in Revista Ibero-Americana de Estudos em Educação
ATENDIMENTO EDUCACIONAL ESPECIALIZADO INTEGRAL E INTEGRADO: ANÁLISE GRAMSCIANA DE UMA PROPOSTA DA FENAPAES
RESUMO
O presente artigo analisa uma das propostas educacionais da Federação Nacional das Associações de Pais e Amigos dos Excepcionais (FENAPAES), formulada como Atendimento Educacional Especializado (AEE), entre 1998 a 2015. Trata-se de um estudo documental, fundamentado no pensamento de Antonio Gramsci. Porém, tal proposta educacional possui um caráter terapêutico, sem especificidade pedagógica e, inclusive, difere de uma formação humana integral, concebida por Gramsci, pois a perspectiva educacional da Fenapaes almeja uma educação profissionalizante precoce e a formação humana prevista não supera a fragmentação entre as dimensões intelectual e manual do trabalho produzida pela sociedade capitalista.
Main Text
Introdução
A Federação Nacional das Apaes (Fenapaes) constitui uma agremiação de 2.156 unidades de associações civis denominadas de Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae), coordenadas por 24 Federações Estaduais, abrangendo todos os estados brasileiros, atendendo cerca de 250.000 pessoas com deficiência intelectual e múltipla diariamente (FENAPAES, 2016). As atividades das Apaes abrangem as dimensões sociais da saúde, educação, assistência social, trabalho e lazer (FENAPAES, 2001a; JANNUZZI; CAIADO, 2013).
A Fenapaes, em seus programas e projetos ao longo do período de 1990-2005, apresenta cinco propostas educacionais, a saber: a) oferecer educação escolar às pessoas com deficiência intelectual e múltipla; b) oportunizar programas pedagógicos especializados que converge para a área do trabalho com arte, cultura e lazer; c) realizar a educação profissional em nível básico; d) promover a educação física; e) garantir atendimento educacional especializado integral e integrado. (SILVA, 2017).
Dessa forma, o presente artigo analisa a proposta educacional de atendimento educacional especializado da Fenapaes, subsidiando-se nas reflexões de Gramsci na área da educação. Dessa forma, além da introdução e das considerações finais, primeiramente, discorre a disputa pela hegemonia realizada pela Fenapaes sobre as políticas da educação especial. Em seguida, dedica-se a estudar a nova perspectiva da Fenapaes sobre o Atendimento Educacional Especial para manutenção dessa hegemonia.
Disputa da hegemonia nas políticas da educação especial
A primeira vez que aparece o termo Atendimento Educacional Especializado (AEE) dentro da proposta educacional da Fenapaes é no “Programa Apae Educadora”, sob as características presentes na Lei n. 9.394 de 1996. O AEE pode ser “[...] feito em classes, escolas ou serviços especializados [leia-se instituições privadas-assistenciais], sempre que, em função das condições específicas dos alunos, não for possível a sua integração nas classes comuns de ensino regular” (BRASIL, 1996, art. 58, § 2º).
Desse modo, as Apaes estariam cumprindo a Educação Especial, prevista na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996 (LDBEN), além do mais, o próprio conceito de Educação Especial da Fenapaes sustenta-se na LDBEN, conceituado como “[...] conjunto de recursos e serviços educacionais especiais organizados para apoiar, suplementar e, em alguns casos, substituir os serviços educacionais comuns”. (FENAPAES, 2001a, p. 26).
A Fenapaes, entre 2003 a 2007, mantêm a proposta educacional organizada pelo “Programa Apae Educadora”, mas vê a necessidade de contextualizar com as demandas políticas e educacionais. Tal necessidade levará a Fenapaes a retomar alguns elementos e reorganizar as propostas, subsidiando em novos teóricos da educação e psicologia (FENAPAES, 2006; 2009).
Cumpre acrescentar que, entre 2003 a 2015, a Fenapaes disputa a hegemonia nas políticas educacionais da área da Educação Especial, tendo presente novos arranjos e direcionamentos dados pelo sistema capitalista, em função da recomposição da hegemonia do capital, visando redirecionar os investimentos nas áreas sociais. Por hegemonia, entende-se “o conjunto das funções de domínio e direção exercidos por uma classe social dominante, no decurso de um período histórico, sobre outra classe social ou até sobre o conjunto das classes da sociedade” (MOCHOCOVITCH, 2001, p. 20). In casu, refere-se ao contexto político da Fenapaes em lutar pelo domínio e direção intelectual e moral do campo da educação especial, em função da política da “inclusão escolar”.
