalhando, aí em Aliança mesmo ele
morreu".
Jiboia é órfão por parte materna desde o seu nascimento, a história do que realmente
houve com sua mãe e os motivos de ter sido arrancado dela ainda ao nascer nunca lhe fora
m
revelados. Apesar dos 62 anos, Jiboia ainda hoje não sabe o paradeiro de sua mãe; não sabe o
que aconteceu no seu nascimento; não sabe se seus pais biológicos tiveram alguma relação
conjugal; como também não sabe sequer dar certeza sobre o nome dela. Que
stões tais que lhe
traz ressentimento e tem desdobramentos em sua vida.
Quando Jiboia tinha apenas três anos de idade, Durval se casou com Ruth, a quem
para
ele logo de início é classificada como
muito malvada.
–
"
Tem mãe que não é a mãe da gente,
mãe é
mãe”.
Da união de Durval e Ruth nasceram mais três filhos. Assim sendo, a composição
familiar mais central ficou constituída com Jiboia sendo o filho mais velho da casa.
O período em Aliança, ao longo da sua infância e início da adolescência, traz memória
s
à Jiboia que ele não gosta de recordar. As duras dores do passado que, como nos revela "
Me
vêm na cabeça, mas tento esquecer"
, estão fortemente vinculadas às condições objetivas de
vida, bem como pelas particularidades que as
variações intraclasse
. Como
se sabe, o trabalho
infantil no campo atinge milhares de crianças no nordeste brasileiro; contudo, como
mostraremos nesta pesquisa, cada indivíduo desta posição social se relaciona de modo singular
com o mundo social, seja nas aptidões, inclinações, dispos
ições, particularidade de cada
trajetória.
No trabalho da cana, Jiboia começou a acompanhar o pai tão cedo em sua vida que não
consegue sequer recordar
-
se quando passou a auxiliar o pai nas atividades de trabalho. Aos 8
anos, já dispondo de um
patrimônio d
e capacidades disposicionais
que são exigidas nas
atividades de trabalho da lavoura, incorporada através de uma
socialização indireta
com o
mundo do trabalho do pai, Jiboia foi convidado pelo feitor da usina a trabalhar "formalmente".
Além de ser criança e
ter que enfrentar o árduo trabalho da cana, Jiboia fala com revolta
e ressentimento do período em que trabalhou em sua cidade natal. Principalmente devido à
posição ocupada no espaço familiar e nas relações particulares estabelecidas com sua madrasta;
cab
e destacar ainda que é nas intersecções entre os contextos do mundo do trabalho e do mundo
familiar que as interações estabelecidas com a madrasta
se tornam
ainda mais ardilosas e, até
mesmo, mais desumanas. Ele nos conta, em tom agressivo, que era comum s
ofrer sanções
impostas pela madrasta caso não batesse as metas diárias do trabalho na usina, como por
exemplo, almoçar apenas quando terminasse o serviço; se não conseguisse terminar até o
horário do almoço, era obrigado a cumprir a demanda de trabalho no
período da tarde, sem sua
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principal refeição do dia. As duras sanções impostas, assim como a apropriação de seu salário
por Ruth não ocorriam escondido de Durval; ao contrário, o pai de Jiboia foi bastante omisso
diante do contexto
-
"Eu ficava magoado por
que pai nada dizia".
Embora seja habilidoso com os números, na construção civil e na administração de suas
duas barracas, como orgulha
-
se em contar, Jiboia é analfabeto. A sua relação com o mundo
escolar praticamente inexistiu em sua trajetória de vida: co
meçou aos 9 anos e parou aos 13,
quando fugiu para o Recife. Além das várias dificuldades impostas, como a grande distância
entre sua casa e o colégio, o horário da escola quase sempre era comprometido pelas obrigações
do trabalho, pois, como
ele
alerta, a
prioridade era sempre ir ao trabalho. Em entrevistas, Jiboia
se culpa por ser analfabeto e se
autopenaliza
por isso, definindo
-
se, inclusive, como “
uma
pessoa neutra”.
Outro ponto de sofrimento social que teve sua gênese em sua infância
-
talvez o mais
c
entral
-
e que cabe aqui ser compreendido como um
ethos precário
estabelecido como um
condicionante subjetivo a partir de uma posição de
ralé estrutural
brasileira é uma certa
desestruturação do núcleo familiar, do qual se espera que atue como ambiente fec
undo da
transmissão afetiva de valores. No caso particular de Jiboia, o tipo de relação específica com a
madrasta, a ausência materna ao longo de sua vida, a exploração no trabalho infantil da lavoura
da cana, a extrema pobreza, ausência do ambiente escola
r e a omissão do pai conformam as
particularidades de um
ethos precário
engendrados ainda na infância e adolescência.
Jiboia, um sujeito solto no mundo, um bezerro rejeitado
Em muitos dos momentos nos quais fala de si, Jiboia expressa uma vida marcada
pela
solidão, tanto na dimensão familiar, ausência materna, ausência de uma companheira
matrimonial, o não reconhecimento como irmão pelos demais irmãos parte de pai
-
“Me sinto
sozinho no mundo porque os outros que eu tenho de lá não liga pra mim, tem doi
s irmãos nunca
vem na minha casa, eu fui lá não sei quantas vezes”
-
,
sem relação próxima com os 18 filhos,
como também nas relações de amizade; embora more há quase 50 anos na região metropolitana
de Recife, Jiboia não construiu nenhuma amizade duradoura
e sólida.
Neste sentido, é possível inferir que a vida solitária figura como um elemento importante
em sua vida. Ao longo da entrevista e dos eventuais encontros nos quais pude observar e
interagir com Jiboia, uma música por ele nomeada de "Bezerro
rejeitado" foi, por vezes, trilha
sonora dos momentos que estivemos juntos. A música o sensibiliza e o traz um significativo
grau de identidade e reconhecimento:
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9
J
-
Oxe, sofria, é por isso que de vez em quando toca essa música eu fico
meio triste
[...]
Um bezerro rejeitado, um gado quando rejeita um filho
você faz o quê? O cara não dá na mamadeira? Porque a mãe não queria
dar.... aí fico pensando nisso.