O governo brasileiro, desde 2004, dedicou-se a promover a inclusão escolar de alunos com deficiência, inicialmente, pela implementação do “Programa Educação Inclusiva: Direito à Diversidade”. Nos anos de 2003 a 2007 acontece a disseminação da política denominada de “Educação Inclusiva”. Esta política articula-se a acordos internacionais que o Brasil assinou ou apoiou, os quais recomendam o acesso das pessoas com deficiência nas escolas regulares. O Estado capitalista atua como negociador, levado a submeter à lógica do mercado e aceitar as tendências impostas pelas agências internacionais como a da educação inclusiva, proposta pelos organismos multilaterais.
Dessa maneira, as políticas de Educação Especial travam um debate sobre a relação público e privado, envolvendo questões de reconhecimento do caráter escolar de instituições privadas-assistenciais e seu financiamento. O debate pode ser expresso na correlação de forças presentes na elaboração do texto da “Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva” (PNEE-PEI), no decreto n. 6.571/08 e no Decreto n. 7.611/11 (MELO, 2016).
Em uma leitura inversa à de Gramsci, a sociedade civil, apresentada como fora do Estado, se tornou um espaço de cooperação, gerenciamento e implementação de políticas realizadas pelo “terceiro setor” (a exemplo das Apaes) no espaço deixado pelo Estado neoliberal nas áreas sociais (MARTINS, 2008). Para entender porque elas “ganharam” a centralidade da educação das pessoas com deficiência, Melo e Silva (2016) incluem essas instituições privadas dentro do Estado, pois fazem parte da sociedade civil em relação dialética com a sociedade política. Como veremos, a mudança do olhar da Fenapaes sobre o AEE, somado à presença de seus representantes no Estado, é uma forma de manter sua hegemonia que, contraditoriamente, o poder público, com as políticas públicas mais recentes, tenta conquistar.
A Fenapaes participou como um grupo de trabalho na redação da política. O debate concentrou-se nas concepções em torno do que deveria ser um sistema educacional inclusivo (FENAPAES, 2007). A PNEE-PEI entende a educação especial como modalidade de ensino que se realiza na forma de AEE, prioritariamente, nas salas de recursos multifuncionais, de forma complementar e suplementar, no turno inverso do horário de aula da sala comum.
O AEE, no primeiro decreto, não poderia ser ofertado nas instituições privadas-assistenciais. O decreto 6.571/08 determinou a oferta do AEE na rede pública regular de ensino e prestaria o apoio técnico e financeiro do MEC para concretizá-lo. No entanto, as Apaes perderiam o repasse dos recursos, como foi o caso do Fundeb. Essa orientação política foi revogada pelo Decreto n. 7.611/11, no qual dispõe que o AEE deve ser ofertado, preferencialmente, nas escolas regulares, ou seja, o AEE também pode ocorrer em instituições privadas-assistenciais. A Fenapaes, por sua vez, questiona essa política, ressignificando os termos “Educação Especial” e “AEE”. Nos documentos da época, a Federação reduz a modalidade Educação Especial ao AEE.
A Fenapaes constrói seu argumento na defesa da escola especial, recorrendo à LDBEN/96, mostrando que as Apaes atendem aos requisitos de ofertar uma educação escolar e possuem condições de trabalhar com educandos em função das suas condições específicas. Consideram que os alunos com deficiência intelectual têm necessidades complexas “[...] nas áreas de comunicação, relacionamento interpessoal, vida independente, cuidados pessoais, interação e convivência social, com necessidades de apoios intensos e contínuos [...]” (FENAPAES, 2007, p. 5). Assim, nas Apaes esses alunos poderiam ter assistência na área da saúde e do serviço social.
Desse modo, o discurso da Federação é de que as Apaes oportunizam a integralidade das ações na área da Educação, Saúde e Assistência. Alegam que realizam tais ações em defesa dos direitos da pessoa com deficiência. Argumentam que garantem a inclusão do aluno na sociedade, em vista do exercício da sua cidadania e ingresso no mercado de trabalho (FENAPAES, 2007). Por meio dos seus intelectuais, o discurso da Fenapaes atua como intermediário entre a pessoa com deficiência, a família e o Estado.
Em síntese, a atual política de educação especial garante o direito de matrículas de pessoas com deficiência na educação regular, oportunizando o AEE como dispositivo pedagógico de formação complementar da pessoa com deficiência. Porém, a Fenapaes reformula a concepção de AEE para ser ofertado nas suas unidades, com vistas a realizar parcerias/convênios com o Poder Público.
AEE sob perspectiva da Fenapaes
No ano de 2011, com a participação de pesquisadores da área da educação especial na reformulação da política da Rede Apae, surge uma nova proposta como maneira de recuperar a hegemonia no campo da educação especial. Trata-se do ‘Atendimento Educacional Especializado integral e integrado’, diferenciado da acepção da política educacional brasileira (PNEE-PEI, 2008), embora se aproprie de algumas diretrizes com o objetivo de atender à finalidade de oferecer o AEE para o público com deficiência intelectual e múltipla, haja vista o termo “preferencialmente” nas legislações. (CARVALHO; CARVALHO; COSTA, 2011).
O quadro 1 apresenta a ressignificação o termo AEE e as propostas educacionais da “Política de Atenção integral e integrada para as pessoas com deficiência intelectual e múltipla” (2011).
Os excertos retirados do documento publicado pela Fenapaes evidenciam que o discurso se funda na intertextualidade com os discursos de direitos humanos, em especial, do direito humano à educação. Nesse sentido, a Fenapaes procura recuperar o conceito de atendimento especializado na Constituição de 1998. Todas as legislações devem seguir a Constituição, assim sendo, as legislações que tratam da PNEE-PEI precisam estar de acordo com a concepção de educação substitutiva presente na Carta Magna. Consequentemente, se o termo de atendimento especializado da Constituição permanecesse com o mesmo significado, as Apaes poderiam funcionar como escolas especiais.
Araújo (2008) faz uma exegese jurídica diferente daquela que a Fenapaes defende. Ele entende que no art. 206 e 208 está claro que é dever do Estado fornecer educação às pessoas com deficiência, por tratar de força do comando constitucional que afirma que o Estado promoverá a inclusão das pessoas com deficiência na vida comunitária. A Constituição de 1988, inciso III do art. 208, procura determinar que o ensino especializado é, preferencialmente, ministrado na rede regular de ensino, protegendo a pessoa com deficiência contra eventual discriminação, buscando integrá-la socialmente (ARAÚJO, 2008).
Araújo (2008, p. 105-106) interpreta que “[...] houve mutação constitucional, ou seja, mudança da realidade fática, sem que houvesse alteração formal do texto. A palavra “preferencialmente” recebeu novo entendimento (apesar, ressaltamos, de manter-se o mesmo texto)”.
Por conseguinte, a Fenapaes também desenvolve programas e atividades na forma de integralidade de serviços da área da saúde, assistência social e trabalho, buscando assemelhar-se à concepção de atendimento especializado da atual Constituição. Porém, a Apae, que diz ser uma instituição integral, não demonstra a especificidade pedagógica. A Fenapaes mantém os objetivos da proposta do “Programa Apae Educadora”, a saber: preparar para o exercício da cidadania e inserção no mercado de trabalho.
Inclusive, a Fenapaes diz que o atendimento integral e integrado das Apaes tem por objetivos: desenvolver a autonomia, habilidades adaptativas; preparar para o trabalho. O AEE não visa o saber sistematizado para formar futuros intelectuais vinculados à luta da pessoa com deficiência. Reforçam que ao público atendido cabe a benemerência, não cabendo a formação de uma classe dirigente (especialista + político), no sentido gramsciano.
É preciso compreender que a Fenapaes faz o uso do discurso de que defende o direito à educação, porque esse direito é o princípio e garantia do Estado para a efetivar e legitimar suas políticas públicas. Por meio do direito à educação que “[...] os governos conseguem o direcionamento de ações legais e educacionais para alcançar as metas condizentes ao ajuste econômico que determinado momento histórico exige” (MORAES, 2011, p. 85).
Assim, a Fenapaes se articula à perspectiva neoliberal do Estado, metamorfoseando os termos usados historicamente pelo movimento social. As lutas democráticas em defesa de alguns direitos sociais vão sendo capturadas e as “bandeiras” defendidas incorporadas ao discurso neoliberal utilizados pelo Estado em seu sentido ampliado (sociedade civil + sociedade civil). Porém, não podemos ignorar que a estrutura e a organização da Educação Especial revelam uma prática social contraditória, bem como resultam de uma correlação de forças que é fruto de disputas hegemônicas dentro do estado (MORAES, 2011).
Na política de 2011, a Fenapaes prevê que o AEE continuará a oferecer as etapas da educação básica e a modalidade da Educação Profissional, prevendo recursos e serviços como orientam a PNEE-PEI e a Resolução CNE/CEB n. 4/2009. Esse atendimento também se espelha na estrutura formal de organização e funcionamento da educação básica, garantindo calendário e currículo escolar, com flexibilidade e adequações curriculares (CARVALHO; CARVALHO; COSTA, 2011).
Cumpre destacar que os termos “integral” e “integrado” incluídos na política de atenção da Fenapaes passam longe de uma perspectiva de formação humana. Esses termos servem para mascarar uma proposta de formação de mão de obra para o mercado de trabalho, uma educação profissionalizante precoce que foi duramente criticada por Gramsci à sua época.
Segundo Gramsci (2011), a tendência, hoje, é a de abolir qualquer tipo de escola “desinteressada”, difundindo, cada vez mais, as escolas profissionais especializadas. Contrariamente a essa proposta, o pensador italiano propôs a escola unitária, uma escola única (cultura geral e profissional), na qual a formação humana supere a fragmentação entre as dimensões intelectual e manual do trabalho produzida pela sociedade capitalista.
Zen e Melo (2016, p. 53) afirmam que uma proposta educacional deve considerar o vínculo em toda atividade humana entre as dimensões física e intelectual, prática e teórica, “[...] de forma que não é possível, sob pena de desintegração e aniquilamento do ser do trabalhador, separar a atividade manual da atividade intelectual”.
Se a Apae configurasse como uma instituição escolar, em sentido preciso, deveria contemplar uma dimensão pedagógica imbricada no interior da prática social global. Segundo Gramsci (2001, p. 36), a instituição escolar “[...] deveria assumir a tarefa de inserir os jovens na atividade social, depois de tê-los elevado a um certo grau de maturidade e capacidade para a criação intelectual e prática e a uma certa autonomia na orientação e na iniciativa”. A escola deveria “[...] propiciar a aquisição dos instrumentos que possibilitam o acesso ao saber elaborado (ciência), bem como o próprio acesso aos rudimentos desse saber” (SAVIANI, 2015, p. 288). Inclusive, o documento de 2011 sugere que não concebe a educação como aquisição dos conhecimentos curriculares, ou melhor, saber sistematizado.
Tanto a proposta contextualizada da “Apae Educadora” quanto o AEE tem por objetivos proporcionar: preparo para a vida; transmissão dos conhecimentos científicos, culturais e artísticos; aprendizagem cultural e de sistemas simbólicos; educação para o trabalho; exercício da cidadania; habilidades adaptativas e competências que regulam o comportamento; desenvolvimento físico, emocional, mental, espiritual e social. (CARVALHO; CARVALHO; COSTA, 2011).
Esses objetivos têm como características: acolhimento da diversidade; inclusão; aspecto gerencial (planejamento, economia, logística, gestão); valores sociais e comunitários; aspectos cognitivos, afetivos, motores e relacionais; contribuir nas necessidades especiais ou individuais; formar cidadãos úteis socialmente e integrados; cuidar e educar; colaborar na competência cognitiva e funções mentais específicas dos alunos assistidos; relações com saber; interdisciplinaridade e intersetorialidade com saber e saber-fazer (CARVALHO; CARVALHO; COSTA, 2011). Assim, a educação nas Apaes ajusta o indivíduo em conformidade aos seus anseios e capacidades previamente definidos. Sem a perspectiva de desenvolvimento integral do homem, mas assumindo um projeto de homem adaptado às convenções e normas da sociedade capitalista.
Este é o mote do trabalho da Apae: cuidar e educar. Mas caberia a ela tal função? As pessoas com deficiência não teriam direito à educação em uma
[...] escola única inicial de cultura geral, humanista, formativa, que equilibre de modo justo o desenvolvimento da capacidade de trabalhar manualmente (tecnicamente, industrialmente) e o desenvolvimento das capacidades de trabalho intelectual? (GRAMSCI, 2011, p. 33).
Diferente dessa visão apaeana, a Educação Especial deveria ser garantida como direito social e público. Exige uma permanente e qualificação produção, divulgação e apropriação do conhecimento da área. Requer a “[...] assimilação do conhecimento histórico sistematizado, transformado em conteúdos escolares, por meio de métodos, técnicas e procedimentos adequados” (JANNUZI; CAIADO, 2013, p. 46). O trabalho pedagógico deveria ser configurado “[...] como um processo de mediação que permite a passagem dos educandos de uma inserção acrítica e inintencional no âmbito da sociedade a uma inserção crítica e intencional” (SAVIANI, 2008, p. 130).
Considerações finais
A presença constante do termo “preferencialmente” nas legislações da educação especial, no Brasil, abre espaço para classes e escolas especiais. O seu retorno feito pelo decreto n. 7.611/2011 indica uma tentativa do Ministério da Educação em buscar formular consensos, a partir de pressões de grupos atuantes em prol das instituições privadas-assistenciais. Desta feita, fica evidente a força hegemônica dessas instituições sob as políticas públicas na área da educação especial.
A Fenapaes, como uma força social e política fundamental na disputa da hegemonia, metamorfoseia os dispositivos legais para dar prosseguimento a uma formação humana que atenda aos anseios capitalistas, não proporcionando assim o saber sistematizado e a formação técnica e intelectual do sujeito com deficiência.
RESUMO
Main Text
Introdução
Disputa da hegemonia nas políticas da educação especial
AEE sob perspectiva da Fenapaes
Considerações finais